[93] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 40- E o cristianismo?
A presente série “Homossexualidade e Bíblia Hebraica” se dedicou nos 39 textos anteriores a destrinchar a problemática da homossexualidade na Bíblia Hebraica, vulgarmente conhecida como “Velho” Testamento, e relacionando-a à sua continuidade orgânica dentro do povo judeu, com a tradição judaica oral em especial na sua dimensão jurisprudencial, que acompanha o texto bíblico.
Com tudo isso foi possível mostrar que uma proibição absoluta à homossexualidade NÃO EXISTE na Bíblia Hebraica. A única proibição textual se refere ao sexo anal entre 2 homens, encontrada no livro de Levítico. O restante dos livros não parece sequer pressupor referida proibição, inclusive os demais livros da própria Torá (da qual Levítico faz parte). Em todo caso, não existe NENHUMA base textual proibindo outros atos homoeróticos masculinos (não-penetrativos) nem quaisquer atos lésbicos.
De que maneira uma proibição mais geral poderia ter sido alcançada? A tradição judaica nos fornece um exemplo instrutivo de que, em verdade, isso ocorreu apenas de forma gradativa, por intermédio de imposições rabínicas (isto é, não bíblicas).
Outros atos homoeróticos masculinos foram proibidos rabinicamente para que se diminuísse o risco do sexo anal entre 2 homens (o ato realmente proibido, nesse sentido), e alguns atos lésbicos foram proibidos rabinicamente por considerações relativas à organização familiar.
Apenas na Baixa Idade Média que tais proibições bem mais gerais foram consagradas no povo judeu, e o processo para tal está devidamente registrado. Sabemos no contexto judaico como se chegou de A até B.
Além disso, em relação à própria proibição levítica ao sexo anal entre 2 homens, mostrei que existem algumas razões para que tal ato tivesse sido proibido. Textualmente não existe base para afirmar que o motivo fosse uma repulsa generalizada à homossexualidade. Ao contrário, o motivo se ligava a certas práticas idólatras envolvendo rituais sexuais e, mais tarde, uma associação desse ato com uma hierarquização agressiva entre pessoas do sexo masculino.
Assim, outra constatação que fizemos é que, em termos de Bíblia Hebraica, NÃO EXISTE BASE TEXTUAL para afirmar que o texto de Levítico aborda a homossexualidade no seu sentido moderno. O ‘caso julgado’ ali (bem como pela própria tradição judaica oral) era a prática do sexo anal entre homens como se dava na antiguidade, um contexto muito diferente.
Se devemos ou não estender a mesma decisão tomada pelos sábios judaicos antigos para a questão da homossexualidade contemporânea é algo que cabe a nós decidirmos por meio de raciocínio. Isso vale mesmo se aceitamos a autoridade da Torá, até porque, como vimos, na verdade a Torá exige que façamos tal raciocínio que a desenvolva. Então, a necessidade de tal raciocínio não é apesar da Torá, mas EM RAZÃO DELA.
Contudo, alguns leitores podem estar intrigados: como fica o cristianismo no meio de tudo isso? Afinal, o cristianismo também aceita a Bíblia Hebraica, apenas que a chamam de “Velho” Testamento. Contudo, ele acresce um novo texto, o do Novo Testamento, que, para a fé cristã, complementaria os textos mais antigos.
Bem, uma primeira resposta logo se impõe. Mesmo se a pessoa for cristã, a questão do que a Bíblia Hebraica afirma NÃO é questão de fé ou crença. Mesmo um cristão precisa aceitar o que já mostrei nesta série, no que diz respeito à Bíblia Hebraica, dado o peso da evidência apresentada.
Infelizmente, muitos cristãos (e muitas instituições cristãs) rejeitam as conclusões que apresentei acima sobre a Bíblia Hebraica. E isso tem razões bem simples de entender historicamente: muito cedo na história cristã os cristãos passaram a utilizar uma tradução grega da Bíblia Hebraica, a chamada Septuaginta, que, para além dos erros de tradução, contribuiu para dissociar o significado do texto da sua LÍNGUA original, e, assim, de seu contexto cultural original.
De fato, podemos afirmar que, rigorosamente, o “Velho” Testamento cristão durante aproximadamente 14-15 séculos não era composto pela Bíblia Hebraica dos judeus, mas sim por essa tradução grega (e depois latina). Quase UM MILÊNIO E MEIO.
Uma prova disso até hoje bem fácil de observar é que nos cânones católicos e ortodoxos o “Velho” Testamento contém mais livros do que o Tanakh judaico (isto é, a Bíblia Hebraica). O caso protestante é diferente porque, sendo mais recentes, surgiram no período do humanismo renascentista, justamente aquele no qual o interesse ‘hebraísta’ mais se fortaleceu entre os cristãos ocidentais. O que os levou a aceitarem em seu “Velho” Testamento apenas aqueles livros que os judeus aceitam em seu Tanakh.
Contudo, MESMO para os protestantes, nós percebemos outra evidência de que durante 14-15 séculos a esmagadora maioria* dos cristãos não usaram de fato a Bíblia Hebraica, mas sim traduções: a ordem dos livros do “Velho” Testamento na Bíblia protestante não é a mesma da ordem dos livros do Tanakh judaico!
