[67] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 14- E Se Não Existiu Prostituição Ritual no Antigo Israel?

A Estrela da Redenção
6 min readNov 4, 2020

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No post [64], vimos que a prostituição ritual é a chave para entender de onde veio essa proibição que o livro de Levítico estabeleceu ao sexo anal entre 2 homens. Essa regra era originariamente pensada para impedir a relação sexual com um kadesh, um prostituto cultual, como uma forma de ritual idólatra.

Nos posts seguintes [65]-[66], vimos como isso explica a ausência de repetição dessa regra seja dentro da própria Torá no livro de Deuteronômio (que repete leis associadas como a do incesto e da zoofilia, e que tem uma lei quanto ao kadesh) seja nos outros livros da Bíblia Hebraica.

Mas o leitor ainda pode estar intrigado por uma coisa.. Existem alguns estudiosos que consideram que a ocorrência de prostituição cultual não era comum, nem prevalente, ou mesmo que sequer tenha existido em toda aquela região do Oriente Médio. Entre alguns destes chega-se tão longe a ponto de dizer que o termo ‘k’deshah’ originalmente não significava ‘prostituta consagrada’, mas algo mais próximo de ‘virgem consagrada’… (o que afetaria diretamente nossa interpretação do termo ‘kadesh’) Além disso, também afirma-se, alternativamente, que mesmo que houvesse tais ritos sexuais, estes não eram feitos sob pagamento, então não seria correto chamar isso de ‘prostituição’ que pressupõe fazer sexo por dinheiro.

E agora? Será que isso demole o argumento desenvolvido por mim nos últimos 3 posts?

Seated Woman II [Mulher Sentada II], Joan Miró, 1938.

Bem… eu não vejo como isso poderia afetar substancialmente o ponto que desenvolvi acerca disso. Essa visão sobre a inexistência ou raridade da prostituição consagrada é controversa e não acho que os estudiosos que a defendem tenham trazido evidência conclusiva disso.

Entretanto, MESMO se for verdade que não havia prostituição consagrada ou que esta não fosse comum, AINDA ASSIM tudo o que eu disse seria válido, talvez com algumas adaptações.

Primeiro, se a questão for sobre os ritos sexuais serem feitos, mas não serem pagos, praticamente nada muda. A questão do kadesh então seria sobre relações sexuais de um israelita com outro israelita praticante sexual não pago de rituais sexuais. A única diferença do que disse nos posts anteriores é que não haveria dinheiro no meio.

Segundo, se a questão for sobre o sentido original do o termo ‘k’deshah’ (e ‘kadesh’, como seu masculino), isso corta para os dois lados. Se estamos equivocados sobre a k’deshah ser uma prostituta consagrada, e esse termo na verdade originalmente significasse uma virgem consagrada, isso significa que foi apenas depois (pelo menos na era romana na qual viveram os sabios do Talmude como rabi Ismael citado no post [64]) que veio a se entender a k’deshah como prostituta consagrada e o kadesh como prostituto consagrado. Mas isso significa que IGUALMENTE podemos não entender o sentido original de Levítico 18:22.

Lembre que lá no post [56] eu disse que o que Levítico 18:22 proíbe é que um homem se deite “mishk’vei ishah” com outro homem. Ali eu disse que essa expressão significa literalmente “na cama de mulher”, mas que seu sentido e a do ato sexual anal entre dois homens.

Agora pense, SE nós endossarmos uma tese segundo a qual o sentido gramatical de kadesh só depois veio a ser associado com prostituição cultual masculina, é bem plausível achar que o sentido gramatical de mishk’vei ishah também só depois veio a ser associado com o sexo anal entre dois homens.

No caso de kadesh, a tradução mais literal seria ‘consagrado’, designando originalmente alguém que foi consagrado para um deus (com sua virgindade), mas depois vieram a ler isso como ‘[prostituto] consagrado’, segundo essa visão de que estamos falando.

