[102] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 49- Há inferno no Novo Testamento?

A Estrela da Redenção
10 min readApr 4, 2021

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No post [92], logo antes de começar a falar sobre a questão do Novo Testamento em sua relação à Bíblia Hebraica, comentei que a ideia de inferno simplesmente NÃO existe na Bíblia Hebraica (vulgarmente conhecida como ‘Velho’ Testamento) e que isso não é controverso. É UM FATO bem conhecido no estudo acadêmico da Bíblia e que, bem, sempre foi conhecido pelos judeus ao longo desses mais de 3.000 anos de história, cuja tradição oral também não endossa esse conceito (o mais ‘próximo’ sendo o do guehinom ou geena mas ainda bem diferente). Por isso, da perspectiva da Bíblia Hebraica e do judaísmo, essa questão de se homossexuais vão para o inferno NÃO FAZ SENTIDO.

Agora que estou falando do cristianismo, sabemos que grande parte do cristianismo, especialmente do ocidental, aceita a ideia de inferno, e inclusive de um inferno eterno, como destino para os não salvos. O cristianismo é uma religião de salvação e por isso separa a humanidade entre salvos e não salvos (condenados), algo que NÃO ocorre no judaísmo.*

Há algumas exceções à esse endosso quase universal do inferno mesmo no cristianismo ocidental (o oriental é mais plural que o ocidental, com uma interpretação minoritária de uma possível salvação universal de todos os seres humanos no final das contas, e sua visão tradicional do inferno eterno pode ser interpretada de uma forma diferente da ocidental).

A mais interessante exceção para ser mencionada aqui é a da Igreja Adventista do Sétimo Dia, cujos membros cumprem o Shabat e leis alimentares judaicas, e, tal como os judeus, não encontram a ideia de inferno — muito menos de um inferno eterno — nas Escrituras. Um dos pilares dessa igreja é a rejeição dessa doutrina do inferno, entendida como anti-bíblica e contrária ao caráter divino (espelhado na Lei Divina).

Dito tudo isso, alguém poderia então se perguntar: faz sentido dentro do Novo Testamento se perguntar se homossexuais vão para o inferno?

Aqui a resposta é um tanto ambígua… Eu diria que a resposta é ‘não’, mas com certas qualificações. Ou ‘depende’, porque depende do que se quer dizer com a palavra ‘inferno’. De forma resumida: faz sentido perguntar se os homossexuais serão condenados à morte eterna/destruição final, mas não se eles serão condenados ao inferno (ao menos no sentido clássico).

Para entender isso vamos especificar melhor o que seria o inferno falado na tradição cristã majoritária.

O inferno seria o destino daqueles que não foram salvos, no qual se experimenta sofrimento pelos pecados cometidos. Tradicionalmente, o inferno é, por definição, eterno: o condenado, vivo e consciente, sofre eternamente a separação de Deus. Também tradicionalmente os condenados iriam imediatamente após à morte para o inferno (condenação individual e espiritual ao inferno), e, no dia do Juízo Final, seriam ressuscitados para agora serem novamente lançados no inferno, mas dessa vez de corpo e alma (condenação coletiva e corporal ao inferno). Existem diferentes modos de ajustar os detalhes disso entre diferentes interpretações cristãs, mas em termos gerais é nisso que consiste a doutrina do inferno.

Hell, Canto 5: The Circle of the Lustful, The Whirlwind of Lovers, Francesca da Rimini” [Inferno, Canto 5 (da Divina Comédia): O Círculo dos Luxuriosos, O Redemoinho dos Amantes], William Blake, 1826–1827, reimpresso 1892.

A questão é que, por incrível que pareça, essa doutrina NÃO está no Novo Testamento. Não só a Bíblia Hebraica não tem essa doutrina, como nem mesmo o Novo Testamento cristão a possui!

Contudo, se você ler o Novo Testamento numa tradução em português, de fato você acha que essa doutrina está lá, pois várias passagens falam do ‘inferno’, inclusive ditos do próprio Jesus relatados nos Evangelhos. O problema é que essa tradução oculta o significado original dos diferentes termos gregos assim traduzidos.

São três os termos gregos costumeiramente traduzidos como ‘inferno’ no Novo Testamento: geena, tartarus e hades. (e um bônus, o ‘lago de fogo’, que se relaciona à ideia de condenação eterna, mas que não é traduzida como ‘inferno’) Analisemos cada uma delas.

Em primeiro lugar, ‘Hades’, como muitos com conhecimento superficial da mitologia grega devem saber, era o nome do submundo dos mortos do qual o deus Hades era o governante. Obviamente o Novo Testamento ao usar o nome desse deus grego não pretende endossar toda a carga mitológica por trás dele (muito menos o deus em questão), mas toma um uso já consagrado na Septuaginta de traduzir o ‘sheol’ do hebraico como ‘hades’ no grego.

