[72] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 19- Bíblia Fala APENAS da Homossexualidade na Antiguidade (Hierárquica)

A Estrela da Redenção
6 min readNov 29, 2020

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Nos últimos posts do blog, abordei como uma segunda razão para o Levítico trazer uma proibição geral para o sexo anal entre dois homens é que esse tipo de relação era associada com contextos hierárquicos e de humilhação social do ativo para com o passivo.

Como eu já havia dito no post [61], a Bíblia (seja a Bíblia Hebraica ou o Novo Testamento) NÃO falam da homossexualidade no mundo atual, mas sim como ela era (vivenciada ou concebida) no mundo antigo.

E a diferença primordial entre o mundo atual e o mundo antigo nisso reside no caráter hierárquico no qual essas relações homoeróticas penetrativas entre dois homens ocorriam. Esse caráter é, nesse sentido, problemático inclusive para as pessoas do mundo de hoje que são inclusivas na questão LGBT (tal como também haviam aspectos questionáveis da heterossexualidade no mundo antigo, até porque como veremos isso não era completamente separado no mundo antigo).

Mas talvez eu esteja sendo um pouco vago ainda. Que mundo antigo era esse? Seria o antigo Israel? Bem, isso na verdade é difícil de afirmar.

Nós vimos que a razão principal para o livro de Levítico trazer uma proibição para o sexo anal entre 2 homens era a associação (real ou imaginada) disso com prostituição ritual e idolatria, como vemos em Deuteronômio e Reis (e uma alusão em Jó). Contudo, isso significaria que tal proibição seria mais relevante num contexto de ritual, evitando que um israelita participasse de um ritual sexual idólatra, e não num contexto geral.

Por outro lado, outros textos da Bíblia Hebraica (em Gênesis e Juízes) aludem ao sexo anal entre 2 homens no contexto da ameaça de estupro de um homem por outro. Contudo, mesmo acrescida essa evidência textual, ainda nos escapa onde chegamos na ideia de que o texto de Levítico proíbe o sexo anal entre 2 homens feitos num contexto voluntário (sem estupro ou agressão) sem que este seja um caso de prostituição ritual.

Em resumo: com base em nossa evidência textual da própria Bíblia Hebraica em relação ao que seria o mundo antigo em termos do antigo Israel, o antigo Israel conheceu casos de sexo anal entre 2 homens como sendo praticado 1) em contextos de rituais sexuais ou 2) em contextos de estupro. Os escritores bíblicos não parecem ter concebido o caso do sexo anal entre 2 homens feitos num contexto voluntário sem ritos sexuais envolvidos.

Então, o mundo antigo de que estamos falando tem de ser outro: a antiguidade greco-romana, helenista (em especial sob o Império Romano). Foi aqui que a cultura judaica ‘conheceu’ o caso omisso em suas Escrituras, do sexo anal entre 2 homens feitos num contexto voluntário sem ritos sexuais envolvidos, e para o qual ela veio a aplicar o texto do Levítico.

A razão para aplicar esse texto a esse caso? O contexto hierárquico em que ela era praticada NESSE mundo antigo cuja cultura hegemônica (greco-romana) havia subjugado os judeus politicamente e por vezes tentava impor-se culturalmente a eles. Isso começou a afetar a cultura judaica durante o período de dominação grega/helenista, seguida da dinastia judaica Hasmonéia independente, e chegou no seu ápice no período romano.

E como isso era nesse mundo antigo afetou de forma especial o entendimento desse texto porque a dominação romana (sucessora como vimos da dominação grega/helenista, mas que fora interrompida pelo período judaico independente Hasmoneu) foi justamente o período no qual:

  1. o cânon das Escrituras Hebraicas já estava quase totalmente formado (sendo os últimos escritos canônicos em disputa canonizados nesse período) e acessível para uma interpretação global;
  2. o judaísmo do Segundo Templo chegou no seu fim;
  3. a tradição rabínica se cristalizou;
  4. o cristianismo surgiu (e foi parcialmente influenciado pela interpretação da tradição rabínica, sendo que seus aspectos distintivos em relação à tradição rabínica nesse assunto serão discutidos mais pro final desta série).

E como era a homossexualidade masculina nesse mundo antigo?

