[65] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 12- O Resto da Bíblia Hebraica NÃO Pressupõe a Proibição do Levítico

A Estrela da Redenção
7 min readOct 21, 2020

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Sim, foi exatamente isso que você leu. O motivo para que não haja repetição da proibição de Levítico ao sexo anal entre 2 homens em nenhum outro lugar da Bíblia Hebraica, nem mesmo no livro de Deuteronômio que como vimos no post anterior fala sobre prostituição ritual, é muito simples: os outros livros da Bíblia Hebraica NÃO pressupõem essa proibição.

no post [55] no início desta série eu tinha comentado que LITERALMENTE a esmagadora maioria da Bíblia Hebraica NÃO LIGA para a homossexualidade masculina (e nem feminina, a qual nem o Levítico proíbe). Os livros históricos, os livros dos Profetas, os livros de cânticos, os livros de sabedoria, os livros com personagens individuais, e mesmo os outros quatro livros da Torá…. EM NENHUM MOMENTO eles tocam no assunto.

Cheguei mesmo a fazer uma comparação com outras regras bíblicas. A guarda do Shabat (Sábado) é mencionada no Êxodo, no Deuteronômio e no Gênesis dentro da Torá, e fora dela nos livros dos profetas Isaías e Ezequiel. O ano sabático é mencionado dentro da Torá pelo Êxodo e pelo Levítico, mas fora dela é mencionada no livro histórico de 2Crônicas. Proibição do incesto é referida no Levítico e no Deuteronômio (dentro da Torá), mas também no livro do profeta Ezequiel. Leis dietéticas? Gênesis, Levítico, Deuteronômio, Isaías, Ezequiel….

Essa referência cruzada é comum a muitas outras instâncias de preceitos encontrados na Torá. Mas o caso daqueles 2 trechos do Levítico é incomum: sem referência cruzada com os outros livros da Torá e nem com quaisquer outros fora dela.

E isso agora é ainda mais reforçado pelo post anterior onde vimos que existe uma regra no livro de Deuteronômio (que também faz parte da Torá) contra prostituição cultual masculina, que é repetida, via sua aplicação, no livro de 1Reis.

Ali eu citei 1 Reis 14:24, mas o termo kadesh (prostituto cultual) é usado também em 1Reis 15:12, 1Reis 22:46 e 2Reis 23:7 (1Reis e 2Reis na verdade são um livro único chamado Reis/Melachim). E fora do livro dos Reis, aparece em Jó 36:4. Então, mesmo a parte do kadesh que se aproxima da proibição do Levítico é repetida, mas essa mais geral do Levítico não é.

Esses fatos já deveriam ser um sinal de alerta para o leitor atento. Tem algo que está nos escapando nisso tudo…. O que seria?

Muitas vezes as explicações mais simples devem ser favorecidas. Pensar que todos esses livros pressupunham aquela regra do Levítico sobre sexo anal entre homens mas NUNCA a aplicam, mesmo se uma vez ou outra aplicam a ideia sobre prostituição cultual masculina constante de Deuteronômio (em Reis e Jó), e ainda mais considerando que tais livros foram escritos ao longo de vários séculos (sob quaisquer hipóteses de autoria dos diversos livros), é simplesmente acreditar numa coincidência astronômica.

Teríamos de aceitar que TOTALMENTE AO ACASO nunca ocorreu de algum deles sentir a necessidade de falar disso, mesmo eles CONSTANTEMENTE criticando uma série de violações aos preceitos bíblicos como ocorrendo rotineiramente, incluindo violações fortemente paralelas como a da prostituição cultual masculina e do incesto.

Muito mais simples é admitir o óbvio: esses outros livros não falam disso porque essa regra não era conhecida por eles. Aceitar isso não demanda nenhum acaso extraordinário, ao contrario, os dados observados seriam exatamente o esperado se essa explicação fosse a verdadeira. Assim, por inferência à melhor explicação, alcançamos a conclusão de que os outros livros não pressupõem essa regra do livro de Levítico.

Como isso pode ser o caso? Bem, temos de examinar dois cenários: 1) rejeitando a autoria mosaica da Torá (visão mais aceita academicamente) 2) supondo a autoria mosaica da Torá (visão tradicional).

Em primeiro lugar, se rejeitamos que Moisés escreveu a Torá inteira (os primeiros cinco livros da Bíblia: Gênesis/Bereshit, Êxodo/Shemot, Levítico/Vayicrá, Números/Bamidbar, Deuteronômio/Devarim), a coisa fica bem mais direta.

Se Moisés não escreveu a Torá, isso significa que ela foi escrita ao longo de um período de vários séculos por diversas pessoas e, depois, foi compilada e editada na forma que a encontramos hoje. Um processo que se concluiu provavelmente por volta de 500 AEC ou um pouco depois, após o retorno dos judeus exilados da Babilônia (mas iniciado bem antes do exílio).

Pogrom, Issachar Ber Ryback, 1919, retratando Rabinos fugindo protegendo a Torá.

Segundo a hipótese documentária, as tradições Javista e Eloísta teriam sido as mais antigas (anteriores aos profetas literários), enquanto as tradições Deuteronomista e Sacerdotal as mais recentes. Essas duas últimas são as mais relevantes para nós aqui porque a escola Deuteronomista foi quem escreveu o livro de Deuteronômio (e alguns livros históricos como o livro dos Reis) e a escola Sacerdotal que foi responsável em grande parte pelo livro de Levítico.