O ‘hades’ grego não é um lar de almas imortais (como muitos erroneamente entendem a mitologia grega nesse ponto), mas sim o destino de meras ‘sombras’ dos mortos, destituídas de consciência. Além disso, o ‘hades’ nada tem a ver com um local de punição para os pecados, sendo simplesmente o destino de todos os mortos, sejam bons ou maus. Assim, a Septuaginta o entendeu como correlato ao ‘sheol’ hebraico, o subterrâneo terrestre no qual os mortos estão sepultados, uma metáfora para a sepultura que originalmente também tinha essa conotação de mundo de ‘meras sombras’.

No Novo Testamento, segundo o livro do Apocalipse, o ‘hades’ junto com a morte (isto é, a morte junto com a sepultura) será jogado no lago de fogo, ou seja, será destruído:

“E deu o mar os mortos que nele havia; e a morte e o ‘hades’ deram os mortos que neles havia; e foram julgados cada um segundo as suas obras.
E a morte e o ‘hades’ foram lançados no lago de fogo. Esta é a segunda morte.” (Apocalipse 20:13,14)

O termo ‘hades’ no Novo Testamento não é usado para nomear um lugar de punição pós-morte, o que é coerente com o sentido normal desse termo como já vimos, com uma única exceção: uma parábola de Jesus que aparece unicamente no Evangelho de Lucas (16:19–31).

Mesmo supondo que Jesus tenha de fato dito essa parábola tal como escrita ali, é de conhecimento comum que Jesus não falava em grego (o idioma dos Evangelhos), mas sim em aramaico, então os Evangelhos necessariamente apresentam no máximo traduções dos ditos originais, e não diretamente os ditos originais.

Sem saber qual seria o termo aramaico sendo traduzido aqui, é difícil concluir algo sobre o dito original de Jesus que assim foi traduzido. Contudo, dado que isso ocorre numa parábola, isto é, uma história metafórica sem conotação de ser factual, isso não compromete ‘ontologicamente’ o contador da parábola com a real existência de um lugar de punição após a morte. E mesmo se a parábola pressupusesse um lugar real pós-morte, pela maneira como a parábola narra esse tal lugar parece muito mais ligado à ideia de guehinom da tradição judaica oral do que o inferno cristão posterior, guehinom sobre o qual falei no post [92] e voltarei abaixo na análise do segundo termo.

Em segundo lugar, ‘Geena’, um termo muito usado por Jesus, se refere a uma punição para o pecado, mas designa uma destruição física. Veja como esse termo é usado por Jesus:

“Portanto, se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no ‘geenan’. E, se a tua mão direita te escandalizar, corta-a e atira-a para longe de ti, porque te é melhor que um dos teus membros se perca do que seja todo o teu corpo lançado no ‘geenan’.” (Mateus 5:29,30)

“E não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei antes aquele que pode fazer perecer no ‘geene’ a alma [psychen] e o corpo.” (Mateus 10:28)

Ou seja, claramente Jesus assume esse ‘geena’ como um lugar ou tempo de destruição física, morte física, morte do corpo. Sendo que num sentido ainda mais forte, um lugar ou tempo no qual a alma morreria junto ao corpo, o que pressupõe que a ‘alma’ pode morrer.

Por outro lado, como eu disse antes sobre o termo ‘hades’, há uma parábola de Jesus que menciona um lugar de punição pelos pecados pós-morte que se assemelha ao ‘guehinom’ da tradição oral judaica. De fato, ‘Guehinom’ (hebraico mishnáico) e ‘Geena’ (grego) são o MESMO termo em línguas diferentes!

Então, a meu ver a parábola em questão, apesar do Evangelista ter colocado a tradução ‘hades’ no grego (seja por opção do próprio evangelista seja porque ele já encontrou essa tradução numa tradição oral sobre Jesus que ele não compartilha com os outros evangelhos), claramente a parábola no original aramaico se referiria à ‘geena’ (o grego para guehinom).

Essa ideia da tradição judaica oral diz respeito à elevação da alma após a morte, seja passando por uma purificação no guehinom (uma espécie de purgatório) seja aguardando o mundo vindouro no Gan Éden (o jardim do Éden celestial), metáforas da volta da alma para Deus que a deu. Sendo que a purificação no guehinom pode ter 2 resultados: a aniquilação da alma ou sua elevação para o Gan Éden. Por óbvio, no caso da aniquilação, a pessoa não receberá uma porção no mundo vindouro; no caso da elevação, a pessoa receberá uma porção no mundo vindouro.

