[66] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 13- E se Moisés escreveu a Torá, Como Fica?
Como falei no post anterior, a explicação mais simples para que não haja repetição da proibição de Levítico ao sexo anal entre 2 homens em nenhum outro lugar da Bíblia Hebraica é que os outros livros da Bíblia Hebraica NÃO pressupõem essa proibição (incluindo aqui os demais livros da própria Torá).
Em um primeiro momento, expliquei a razão para isso com base na visão acadêmica de que Moisés não escreveu a Torá (e, portanto, não escreveu o livro de Levítico). Contudo, algumas pessoas ainda optam por supor a autoria mosaica, aderindo assim à opinião mais tradicional nesse assunto.
Será que se aceitarmos a autoria de Moisés teremos então de aceitar que todos os livros da Bíblia Hebraica pressupõem sim aquela proibição?
Bem, à primeira vista, pareceria que sim, afinal, nessa maneira de ver, a Torá inteira teria sido a primeira parte da Bíblia a ter sido escrita. Então, os demais livros foram escritos por pessoas que já tinham acesso à Torá completa.
Profetas como Amós ou Isaías, ou os autores dos livros de sabedoria (tradicionalmente atribuídos a Salomão), ou os salmos com seus diversos autores, e assim por diante, todos esses já tinham acesso ao mesmo texto da Torá que possuímos, e eles eram profundos conhecedores do mesmo. Então certamente não deixariam passar Levítico 18:22.
Então sob essa visão tradicional se torna mais plausível, comparativamente à visão acadêmica apresentada no post anterior, que o motivo para os demais livros da Bíblia Hebraica sem ser o de Levítico nunca citarem novamente essa regra pode ser que simplesmente optaram por não fazê-lo. Eles conheciam e implicitamente aceitavam tal regra, mas não viram necessidade de fazer nenhuma observação com base nela.
Entretanto, será mesmo que a ausência de repetição não nos indica algo diferente disso MESMO se Moisés tenha sido o autor da Torá inteira?
A resposta cristã fundamentalista padrão me parece fazer certas suposições auxiliares implícitas que nunca são de fato examinadas.
Tudo bem, é uma possibilidade que essa regra do Levítico fosse aceita implicitamente por todos os outros autores bíblicos se Moisés escreveu a Torá. Sempre que eles falam em prol de seguir os mandamentos divinos, estaria pressuposto que aquela proibição estaria entre esses mandamentos.
Ok mas… isso ainda não explica porque eles não citam esse preceito. Então, essa explicação com base na autoria mosaica ou é incompleta (nesse caso, ela não explica) ou faz suposições auxiliares que não estão sendo devidamente faladas (nesse caso, ela explica, mas precisaríamos saber que suposições a mais são essas, antes de podermos dizer que esta é de fato uma boa explicação).
E me parece então que essa explicação só explica sob as seguintes suposições auxiliares:
- Entendemos o texto de Levítico 18:22 da mesma maneira que os autores bíblicos a entenderam e, assim, eles pressupunham essa proibição entendendo-a igual como a entendemos;
- Como o livro de Levítico e o livro de Deuteronômio são obras do mesmo autor, isto é, Moisés, e Deuteronômio vem depois de Levítico, a não repetição de certas proibições em Deuteronômio significa que Moisés optou por não escrevê-las uma segunda vez, ao invés de significar que tais proibições foram revogadas ou reinterpretadas.
Entretanto, me parece que nem de longe aceitar a autoria mosaica da Torá nos leva necessariamente a acatar essas duas premissas. Vamos examinar a segunda, já que a primeira muito provavelmente depende do que pensarmos sobre a segunda.
Nós teríamos um mesmo autor, Moisés, escrevendo primeiro o livro de Levítico e depois o livro de Deuteronômio. Além disso, existe presumivelmente uma disparidade de tempo maior do que simplesmente a ordem em que foram escritos. O livro de Levítico antecede o livro de Números, que relata fatos sobre os israelitas vagarem pelo deserto por 40 anos. Então, o livro de Levítico foi escrito e/ou seu conteúdo inteiro ensinado antes dessa jornada de 40 anos, quando da ocasião da inauguração do santuário divino.
Já o livro de Deuteronômio que é posterior ao de Números relata os discursos finais de Moisés depois daquelas 4 décadas. Esse próprio nome grego que foi dado ao livro significa ‘segunda Lei’ (deutero + nomos), para indicar que aqui Moisés buscou repetir a Lei para admoestar os israelitas ao seu fiel cumprimento. (No hebraico, este livro se chama Devarim, “as palavras”, pois é com esta expressão que o livro se inicia)
Agora, pense: se alguém que ensina X (nesse caso, uma Lei), a ensina de um jeito num momento inicial, e após QUATRO DÉCADAS a ensina de um outro jeito omitindo completamente certo ponto ou tratando-a de forma mais restrita, o que é mais provável? Que a pessoa queria manter o entendimento daquele ponto exatamente o mesmo ou que pretendeu mudar o entendimento daquele ponto?
Eu não sei bem qual é o mais plausível em abstrato, mas não me parece que “manter o entendimento daquele ponto exatamente o mesmo” (que há 40 anos atrás) seja a princípio mais plausível que “mudar o entendimento daquele ponto”. Ambos são no mínimo igualmente possíveis.
