[94] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 41- O Sentido Literal do Novo Testamento?

A Estrela da Redenção
9 min readMar 1, 2021

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No início desta série, no post [55], falei de como muitas pessoas (sejam religiosas ou atéias) pensam que é muito simples responder a pergunta sobre se a Bíblia Hebraica, vulgarmente conhecida como ‘Velho’ Testamento, condenaria absolutamente a homossexualidade. Para elas, bastaria se ater ao sentido literal da Bíblia Hebraica para se responder afirmativamente. Naquele post e no seguinte ([56]) mostrei como tal raciocínio era completamente equivocado, uma vez que muito do que tais pessoas acham ser o sentido literal não é o sentido literal.

Agora chegou a hora de examinar o Novo Testamento cristão e, novamente, muitas pessoas (sejam religiosas ou atéias) pensam que é muito simples responder a pergunta sobre se o Novo Testamento condenaria absolutamente a homossexualidade. Para elas, bastaria se ater ao sentido literal do Novo Testamento, como escrito em três epístolas de Paulo, aquela aos Romanos, aquela aos Coríntios (mais especificamente, a primeira delas) e aquela para Timóteo (mais especificamente, a primeira delas). Se a pessoa abre sua Bíblia versão ACV (Almeida Corrigida e Fiel) ali encontra:

“Por isso Deus os abandonou às paixões infames. Porque até as suas mulheres mudaram o uso natural, no contrário à natureza.
E, semelhantemente, também os homens, deixando o uso natural da mulher, se inflamaram em sua sensualidade uns para com os outros, homens com homens, cometendo torpeza e recebendo em si mesmos a recompensa que convinha ao seu erro.” (Romanos 1:26,27)

Não sabeis que os injustos não hão de herdar o reino de Deus? Não erreis: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o reino de Deus. (1 Coríntios 6:9,10)

“Sabendo isto, que a lei não é feita para o justo, mas para os injustos e obstinados, para os ímpios e pecadores, para os profanos e irreligiosos, para os parricidas e matricidas, para os homicidas, para os devassos, para os sodomitas, para os roubadores de homem, para os mentirosos, para os perjuradores, e para o que for contrário à sã doutrina.” (1 Timóteo 1:9,10)

Na Bíblia versão NVI (Nova Versão Internacional) o resultado parece ainda mais óbvio quanto às duas últimas cartas:

“Vocês não sabem que os perversos não herdarão o Reino de Deus? Não se deixem enganar: […] nem homossexuais passivos ou ativos […] herdarão o Reino de Deus.” (1 Coríntios 6:9,10)

“Também sabemos que ela [a lei] não é feita para os justos, mas para […] os que praticam imoralidade sexual e os homossexuais […]” (1 Timóteo 1:9,10)

O leitor pode se sentir tentado a pensar agora: “diante de evidência tão cristalina, é certo que o Novo Testamento condena de forma absoluta a homossexualidade, o sentido literal dela está muito evidente nesses trechos! Inclusive a NVI usa expressamente “homossexuais ativos e passivos” como objeto de condenação. Não tem para onde correr!”

Bem, certos hábitos de pensamento são difíceis de mudar. E eu tenho certeza que você está lendo MAIS do que está escrito aí em cima, e deduzindo um monte de coisa que NÃO está literalmente aí. O que você acha que é o sentido literal PROVAVELMENTE NÃO É O SENTIDO LITERAL.

“Peche de nuit a Antibes” [Pesca da Noite em Antibes], Pablo Picasso, 1939.

Mas…. ao contrário da linguagem usada na Bíblia Hebraica, é mais compreensível que você tenha a sensação de que tais trechos do Novo Testamento condenam a homossexualidade de forma absoluta.

Inclusive porque as próprias traduções para o português que aparecem por primeiro na busca do google (ACF e NVI) expressamente usam termos como ‘efeminado’, ‘sodomita’, e ‘homossexuais ativos e passivos’!

Contudo, a questão é mais complexa do que pode parecer…. Nesse post começarei a mostrar isso, então tenham calma…

Antes de examinar o sentido literal em Paulo (no grego, NÃO em português), podemos inverter o jogo: LITERALMENTE grande parte do Novo Testamento NÃO PARECE LIGAR para a homossexualidade nem masculina nem feminina.

Os quatro Evangelhos (que conteriam a vida e palavras de Jesus), o livro de Atos dos Apóstolos, a Epístola de Tiago, as Epístolas de Pedro, as Epístolas de João, a Epístola aos Hebreus*, a Epístola de Judas** e o livro do Apocalipse… EM NENHUM MOMENTO eles tocam no assunto.