O termo judaico para “Bíblia Hebraica” é “Tanakh” e isso não é à toa. “Tanakh” é um acróstico para “Torá, Neviim, Ketuvim”. Em português significa “Instrução, Profetas, Escritos”. Portanto, a Bíblia Hebraica na verdade é uma coleção de três coletâneas. Já o ‘Velho’ Testamento cristão é tratado como se fosse uma coisa unitária, uma única coletânea que se contrapõe à coletânea do Novo Testamento. Por isso, no contexto cristão, a ordem original de encaixe dos textos da Bíblia Hebraica foi perdida, algo que nunca teria acontecido se de fato os cristãos a tivessem lido no original (pois no hebraico tal divisão entre os rolos se impõe).
Agora, talvez o leitor esteja pensado “mas será que isso é tão significativo assim? Afinal, é só um idioma diferente, que diferença faz ler a Bíblia Hebraica em uma tradução desde que não haja erros de tradução? Mesmo que a Septuaginta (grego) ou a Vulgata (latim) tenham sido traduções usadas exclusivamente por mais de 1 milênio nas comunidades cristãs, as quais nem sequer chegavam perto do texto hebraico original por quase todo esse tempo, isso não afetaria muita coisa, ou ao menos não afetaria muita coisa nas partes que não contém erros de tradução”.
Infelizmente, se você leitor tiver pensado isso, tenho de informá-lo que você está profundamente enganado. O buraco é muito mais embaixo. É bem conhecido que existem erros de tradução nessas versões supracitadas. Mas mesmo nas partes dessas traduções que não tenham tais erros evidentes, ter acesso apenas ao texto traduzido sem compara-lo ao original induz a muitos mal entendidos, a muita perda de significado, o que leva fácil à deturpação. Note: mesmo se não tivesse erros de tradução. E nós sabemos que também há tais erros!
Ou seja, o contato do cristianismo com a Bíblia Hebraica, durante quase 1 milênio e meio, sofreu de um componente muito forte de ‘lost in translation’, aquilo que se perde na tradução. E apesar de depois o contato com o texto original ter sido restaurado, o estrago já estava feito. Muitas camadas hermenêuticas inadequadas que os cristãos cultivaram a partir das traduções simplesmente se tornaram muito enraizadas na erudição cristã.
Então, mesmo em contato com o texto original no hebraico, ainda é muito costumeiro que se tragam pressuposições não-hebraicas na hora de entendê-lo. Sim, mesmo que se estude o ‘hebraico biblico’ com afinco, a questão de impor ao texto certos significados estranhos ao mesmo continua bem forte, por simples ‘inércia cultural’.
O ponto ‘cultural’ é´importante. Mudar de uma língua para outra não é apenas uma questão de mudar as palavras mas manter o significado. O fato de estar usando outra língua já altera o significado até certo ponto, porque os diferentes idiomas envolvem diferentes formas de pensar as coisas e de gerar significado.
Claro que se estivermos falando de línguas ocidentais, isso talvez não seja tão grave, e ainda mais no caso de famílias de línguas ainda mais achegadas entre si (como as línguas latinas, no nosso caso). Mas pense: aqui estamos falando do HEBRAICO e comparando com alguma língua de matiz greco-romana. Se os cristãos tivessem usado predominantemente uma tradução para o aramaico na hora de estudar o ‘Velho’ Testamento no 1º milênio e meio de Igreja cristã, talvez o distanciamento cultural não fosse tão grave, já que o aramaico e o hebraico são idiomas aparentados. Talvez, mas não tem como saber. Em todo caso, a predominância do grego e do latim como as principais línguas da Cristandade foi bem negativo para o entendimento da Bíblia Hebraica.
Agora, o cristianismo de fato tem outro texto, o do Novo Testamento. Será que, apesar do ‘Velho’ Testamento ter só aquela proibição que já referimos, o Novo Testamento resolveu ampliá-la? Outra indagação possível seria como a visão da homossexualidade no Novo Testamento se relacionaria com a da Bíblia Hebraica e se daria pra chegar na do Novo Testamento a partir da da Bíblia Hebraica? Como tais questões se relacionam com a temática da série, nos próximos posts me dedicarei a destrinchar o Novo Testamento à procura da resposta a essas intrigantes questões.
*Existem exceções aqui e ali de maior aproximação aos textos originais mesmo durante esse hiato mais-que-milenar. A mais notável encontra-se entre algumas Igrejas Ortodoxas Orientais que eram (e são) de língua síriaca ou do amárico, idiomas aparentados ao aramaico (o qual é mais próximo do hebraico). Uma curiosidade é que tais Igrejas eram tratadas como ‘heréticas’/‘cismáticas’ por terem ficado no lado ‘errado’ das grandes controvérsias cristológicas cristãs (o que as faria incorrer seja no monofisismo/miafisismo ou no nestorianismo, segundo o padrão de pensamento que prevaleceu na maior parte da cristandade ocidental e oriental).
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