Contudo, me parece que uma ligeira vantagem reside na segunda hipótese, pois, se acrescentarmos aqui o que conhecemos a partir de nossa experiência com escritores em geral, tenderíamos a considerar correto dizer que obras de maturidade trazem significativas mudanças em relação a obras de juventude (mesmo que, no caso de Moisés, a de juventude tenha sido escrita quando ele tinha 80 anos!).
E se formos analisar os textos em si, me parece que teríamos razões adicionais para apoiar a segunda hipótese. O texto de 40 anos antes fala contra sexo anal entre 2 homens. O texto de 40 anos depois não fala contra sexo anal entre 2 homens, mas apenas contra o kadesh, o prostituto cultual. Não poderia isso ser uma forma de tornar mais preciso de quem se está falando ou a quais casos se está querendo resolver?
O texto de 40 anos antes, quando fala de incesto e sexo com animais, fala também de sexo anal entre dois homens, todos esses na mesma lista e em sequência. O texto de 40 anos depois também fala de incesto e sexo com animais, inclusive fala de ambos na mesma lista e em sequência, MAS decide não repetir a parte de sexo anal entre dois homens. Uma omissão dessas não seria significativa de que não mais se pretende endossar essa regra de forma geral ou pelo menos não mais entendê-la de forma geral?
Aqui o fundamentalista poderia fazer a seguinte objeção: “mas se Moisés tivesse querido mudar o entendimento dessa questão do sexo entre homens, ou mesmo se ele quisesse revogar a primeira regra em favor de uma regra que só visasse a questão do kadesh, ele teria afirmado isso explicitamente!”
Mas…. pera! Que pegadinha é essa? Não foi esse o mesmo fundamentalista que dizia que não precisava Moisés repetir a regra, pois isso já era implícito? Quem disse que uma mudança de entendimento não pode ser implícita? Com isso quero dizer o seguinte: fazer suposições sobre o que está implícito corta para ambos os lados, não só para a hipótese de que o entendimento dessa regra tenha ficado inalterado nesses 40 anos, como o fundamentalista parece pensar. Se ele pode alegar que a continuidade está implícita, por que não podemos igualmente alegar que a descontinuidade está implícita?
Ou até mais forte: quem disse que não foi afirmado explicitamente? Realmente não tem um trecho do Deuteronômio dizendo ‘não mais sejam contra o sexo anal entre homens em todas as circunstâncias’. Entretanto, tem um texto que fala diretamente sobre não haver kadesh entre teu povo e uma lista de atos sexuais proibidos que não mais cita aquela proibição geral que antes era citada naquela lista. Isso é mudar de forma implícita ou explícita?
E de fato temos exemplos de modificações de entendimento entre os livros posteriores versus os anteriores da Torá. O livro de Êxodo famosamente permite sacrifícios em diversos lugares (Êxodo 20:24–25). Já o livro de Deuteronômio institui uma centralização num único lugar que o Eterno escolherá (Deuteronômio 12:5-7). Também aqui nós vemos a vagueza entre o implícito e o explícito. Não é dito aqui que “por meio desta a regra do êxodo fica revogada”, mas se comenta sobre um assunto de uma maneira que restringe a maneira como esse assunto fora comentado antes.
Então, com base nessas considerações, podemos dizer que NO MÍNIMO essa hipótese alternativa de que, com a não repetição no livro de Deuteronômio, isso significa que a proibição do Levítico fora revogada ou teve seu entendimento restringido é tão boa quanto a hipótese padrão do fundamentalista. E talvez seja mesmo uma hipótese melhor, que torna mais plausível o que veríamos como uma progressão ao longo do tempo de um autor e sua obra, ou mesmo de uma legislação mais antiga para uma mais nova.
E se esta hipótese for no mínimo tão boa quanto a outra, isso significa que a outra suposição do fundamentalista, de que os demais autores bíblicos pressupunham a proibição do Levítico da forma como a entendemos, também não necessariamente seria a melhor hipótese.
Uma hipótese no mínimo tão boa quanto essa a principio é de que os autores bíblicos pressupunham que, entre a escrita do Levítico e a escrita do Deuteronômio, Moisés revogara aquela proibição ou mudara o seu entendimento de uma forma mais restritiva. Isso explicaria porque 1Reis e Jó reprovam os kadesh como o Deuteronômio o faz, mas não citam a proibição de Levítico, que simplesmente ninguém cita. Então, a proibição do Levítico como a entendemos realmente não seria pressuposta pelos outros livros bíblicos — o MESMO RESULTADO que chegamos sem supor a autoria mosaica no post anterior.
Dessa forma, vemos que, MESMO sob a suposição da autoria mosaica da Torá, a leitura tipicamente fornecida pelos fundamentalistas cristãos NÃO é a única possível, e nem mesmo é claramente melhor que outras leituras que não são consideradas. Ao contrário, como mostrei aqui, parece que uma outra leitura, onde a proibição do Levítico (entendida em termos gerais) não é pressuposta pelos demais autores bíblicos, e nem mesmo no livro de Deuteronômio (mesmo sendo do mesmo autor), seria até mais coerente ou viável.
Se não achamos que essa segunda opção de leitura é legitima, ou se ela nos parece forçada, é apenas porque somos TÃO ACOSTUMADOS com a outra leitura (dos fundamentalistas) que nem nos damos conta da sua fragilidade.
Antes de passarmos para a segunda razão do Levítico, o próximo post se ocupará de um detalhe técnico sobre a questão da prostituição ritual como uma explicação para o texto de Levítico.
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