As escolas Deuteronomista e Sacerdotal atuaram no mesmo período de parte dos profetas israelitas clássicos (os primeiros profetas são prévios a ambas), os quais discuti extensivamente nesse blog (do post [18] ao post [46] com poucas exceções entre esses dois não sendo sobre esse assunto). Isto significa duas coisas:

  1. Os livros dos profetas não pressupõem essas duas tradições (mas apenas as duas outras, a Javista e a Eloísta) e, ao contrário, eles as influenciam e a depender do profeta específico (Jeremias com os Deuteronomistas, Ezequiel com a Sacerdotal) estão em certo diálogo com elas.
  2. As regras de que essas duas tradições falam mas que os profetas não falam são provavelmente desenvolvimentos originais dessas tradições. (Ou pelo menos não podemos dizer que eles tiraram isso diretamente dos profetas)

Com isso em mente, conseguimos datar a atuação dessas escolas. A Deuteronomista já começa antes do exílio, pelo menos desde o governo do Rei Josias em Judá (Reino do Sul). A primeira versão do livro de Deuteronômio e dessa época pré-exílica. Já a escola Sacerdotal atuou a partir do exílio (lembram da conexão entre Levítico e Ezequiel que eu mencionei no post [63]?) e concluiu seu trabalho apenas depois do exílio. Ou seja, a maioria dos profetas na verdade atuou ANTES da escola Sacerdotal fazer seu trabalho.

O objetivo da escola Sacerdotal era compilar e desenvolver as leis dos rituais feitos no Templo que havia sido destruído, na expectativa de sua reconstrução e retomada de seus serviços. E depois, quando essa reconstrução já estava ocorrendo, apoiar a retomada dos serviços. Eles provavelmente já tinham antes uma versão mais simples do Código da Santidade, um conjunto de leis presente no livro de Levítico (onde a lista de atos sexuais proibidos está), mas a expandiram e acrescentaram detalhes adicionais.

Agora vejam como fica cristalino: Deuteronômio cita a questão do kadesh (23:17) e cita uma lista menor de atos sexuais proibidos (27:20–23) que inclui incesto e zoofilia mas não sexo anal entre 2 homens (enquanto Levítico 18:6–23 cita incesto — com mais detalhes — e zoofilia mas inclui sexo anal entre 2 homens e sexo durante a menstruação).

Da lista de atos sexuais em Deuteronômio 27:20–23 mais a proibição do prostituto cultual masculino em 23:17, a gente NÃO consegue deduzir a proibição de Levítico 18:22 que é muito mais geral em escopo. Assim, a redação do Deuteronômio não conhecia uma proibição geral ao sexo anal entre 2 homens. Isso foi uma novidade do Levítico que, como já dito, tem sua redação posterior a do livro de Deuteronômio.

Claramente Levítico 18:6–23 expande Deuteronômio 27:20–23 (seja usando–o diretamente como fonte ou por meio de uma fonte comum a ambos contendo tal lista menor).

E no afã de proteger a pureza do culto, parece que a escola Sacerdotal incluiu a proibição de Levítico 18:22 para impedir de uma vez por todas a prostituição ritual masculina, uma vez que, com isso, introduziram uma proibição para o próprio ‘cliente’. Para completar, ainda estabeleceram uma penalização em Levítico 20:13 para ambos que tornava inviável manter esse tipo de prática de forma pública como houve (ou se pensava que tinha havido) antes do exílio. The end.

Assim, apenas a última tradição da Torá a ser finalizada continha essa regra. Não a tinham as outras tradições da Torá, nem a tinham os livros dos profetas, nem os livros da História Deuteronomista, nem os estratos dos Salmos e dos Provérbios que já existiam antes da finalização do livro de Levítico. (E nem outros livros bíblicos ou partes deles que foram escritos antes do de Levítico)

E quanto aos livros da Bíblia Hebraica que foram feitos ou completados apenas depois do livro de Levítico? Bem, aqui já existem duas possibilidades:

  1. não tomaram conhecimento dessa regra por ser uma adição muito recente ao tempo de sua escrita,
  2. não usavam essa regra (mesmo se tivessem como saber dela) porque à época ela fosse relevante apenas em contextos sacerdotais e rituais (considerando que seu foco era na prostituição ritual), não os contextos (geralmente) sapienciais desses livros mais tardios.

Mas mesmo se um ou outro desses mais tardios a pressupusesse num sentido mais forte, o impacto disso neles parece nulo, o que torna essa hipotética pressuposição quase irrelevante na prática.

Essa regra só é de fato pressuposta com impacto significativo quando entrarmos na era dos Chazals mais antigos (Zugot e Tanaim) cuja tradição oral foi compilada na Mishná (no Talmude), período este que inclui o do Novo Testamento.

Ou seja, apenas quando uma noção de cânon tornou-se bem estabelecida, após o livro do Eclesiástico ter sido escrito por volta de 180 AEC (um apócrifo para judeus e cristãos protestantes, deuterocanônico para cristãos católicos e cristãos ortodoxos orientais), é que podemos começar a levantar essa questão da pressuposição. Na Bíblia Hebraica apenas o livro de Daniel foi finalizado um pouco depois do Eclesiástico (suas últimas porções foram redigidas por volta de 167 e 164 AEC), ainda nessa época de transição.

Mas e se supormos a autoria de Moisés como era a opinião tradicional? Será que esse veredicto muda? Veremos isso no próximo post.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.