E isso também é SENTIDO LITERAL: ao nível literal desses livros a questão da homossexualidade simplesmente NÃO é relevante, e, assim, a fortiori, não foi condenada por eles. De fato, nenhum ato sexual voluntário entre homens ou entre mulheres é descrito ou condenado.

O defensor da visão mais comum talvez nesse momento queira objetar que mesmo se não estiver escrito explicitamente ali que a homossexualidade está proibida, isso estaria ‘implícito’.

Mas note a pegadinha que ocorre aqui: o nosso objetor achava que bastava ficar no sentido literal para resolver a questão; agora ele quer ir pro sentido NÃO LITERAL para sustentar seu ponto de que o Novo Testamento rejeita a homossexualidade. Qualquer pessoa intelectualmente honesta pode ver que NO SENTIDO LITERAL o restante dos livros do Novo Testamento NÃO TRAZ uma condenação à homossexualidade. Você simplesmente não pode dizer que a posição desses inúmeros livros e/ou seus autores é de que a homossexualidade deve ser rejeitada.

Entretanto, existe um apontamento importante a ser feito aqui. O que se poderia afirmar é que tais livros, enquanto não citem a homossexualidade, pressuporiam aquilo que a Bíblia Hebraica proibiu em relação à homossexualidade, uma vez que seus autores tinham a Bíblia Hebraica como suas Escrituras Sagradas.

Esse ponto é correto a meu ver, contudo, existem três qualificações a serem feitas:

  1. Isso não muda que, literalmente, tais livros não mencionam a questão da homossexualidade. Então, para entrar nessa questão de como tais livros se relacionam com a postura vista na Bíblia Hebraica, temos de ir além do que está nesses livros e pensá-los em conjunto aos da Bíblia Hebraica como o cânon usado por esses autores do Novo Testamento, ou seja, indo além da simples literalidade textual de cada um deles separadamente;
  2. O fato de que a Bíblia Hebraica fosse cânon para os autores do Novo Testamento não significa que possamos automaticamente considerar que tudo que a Bíblia Hebraica proíbe era considerado proibido por esses autores do Novo Testamento. Sabemos de algumas instâncias em que de fato os autores do Novo Testamento consideram certas proibições da Torá como estando suspensas com o advento de Jesus como Cristo. Ou seja, é preciso um argumento para além do textual aqui, para conseguir afirmar que tais autores pressupunham a continuidade da postura da Bíblia Hebraica em relação à homossexualidade após o advento do Cristo, e, assim, isso não pode ser decidido por um simples apelo ao sentido literal desses livros;
  3. Como já vimos exaustivamente em posts anteriores, a Bíblia Hebraica proíbe apenas o sexo anal entre homens. Portanto, mesmo se esses autores do Novo Testamento que não mencionam a questão homossexual estivessem pressupondo a continuidade das proibições da Bíblia Hebraica na esfera do homoerotismo, isso significa que tais livros pressuporiam APENAS a proibição do sexo anal entre homens. Ou seja, tais livros não pressuporiam proibições nem para outros atos homoeróticos masculinos nem para atos lésbicos!

Portanto, esse ponto sobre a relação entre os autores do Novo Testamento e a Bíblia Hebraica é mais complexo, e não ajuda o objetor que insiste num apelo ao sentido literal. Pois, exceto pelas epístolas de Paulo (as três já referidas), os demais livros do Novo Testamento literalmente não mencionam nada em relação à homossexualidade.

Então, na verdade a defesa de que o Novo Testamento inteiro condena absolutamente a homossexualidade é uma grande defesa pautada no sentido NÃO LITERAL. Você precisa ir para o sentido não literal para sustentar isso.

Agora, é curioso notar que, quando fiz o mesmo argumento no que diz respeito à Bíblia Hebraica no post [55], vimos que apenas uma parte muito diminuta da Bíblia Hebraica trazia uma proibição a este respeito. Isso porque os 2 versículos da Bíblia Hebraica pertinentes estavam todos no Livro de Levítico que é apenas uma entre muitas tradições e autores diferentes na Bíblia Hebraica.

Mesmo se aceitássemos a autoria mosaica para a Torá (5 livros), ainda assim teríamos um único autor contra uma quantidade muito grande de outros (e um autor que talvez não seja inteiramente consistente nesse ponto entre seus livros, como elaborei no post [66]). Por exemplo, só de autores de livros proféticos temos 15 pessoas diferentes para contrapor. E o total de autores na Bíblia Hebraica (mesmo sendo conservador na estimativa) gira em torno do dobro disso.