Percebem como indo para a tradição judaica oral os próprios ditos de Jesus sobre a alma morrer na geena fazem muito mais sentido? Por outro lado, como Jesus geralmente faz referência à destruição física ao falar da geena, isso pode significar que ele a entendia mais como uma destruição iminente dos ímpios que acompanharia a chegada próxima do Reino de Deus, ao invés de um destino pós-morte propriamente dito.

Por fim, temos ‘tartarus’, que eu comentei no post anterior. Esse seria o lugar em 2Pedro 2:4 (e pressuposto também na epístola de Judas, 1:6, e de 1Pedro, 3:19–20, apesar dessas não usarem expressamente essa palavra) onde os anjos rebeldes falados em 1Enoque (um livro de apocalíptica judaica muito influente entre os cristãos da época) foram aprisionados. Provavelmente Apocalipse 20:1–3 ao falar da prisão de Satanás no ‘abismo’ também pressupõe esse mesmo local de aprisionamento de anjos rebeldes. Novamente: longe da ideia cristã de inferno posterior.

Como um bônus, temos o ‘lago de fogo’ do Apocalipse. Essa é a metáfora mais forte para a condenação eterna dos não salvos, e, não obstante, ela é explicitamente decodificada como ‘a segunda MORTE’:

“E a morte e o ‘hades’ foram lançados no lago de fogo. Esta é a segunda morte.
E aquele que não foi achado escrito no livro da vida foi lançado no lago de fogo.” (Apocalipse 20:14,15)

Ou seja, o ‘lago de fogo’ é a morte definitiva, cujo ‘fogo’ (metáfora para ‘destruição causada’) é eterno, ou seja, a destruição que esse fogo causa é irreversível. Assim, uma morte irreversível. Veja também os ditos de Jesus em Mateus 13: 37–43 e Mateus 13:47–50, que seguem essa mesma ideia (e provavelmente ajudam a clarificar o que é a ‘geena’ de que Jesus fala, em termos de um acontecimento futuro de juízo divino).

O mesmo linguajar do julgamento final dos condenados como uma destruição definitiva é apoiado pelas cartas de Paulo:

“Isso acontecerá quando o Senhor Jesus for revelado lá do céu, com os seus anjos poderosos, em meio a chamas flamejantes. Ele punirá os que não conhecem a Deus e os que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus. Eles sofrerão a pena de destruição eterna, a separação da presença do Senhor e da majestade do seu poder.” (2 Tessalonicenses 1:7–9)

“Porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna, por Cristo Jesus nosso Senhor.” (Romanos 6:23)

“Ora, o último inimigo que há de ser aniquilado é a morte.” (1 Coríntios 15:26)

E nas epístolas de Pedro:

“Pela mesma palavra os céus e a terra que agora existem estão reservados para o fogo, guardados para o dia do juízo e para a destruição dos ímpios.” (2 Pedro 3:7)

Nas epístolas de João fica claro que o salvo tem como recompensa a vida eterna, de maneira que os condenados não viveriam para sempre (muito menos sofreriam para sempre):

“Nós sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos. Quem não ama a seu irmão permanece na morte. Qualquer que odeia a seu irmão é homicida. E vós sabeis que nenhum homicida tem a vida eterna permanecendo nele.” (1 João 3:14,15)

“Quem tem o Filho tem a vida; quem não tem o Filho de Deus não tem a vida.” (1 João 5:12)

É comum encontrarmos no meio cristão que se interprete metaforicamente ‘vida eterna’ como felicidade eterna e ‘morte eterna’ como sofrimento eterno, mas se você pegar um dia e ler o Novo Testamento de uma forma mais natural quando fala em ‘vida’ e ‘morte’ (inclusive mais natural considerando a própria Bíblia Hebraica que eram as Escrituras dos próprios autores do Novo Testamento!) ficará claro que faz mais sentido entender isso diretamente como vida e morte mesmo.

Dessa forma, me parece que o veredicto é claro: em termos de Novo Testamento, a questão não é se homossexuais vão para o inferno sofrer eternamente, mas sim se eles estão condenados à morte eterna (que é a aniquilação final). E se você leu os posts anteriores até aqui, provavelmente já estará claro à essa altura que não há uma condenação absoluta aos homossexuais no Novo Testamento.

*Isso é importante ser dito porque judaísmo e cristianismo compartilham vários símbolos que são interpretados muito diferentemente por conta dessa diferença teológica central pela qual o cristianismo é uma religião de salvação e o judaísmo não é uma religião de salvação. Por exemplo, o judaísmo também fala de salvação, tanto por falar de libertações periódicas da opressão (como o povo hebreu sendo liberto da escravidão no Egito) como por falar de um mundo vindouro de redenção completa da humanidade (a era messiânica). Enquanto isso possa superficialmente parecer confirmar ideias cristãs, tudo nessa afirmação é entendido de forma bem diferente do que seria feito em fontes cristãs.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

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