[64] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 11- Prostituição Cultual Masculina (Razão 1 do Levítico)
Como vimos no post anterior, o significado primário de toevah como tabu por associação à idolatria deixa claro que, para entendermos o significado dos dois trechos de Levítico sobre o sexo anal entre dois homens um dos quais (18:22) usa toevah diretamente para esse ato, temos de procurar alguma forma de idolatria que recorresse a relações sexuais dentro de suas práticas.
O cerne dessa questão encontra-se na prática idólatra da prostituição ritual. Com suas prostitutas consagradas (k’deshah) e também.. prostitutos consagrados (kadesh). Note que esses termos tem a mesma raiz de kadosh, Santo, que é um atributo de Deus e daquilo que é separado e dedicado a Deus. Obviamente não por coincidência.
O livro de Deuteronômio (também da Torá junto com Levítico) explicitamente proíbe esse tipo de prática:
“Não haverá prostituta cultual (k’deshah) dentre as filhas de Israel; nem haverá prostituto cultual (kadesh) dentre os filhos de Israel.” (Deuteronômio 23:17)
No livro dos Reis, essa prática é considerada como uma das toevot que levaram o Reino do Norte de Israel ser exilado pelo Império Neo Assírio:
“Também construíram para si altares idólatras, colunas sagradas e postes sagrados sobre todos os montes e debaixo de todas as árvores frondosas. Havia no país até prostitutos cultuais (kadesh); o povo se envolvia em todas as práticas detestáveis (toevot) das nações que o Senhor havia expulsado de diante dos israelitas.” (1 Reis 14:23-24)
Uma coisa curiosa é que em traduções mais antigas para o português, como a da Almeida Corrigida e Revisada, a tradução do termo ‘kadesh’ era ‘sodomita’, uma tradução já muito carregada com um viés anti homossexual. (Ainda falaremos mais pra frente nessa série sobre essa infame palavra)
Isso altera muito o significado, pois o motivo para o exílio não foi que haviam homossexuais no país e sim que haviam prostitutos CULTUAIS, isto é, praticantes de idolatria por meio de atos sexuais (que, nesse caso, aconteciam de ser atos sexuais entre homens).
Dentro do Talmude, a conexão dos 2 trechos acima com o significado de toevah do “mishk’vei ishah” (deitar com [alguém como se] mulher; isto é, sexo anal entre dois homens) de Levítico 18:22 não foi esquecida.
Como já havia destacado no post [56], o trecho de Levítico 18:22 traz apenas uma proibição para o lado ativo da penetração anal. É apenas o outro verso, Levítico 20:13, que fala também do passivo ao penalizar ambos. Os rabinos do Talmude eram sensíveis também à ausência do pólo passivo em Levítico 18:22. Por isso, eles discutiam em qual verso exatamente se encontraria, por inferência (isto é, não diretamente), a proibição para o lado passivo da penetração anal entre dois homens, que a penalização para ambos no verso 20:13 já pressuporia (Bavli Sanhedrin 54b).
Rabi Ismael (Ishmael) foi uma das maiores figuras do Talmude, ao lado de Rabi Akiva. Exemplo disso é que Rabi Ismael foi o responsável pela ideia de 13 regras de interpretação que esclarecem a Torá e permitem inferências dela para desenvolver a Halacha (Jurisprudência Judaica Tradicional). Veja o existencialista judaico R. Abraham Heschel em seu Torah min Hashamayim/Heavenly Torah: as refracted trough the generations, para uma análise muito aprofundada dos debates R. Ismael x R. Akiva na feitura da Mishná.
Ocorre que Rabi Ismael buscava o fundamento para a proibição do lado passivo da relação sexual anal entre dois homens justamente no verso de Deuteronômio 23:17. Segundo Rabi Ismael, k’deshah e kadesh designam a prostituição cultual, na qual mulheres e homens estavam disponíveis para homens que celebravam esses rituais sexuais.
Note: prostitutas e prostitutos disponíveis para HOMENS que celebravam esses rituais sexuais. Isso ajuda a entender porque o foco bíblico está na relação sexual homossexual masculina, que era associada a esse tipo de ritual idólatra, e não na relação sexual homossexual feminina, uma vez que as prostitutas rituais praticavam relações sexuais heterossexuais.
E Rabi Ismael também recorrera ao verso de 1 Reis 14:23-24, que associa diretamente o kadesh (prostituto) à toevah (tabu), o termo usado em Levítico 18:22 que foca no parceiro ativo do ato sexual anal entre dois homens.
Isso nos permite concluir que, no antigo Israel, o parceiro passivo voluntário do ato sexual anal entre homens (mishk’vei ishah) de Levítico 18:22 era (concebido como) o prostituto cultual, o kadesh! Um contexto original que foi aos poucos se tornando esquecido, mas que ainda ficou preservado nessa engenhosa tradição oral de Rabi Ismael.
Assim, juntando Levítico 18:22 e Deuteronômio 23:17, fica muito claro que o objetivo dessas regras era tentar impedir que um homem israelita qualquer fosse o parceiro ativo (Levítico 18:22) de um ato sexual anal com um kadesh, um prostituto cultual, como seu parceiro passivo (Deuteronômio 23:17). E daí ambos poderem ser penalizados em Levítico 20:13, porque ambos cometeram uma forma de idolatria, ou seja, toevah!
Agora ficou muito mais compreensível né? Eu já havia alertado no post [61] que a Bíblia não fala da homossexualidade como ocorre no mundo moderno, e sim como ela ocorria no mundo antigo no qual o antigo Israel existiu.
Naquele contexto formativo os escritores do Levítico (e do Deuteronômio) estavam lidando com casos (reais ou imaginados) de prostituição ritual masculina e concebendo o sexo anal entre dois homens como sendo praticado nessas circunstâncias. Eles não estavam tentando julgar a homossexualidade masculina (e muito menos a feminina) para todos os tempos, lugares e circunstâncias concebíveis e imagináveis.
Para entender melhor o livro de Levítico como um todo em termos acadêmicos, recomendo muito “Leviticus como Literature” [Levítico como Literatura] da antropóloga Mary Douglas, um clássico indispensável nesse assunto. Levítico tem uma estrutura literária meticulosamente arranjada com propósitos muito interessantes. E a referida autora é especialista na questão da pureza e do tabu rituais como encontrada em diversos povos (não apenas no hebreu/judeu), como abordado em seu outro clássico, “Pureza e Perigo: ensaio sobre a noção de poluição e tabu” (2002).
Agora, antes de prosseguirmos para uma segunda razão que pode ter influenciado aqueles trechos de Levítico, ainda será preciso esclarecer mais uma coisa. Vimos que o livro de Levítico fala do sexo anal entre dois homens, e o livro de Deuteronômio fala da prostituição cultual masculina. Mas porque eles não fazem referência direta ao que o outro falou?
Lembrem que eu disse no post [55] que os versos do Levítico sobre homossexualidade masculina são muito estranhos porque nunca são repetidos em nenhum outro lugar da Bíblia Hebraica, na qual é comum a repetição dos padrões de conduta. Agora está na hora de mostrar porque isso é muito mais significativo do que parece.
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