Na obra “História da Vida Privada, Volume I: Do Império Romano ao Ano Mil” (1985; edição de 2009), vemos o seguinte:

“Tal escravagismo constitui um machismo: possuir e não ser possuído; os jovens se desafiavam num estilo fálico. Ser ativo era ser macho, qualquer que fosse o sexo do parceiro passivo; havia, pois, duas infâmias supremas: o macho que leva a fraqueza servil a ponto de colocar a boca a serviço do prazer de uma mulher e o homem livre que não se respeita e leva a passividade (impudicitia) ao ponto de se deixar possuir. A pederastia, sabemos, constituía um pecado menor, desde que fosse a relação ativa de um homem livre com um escravo ou um homem de baixa condição; as pessoas divertiam-se com isso no teatro e vangloriavam-se disso na alta sociedade. Como qualquer indivíduo pode ter prazer sensual com o próprio sexo, a tolerância antiga levou a pederastia a difundir-se bastante e superficialmente: muitos homens com vocação heterossexual tinham assim um prazer epidérmico com os meninos; também se repetia proverbialmente que os meninos proporcionam um prazer tranquilo que não agita a alma, enquanto a paixão por uma mulher mergulha o homem livre em dolorosa escravidão.” (Veyne, p. 185)

Isso é um resumo de algo muito conhecido pelos historiadores. O rabino (ortodoxo) Steven Greenberg em seu livro “Wrestling with God and Men: Homosexuality in the Jewish Tradition” (2004) cita diversas obras (de nomes como Kenneth James Dover, Eva Canterella, Michael Foucault, Daniel Boyarin e David Halperin) que mostram que nos mundos grego e romano antigos a sexualidade era vista como uma relação de poder ou dominação:

  1. Um homem cidadão livre poderia ter relação sexual com um escravo, um garoto ou uma mulher, mas não com um cidadão de igual status (o qual era mesmo legalmente processável);
  2. A divisão era entre penetradores, homens, e penetrados, mulheres ou homens, organizados hierarquicamente de modo que a que o penetrador seja superior ao penetrado, o qual sempre é um subordinado;
  3. Um homem cidadão que tivesse se subordinado sexualmente a um igual era rebaixado socialmente à categoria das mulheres, estrangeiros e escravos, e tinha sua cidadania perdida ou restringida. (veja Greenberg, p. 196–197)

Ou seja, ao contrário do mito popular, o mundo antigo não era um mundo inclusivo e sem preconceitos no qual a homossexualidade masculina foi livremente praticada até que viessem os fanáticos judeus para estragar a festa. Na verdade, era um mundo extremamente desigual no qual as próprias relações homoeróticas masculinas participavam de tal desigualdade. Isso vale mesmo para Atenas e Esparta. O cidadão deve penetrar, não ser penetrado, porque ser penetrado é ser rebaixado.

A tradição judaica rabínica da época (incluindo aqui o tempo de Jesus) reagiu com uma postura igualitária contrastante a tal hierarquia sexual helenista. A penetração sexual que no mundo greco-romano organiza os homens numa hierarquia NÃO fará o mesmo no mundo judaico. Ali nenhum homem está sujeito a ser penetrados por seus superiores, nem mesmo se forem pobres, de status social inferior, escravos, estrangeiros ou juvenis. Sua falta de poder não o torna sexualmente disponível aos poderosos como ocorria na hierarquia greco-romana!

“Fantasy in Equilibrium” [Fantasia em Equilíbrio], Jock Macdonald, 1948.

Claro que do nosso ponto de vista moderno poderíamos preferir que eles tivessem reagido de outra maneira, mais parecida com a nossa: quaisquer relações homoafetivas são legítimas desde que fora de um contexto abusivo, ao invés de tornar o sexo anal entre 2 homens algo ilegítimo. Mas naquele contexto cultural era difícil não chegar na conclusão de que o sexo anal entre 2 homens sempre seria algo humilhante e hierarquizante, tão ubíqua essa concepção era na época.

(E isso ajuda a entender porque tal proibição não se estende às relações lésbicas nem às relações homoeróticas masculinas não penetrativas — apesar de que estas últimas podem levar ao risco do ato proibido — já que o ponto era a penetração entre homens associada à humilhação e hierarquia, mas não outros atos que com isso não fossem associados)

Então, entender o texto do Levítico (já legado a eles escrito de uma maneira geral, isto é, sem especificar um contexto) como aplicando-se a quaisquer casos de sexo anal entre 2 homens foi uma consequência dos rabinos (juízes/juristas tradicionais) desse período terem, com isso, pretendido rejeitar 1) a desigualdade entre homens na esfera íntima e 2) o vínculo da masculinidade com uma sexualidade predatória baseada em poder, ambas associadas ao sexo anal entre 2 homens no mundo greco-romano.

Ou seja, sua conclusão foi baseada na maneira problemática como esse tipo de relação sexual era praticada e conhecida no mundo antigo, que foi o único caso de sexo anal voluntário entre 2 homens (fora de rituais idólatras) que eles DE FATO avaliaram.

Casos nos quais a relação sexual anal estivesse presente e ainda assim houvesse afetividade e respeito como iguais entre os homens envolvidos nunca passaram pelas cabeças daqueles rabinos, e, portanto, tais casos NÃO foram avaliados por eles.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.