[68] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 15- Contexto Hierárquico e Humilhação (Razão 2 do Levítico)
No post [62] eu afirmei que haveriam três razões por trás da proibição que o livro de Levítico traz ao sexo anal masculino, razões estas que explicam tanto porque essa proibição se referia exclusivamente a um ato sexual específico (o penetrativo) e exclusivamente ao caso homossexual masculino.
No post [64] eu expliquei a primeira destas razões, que é a razão que também vejo como sendo a mais central para motivar a escrita daqueles trechos: a associação da homossexualidade masculina com a idolatria via prostituição cultual (ou sexo ritual mais amplamente) no contexto do antigo Israel.
O post [63] esclareceu como a ideia do sexo anal masculino como toevah (traduzida geralmente como abominação, mas melhor traduzida como ‘tabu’) já sugeria essa ligação com idolatria, não com erro moral. Os posts [65]-[66] mostraram como essa razão também explica porque o restante da Bíblia Hebraica nunca cita essa proibição (porque não a pressupõe). O post [67] por fim esclareceu que essa razão é operante mesmo se por acaso a prostituição ritual fosse mais um fenômeno imaginado do que real (enquanto eu não concorde com esse diagnóstico, mesmo sob ele essa razão se sustenta).
Agora está na hora de ir para uma segunda razão. E esta se refere ao caráter hierárquico e o aspecto de humilhação social que era conectado ao sexo anal entre dois homens na antiguidade pelas PRÓPRIAS CULTURAS que permitiam esse comportamento. Como eu mostre no post [61], a Bíblia NÃO fala da homossexualidade atual, mas apenas dela no contexto do mundo antigo.
Em diversas culturas ao longo da história, o ativo era visto como superior, e o passivo como inferior. Isso significava que o ato sexual anal envolvia uma humilhação social do passivo, que era inferiorizado por tal ato. Assim, o propósito da regra do Levítico pode ser vista como o de banir esse tipo de ‘humilhação’ como entendida na época.
Existe algum sinal disso na Bíblia Hebraica propriamente dita?
A Bíblia Hebraica nunca descreve uma relação sexual homossexual masculina, nem consensual nem forçada. Mas existem 2 trechos sugerindo a ameaça do estupro de um homem contra outro sendo usado como uma forma de intimidação e violência.
O primeiro trecho está na história de Sodoma e Gomorra (que como veremos no próximo post, é uma história não sobre homossexualidade mas sim sobre maltratar os mais fracos, como entendido desde sempre na tradição judaica de milênios) no livro do Gênesis:
“E antes que se deitassem, cercaram a casa, os homens daquela cidade, os homens de Sodoma, desde o moço até ao velho; todo o povo de todos os bairros.
E chamaram a Ló, e disseram-lhe: Onde estão os homens que a ti vieram nesta noite? Traze-os fora a nós, para que os conheçamos.
Então saiu Ló a eles à porta, e fechou a porta atrás de si,
E disse: Meus irmãos, rogo-vos que não façais mal;” (Gênesis 19:4–7)
O segundo trecho, com uma estrutura narrativa paralela a essa, está no livro de Juízes, onde os habitantes de uma cidade israelita da tribo de Benjamin agem de forma similar aos habitantes de Sodoma:
E levou-o à sua casa, e deu pasto aos jumentos; e, lavando-se os pés, comeram e beberam.
Estando eles alegrando o seu coração, eis que os homens daquela cidade cercaram a casa, batendo à porta; e falaram ao ancião, senhor da casa, dizendo: Tira para fora o homem que entrou em tua casa, para que o conheçamos.
E o homem, dono da casa, saiu a eles e disse-lhes: Não, irmãos meus, ora não façais semelhante mal; já que este homem entrou em minha casa, não façais tal loucura. (Juízes 19:21–23)
Aqui é preciso lembrar que o termo ‘conhecer’ [ידע] na Bíblia Hebraica é usado diversas vezes para designar a relação sexual penetrativa (vide post [56] para os termos hebraicos associados à penetração). E, enquanto o desfecho da história do Gênesis termina sem que ninguém seja ‘conhecido’, o desfecho da história de Juízes deixa claro que esse termo se refere a abuso sexual, culminando no estupro da concubina (pileguesh) do homem, abusada no lugar deste.
Fora esses 2 casos, existe a possibilidade interpretativa de encontrar outro caso na história da embriaguez de Noé no livro do Gênesis:
“E começou Noé a ser lavrador da terra, e plantou uma vinha.
E bebeu do vinho, e embebedou-se; e descobriu-se no meio de sua tenda.
E viu Cam, o pai de Canaã, a nudez do seu pai, e fê-lo saber a ambos seus irmãos no lado de fora.” (Gênesis 9:20–22)
“Ver a nudez de alguém” ou “descobrir a nudez de alguém” pode também sugerir a ocorrência de um ato com a pessoa em questão ou com sua esposa. No contexto dessa história, Noé fica nu bêbado e Cam seu filho “vê sua nudez”.
Enquanto talvez seja consolador imaginar que Cam apenas literalmente viu o pai nu e o desrespeitou por não ajuda-lo mas ir fazer fofoca do acontecido, os sábios do Talmude entendiam que algo muito mais perturbador aconteceu. A opinião majoritária era que Cam na verdade teria castrado o próprio pai, mas como se não bastasse alguns sábios eram da opinião de que, além da castração, Cam teria estuprado o próprio pai! (vide a discussão em Sanhedrin 70a)
Portanto, vemos que, na Bíblia Hebraica, o uso do sexo anal como forma de estupro e de intimidação agressiva de um homem contra outro era bem conhecido.
Antes de prosseguirmos nessa discussão sobre o contexto cultural da antiguidade, teremos de fazer uma digressão sobre algo que pode estar incomodando o leitor.
Eu citei a história de Sodoma e Gomorra, que muitos no meio tradicional e fundamentalista cristãos afirmam ser uma história condenando homossexuais.
Mas no próximo post mostrarei por A+B que a interpretação VERDADEIRAMENTE MAIS TRADICIONAL E MAIS ANTIGA sobre a história da destruição de Sodoma não tem ABSOLUTAMENTE NADA A VER com homossexualidade. A interpretação que liga Sodoma com gays é muito mais recente, e ocorreu apenas no meio cristão, tendo o meio judaico preservado o entendimento original sobre isso.
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