[95] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 42- Paulo versus Levítico: comparação preliminar
Como vimos no post anterior, ao nível literal uma grande parte do Novo Testamento não se refere a proibições ou condenações relativas à atividade homossexual. A grande exceção está em Paulo, que apresenta algum tipo de condenação a isso (ainda veremos qual exatamente) em 3 de suas cartas, tendo escrito um total de 13 cartas que ocupam quase metade do cânon do Novo Testamento.
Isso significa que, ao contrário da Bíblia Hebraica, uma porção significativa do Novo Testamento de fato pressupõe alguma condenação nesta área, uma vez que podemos assumir com segurança que todas as epístolas paulinas pressupõem a perspectiva paulina sobre isso como refletida naquelas 3 epístolas que mencionam o assunto. (Sem contar a possibilidade de que os demais livros também pressupunham a proibição de Levítico, mas isso tratarei mais adiante na série por não ser resolvível a um nível puramente textual)
Dado esse panorama, vale a pena fazermos uma comparação preliminar entre a proibição de Levítico na Bíblia Hebraica (“Velho” Testamento) e a condenação que aparece nessas 3 epístolas de Paulo no Novo Testamento.
Comparemos lado a lado.
Primeiro, na Bíblia Hebraica (tradução ACF):
“Com homem não te deitarás, como se fosse mulher; abominação é” (Levítico 18:22)
“Quando também um homem se deitar com outro homem, como com mulher, ambos fizeram abominação; certamente morrerão; o seu sangue será sobre eles.” (Levítico 20:13)
Agora, no Novo Testamento (tradução ACF):
“Por isso Deus os abandonou às paixões infames. Porque até as suas mulheres mudaram o uso natural, no contrário à natureza.
E, semelhantemente, também os homens, deixando o uso natural da mulher, se inflamaram em sua sensualidade uns para com os outros, homens com homens, cometendo torpeza e recebendo em si mesmos a recompensa que convinha ao seu erro.” (Romanos 1:26,27)
“Não sabeis que os injustos não hão de herdar o reino de Deus? Não erreis: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o reino de Deus.” (1 Coríntios 6:9,10)
“Sabendo isto, que a lei não é feita para o justo, mas para os injustos e obstinados, para os ímpios e pecadores, para os profanos e irreligiosos, para os parricidas e matricidas, para os homicidas, para os devassos, para os sodomitas, para os roubadores de homem, para os mentirosos, para os perjuradores, e para o que for contrário à sã doutrina.” (1 Timóteo 1:9,10)
Uma primeira diferença que salta à vista é que o texto de Levítico não menciona a lesbianidade, apenas o caso homoerótico masculino. Já o texto de Paulo parece mencionar a lesbianidade na epístola aos Romanos (algo que investigarei mais adiante se de fato é o caso).
Ou seja, esses textos de Levítico não abrem NENHUMA brecha para achar que haveria uma proibição referente ao campo homoerótico feminino, apenas havendo para o masculino. Já o texto de Paulo admite no mínimo uma brecha para se pensar que há algo a dizer sobre a lesbianidade (enquanto talvez isso seja menos certo do que parece, como veremos ainda).
Uma segunda diferença é que o texto de Levítico de fato faz uma proibição específica: um homem não deitar com outro homem como se mulher fosse, isto é, sexo anal entre dois homens (veja posts [56] e [57] para saber mais sobre essa constatação textual). Esse ato específico é proibido ali. Já os textos de Paulo fazem uma ‘condenação’, isto é, eles mencionam certas pessoas para condena-las.
Por exemplo, note que dois dos textos de Paulo são simplesmente listas. O fulano X, o fulano Y etc. são aqueles que não herdarão o Reino de Deus, ou são os injustos para os quais a lei existe [para condena-los ou refreá-los]. Já o terceiro uma condenação aos povos idólatras (veja versículos anteriores, que discutem a idolatria), uma das consequências sendo esses tais desvios à natureza. A própria ideia de um ‘desvio à natureza’ é de matiz puramente helenista, sendo estranha ao pensamento hebraico-nativo.
Ou seja, o texto de Levítico proíbe um ato claramente especificado textualmente, mesmo que a linguagem usada seja elíptica para o leitor ocidental porque a Bíblia Hebraica nunca menciona a relação sexual de uma forma ‘vulgar’ ou escancarada; o famoso ‘conhecer’ bíblico vem desse estilo. Já os textos de Paulo condenam categorias de pessoas, de uma forma muito menos clara textualmente porque não são descritos atos concretos (o que nos obrigará, nos próximos textos, a ir atrás dos termos gregos, ao invés de nos fundamentarmos em traduções já tendenciosas, como as acima que usam ‘sodomita’ e ‘efeminado’).