No caso de mishk’vei ishah, a tradução mais literal seria ‘na cama de mulher’, que depois veio a ser associado como ‘fazer um ato sexual como o que se faz com mulher com alguém que não é uma’, mas que na origem poderia significar alguma outra coisa. (por exemplo, quando você pesquisa sobre esse assunto na internet, vai encontrar alguns alegando que ‘na cama de mulher’ significaria na origem a proibição de dois homens se deitarem na cama de uma mulher)

Não me entenda errado: eu não estou dizendo que os mesmos autores que acham que não existia prostituição cultual na antiguidade afirma que o significado de mishk’vei ishah era outro na sua origem (são diferentes areas de pesquisa), e nem estou dizendo que o significado original seria uma tradução literal da expressão.

O que estou querendo dizer e que SE você acha que no caso do kadesh, o sentido original era 1) diferente do que veio a ser associado com atos sexuais entre homens e 2) mais próximo da tradução literal do termo (nesse caso, ‘consagrado’ ou ‘santificado’), ENTÃO isso torna mais plausível para você que, no caso de mishk’vei ishah’, o sentido original era 1) diferente do que veio a ser associado com atos sexuais entre homens e 2) mais próximo da tradução literal do termo (nesse caso, ‘na cama de mulher’).

De igual forma, se você não acha que o sentido original do kadesh veio a mudar para significar outra coisa, também é menos plausível para você que o sentido original de mishk’vei ishah tenha mudado para significar outra coisa.

Então, sob essa visão de que o termo ‘kadesh’ não era prostituto cultual na origem, faz sentido pensar que, quando esse termo passou a ser ressignificado como um prostituto cultual que tinha relações sexuais com outro homem, isso afetou como se entendia ‘mishk’vei ishah’ de maneira a ressignifica-lo como envolvendo atos sexuais entre dois homens também.

Ou seja, o revisionismo cortaria para esses dois lados, e, assim, ainda haveria uma conexão entre a proibição da prostituição cultual masculina e a proibição do sexo anal entre 2 homens, mas essa conexão não estaria no sentido original daqueles trechos da Torá, mas sim no sentido que esses trechos VIERAM A TER séculos depois de seu contexto original.

Terceiro, se a questão for sobre que nunca teria existido realmente prostituição cultual masculina ou ritos sexuais não pagos envolvendo atos homossexuais entre dois homens em contradição ao que a Biblia Hebraica relata, eu não acho que isso mude muito a questão das razões dos autores dos livros de Deuteronômio e de Levítico.

(Na hipótese sob consideração agora, os termos kadesh e mishk’vei ishah neles significam desde a origem ‘prostituto consagrado’ e ‘sexo anal entre 2 homens’, respectivamente)

Para o livro de Deuteronômio tentar coibir o prostituto cultual e o livro de Levítico tentar coibir o sexo anal entre 2 homens (que, na origem, era pensado num contexto de ritos sexuais), BASTA que os autores desses livros ACREDITASSEM que tais rituais sexuais de fato ocorressem.

Ou seja, talvez os estudiosos revisionistas estejam certos e tais rituais sexuais não ocorressem. Mas o importante para minha explicação sobre a razão central da proibição do Levítico residir na prostituição cultual depende apenas que o autor do Levitico ACHASSE que existia tal prática em terras israelitas. Se ela existia ou não, é uma questão diferente.

Eu posso dizer que a razão de alguém envolve X mesmo que X não exista. Como quando dizemos, por exemplo, que alguém saiu correndo porque temia o lobo atrás do arbusto, MESMO SE não havia lobo atrás do arbusto de fato. Basta que o sujeito tenha acreditado que havia um lobo para isso ser uma razão para ele agir como agiu, independente se havia ou não um lobo atrás do arbusto.

Tendo agora resolvido os detalhes técnicos para entender essa primeira razão para a proibição de Levítico ligada a idolatria, que funciona seja você supondo ou não a autoria mosaica, seja você assumindo ou não a existência real de prostituição cultual no antigo Israel, agora temos de analisar a segunda razão para a proibição do Levítico a que havia referido no post [62], o contexto hierárquico no qual a homossexualidade masculina era praticada na antiguidade. Esse será o tema do próximo post.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.