Por outro lado, o Novo Testamento inteiro tem por volta de 10 autores… E apesar de Paulo ser só 1 desses autores, as epístolas paulinas ocupam uma grande parte do Novo Testamento. Há 27 livros no Novo Testamento, mas 13 deles foram escritos por Paulo (seja diretamente por Paulo, ou seja por seguidores de Paulo, isso porque atualmente acredita-se que nem todas as epístolas paulinas sejam autênticas).

E mesmo que apenas 3 dessas 13 epístolas de Paulo se refiram à questão homossexual (ao menos aparentemente), é razoável supor que todas elas pressuponham a mesma postura que Paulo teve naquelas 3.

Inclusive não faz diferença se considerarmos que algumas dessas epístolas não tenham sido escritas pelo próprio Paulo, uma vez que, entre aquelas 3 epístolas que fazem menção à questão homossexual, nós temos 2 autênticas (Romanos e 1Coríntios) e 1 pseudoepígrafa (1Timóteo) segundo o atual consenso acadêmico.

Ou seja, dessas 3 epístolas que levam o nome de Paulo e tratam da questão homossexual, 2 foram escritas pelo próprio Paulo e 1 por seus seguidores (que a atribuíram/assinaram como se fosse do próprio Paulo). Isso significaria que estava bem assentada na tradição paulina esse tratamento à questão homossexual (seja qual for esse tratamento).

Portanto, ao contrário da Bíblia Hebraica, onde provavelmente apenas 1 (e no máximo 5) de seus livros pressupõe alguma proibição na esfera homoerótica (entre os seus 35 livros***) durante um período de no mínimo 8 séculos de escrita, no Novo Testamento 13 de seus livros pressupõem alguma proibição na esfera homoerótica (entre os seus 27 livros) durante um período de menos de 1 século de escrita!

Isso se atendo ao sentido literal como já demonstrei acima. Se formos além disso e analisar mesmo os livros não-paulinos levando em conta que a Bíblia Hebraica era o cânon usado por eles, existe uma probabilidade de que todos os 27 livros do Novo Testamento pressuponham pelo menos a proibição ao sexo anal entre homens que consta do livro de Levítico na Bíblia Hebraica. (O que vou analisar em post futuro)

Então concluo este post com uma afirmação que pode parecer paradoxal para alguns: nessa questão da homossexualidade, a Bíblia Hebraica (vulgo ‘Velho’ Testamento) é MUITO mais de boas que o Novo Testamento. Isso porque o apóstolo Paulo, onde encontramos uma menção a atos homossexuais no Novo Testamento, têm um peso desproporcional no conjunto da obra, com suas epístolas ocupando quase metade do Novo Testamento e fazendo menção a essa questão em 3 delas.

Entretanto, apesar de reconhecido isso, mostrei também que não se pode afirmar que, em sentido literal, todo o Novo Testamento traga uma condenação absoluta à homossexualidade. Um pouco mais da metade do Novo Testamento nem fala sobre alguma proibição nessa seara, no seu sentido literal. Enquanto não seja um resultado tão impressionante quanto o da Bíblia Hebraica, ainda deve ter peso ao analisarmos essas questões.

Por fim, note que eu mantive aqui falando que Paulo traz ‘alguma’ proibição ou condenação à questão homoerótica. Para entendermos qual ela seja, teríamos que analisar com calma o texto grego. Usos do sentido literal em traduções para o português são completamente equivocados, porque tais traduções já trazem um viés anti-homossexual muito evidente. Trataremos disso nos próximos posts.

*Desde que rejeitada uma autoria paulina para esta carta (que é anônima, em contraste às epístolas paulinas). Enquanto alguns pensem que Paulo teria sido o redator desta epístola (mesmo sem assiná-la), maioria dos estudiosos hoje rejeita tal atribuição de autoria.

** Enquanto iremos examinar uma suposta referência indireta que alguns alegam existir nela em post futuro.

***Aqui conto os livros da Bíblia Hebraica seguindo o fato de que as divisões feitas para Samuel, Reis, Crônicas e Esdras-Neemias em Bíblias Cristãs são posteriores, e contando os Profetas Menores como 12 livros separados ao invés de 1 livro só (uma vez que, no mínimo, os Profetas Menores foram da lavra de 12 autores, enquanto posteriormente tenham sido agrupados em 1 só rolo). Ou seja, sigo a contagem judaica, com exceção de que conto os Profetas Menores como 12 livros porque, neste ponto, a contagem judaica os conta como 1 só por questão da quantidade de rolos, não porque tais livros sejam uma obra unificada.

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Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

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