Uma terceira diferença é que os textos de Levítico são de um âmbito jurídico (organização familiar da comunidade judaica), enquanto os de Paulo são de um âmbito espiritual/metafísico (o destino eterno de cada indivíduo, para salvação ou condenação).
No texto de Levítico encontramos uma penalização temporal, que recomendo consultar o post [75] para entender que essa tal pena não é o que você está pensando! Não era corriqueiramente aplicada e provavelmente nunca foi porque o procedimento para aplicá-la era muito difícil. E mesmo se fosse aplicada, a pessoa assim morta teria ainda uma porção no mundo vindouro (Bava Metzia 59a). Já nos textos de Paulo encontramos uma penalização eterna: não herdar o Reino de Deus, não obter a salvação! Uma penalidade cuja aplicação não poderia falhar dado ser puramente divina e pós-morte.
Os autores cristãos posteriores especialmente no cristianismo ocidental entenderam isso como uma condenação ao inferno eterno, ideia inexistente entre os judeus, o que só contribuiu para que a penalização dada por Paulo seja entendida de forma muito pior que a de Levítico (que não se conhece nenhum caso de ter sido aplicada).
O texto de Paulo só parece menos chocante porque 1) as pessoas não conhecem a maneira como a Lei Judaica opera, contexto crucial para entender o trecho de Levítico; 2) as ameaças metafísicas de condenação ao fogo eterno são normalizadas no Ocidente cristão, mesmo que elas impliquem um grau de sofrimento simplesmente inigualável. Muita gente acha que o “Velho” Testamento “é cruel” sem nunca ter parado para questionar esses pontos…
Uma quarta diferença é que o texto de Levítico, ao chamar o sexo anal entre homens de ‘abominação’ (a tradução correta seria ‘tabu’, de toevah, como explicado no post [63]), esse ato é comparado a violações rituais. Seja a prática de idolatria (o que nos dá a dica sobre a associação entre o sexo anal entre homens e certos ritos idólatras, o que motivou uma proibição mais geral dentro da Tradição Sacerdotal na Torá, como descrevi no post [64]), seja a prática de outras relações sexuais proibidas como várias formas de incesto e durante a menstruação.
Já os textos de Paulo (com exceção do da Epístola aos Romanos) inaugurou uma tradição lamentável de comparar atos homoeróticos com atos muito graves de aspecto particularmente moral porque ligado a danos deliberados contra terceiros.
Nas duas listas de Paulo em 1Coríntios e 1Timóteo, vemos aparentemente a conduta homoerótica proibida lado a lado da de assassinos, de parricidas, de perjuradores, de sequestradores, etc. Por outro lado, isso talvez seja uma dica de que o que Paulo está condenando não seria qualquer tipo de ato homoerótico, o que vou explorar nos próximos posts.
Uma quinta diferença reside na tradução. Enquanto os tradutores modernos do Levítico preservam o fraseamento hebraico, os tradutores modernos de Paulo fazem Paulo falar como se usasse termos modernos!
Suponha que Levítico fosse traduzido não como ‘um homem não se deitará com outro homem como mulher’, mas como ‘um homem não terá relações homossexuais com outro’ ou ‘não terás relações homossexuais com ninguém’ (sem especificar gênero). Essas duas últimas claramente seriam traduções tendenciosas, modificando o sentido original do texto que era mais delimitado!
Já os textos de Paulo são ordinariamente traduzidos de forma tendenciosa. Como as listas trazem ‘rótulos’ de pessoas ao invés de atos específicos, isso facilitou que os tradutores introduzissem os ‘seus’ rótulos (de sua época) para dentro de suas traduções. Isso é muito grave porque o uso de termos como ‘efeminados’, ‘sodomitas’ e até mesmo ‘homossexuais passivos e ativos’ (na NVI) implica que estão lendo o texto por você, impondo uma certa interpretação para o original grego que não necessariamente é correta ou única ou exata.
Por conta disso, nos próximos posts irei analisar esse aspecto da tradução, para que entendamos qual o provável sentido literal de Paulo. Os dois termos mais importantes aqui são ‘malakoi’ e ‘arsenokoitai’, ambos usados em 1Coríntios e o segundo também usado em 1Timóteo. O que significam essas palavras do grego antigo? É o que investigaremos a seguir.
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