[101] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 48- Sexo gay ou sexo com anjos? (Epístola de Judas Tadeu)

A Estrela da Redenção
8 min readMar 30, 2021

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No que diz respeito ao Novo Testamento cristão, no post anterior mostrei como o rabino Jesus de Nazaré não tinha nenhum dito sobre a questão homossexual e como podemos entendê-lo nessa questão a partir de tudo que já falei sobre os sábios do Talmude e a Bíblia Hebraica nesta série.

Também já mostrei que as únicas referências à essa questão no Novo Testamento estão em epístolas de Paulo, que ao contrário do que propagam por aí, provavelmente não contém uma condenação à lesbianidade e a condenação que Paulo faz ao homoerotismo masculino, enquanto seja forte, no contexto é mais limitada do que poderia parecer. Não encontro nele algo para além da proibição já constante da Bíblia Hebraica (que se refere única e exclusivamente ao sexo anal entre homens), salvo que Paulo confere uma conotação diferente, mais metafísica e espiritual e com um tom mais condenatório.

Contudo, algumas pessoas acham que existe outra referência à questão homossexual no Novo Testamento, uma que inclusive faria referência direta à Bíblia Hebraica. Essa estaria na Epístola de Judas (não Judas Iscariotes que teria traído Jesus, mas Judas Tadeu, o outro apóstolo que também se chamava Judas).

“Assim como Sodoma e Gomorra, e as cidades circunvizinhas, que, havendo-se entregue à fornicação como aqueles, e ido após outra carne, foram postas por exemplo, sofrendo a pena do fogo eterno.” (Judas 1:7)

A ideia é que essa referência às cidades de Sodoma e Gomorra seria uma referência ao pecado do homoerotismo masculino. Eu já fiz um post antes (o [69]) explicando que a história de Sodoma e Gomorra NÃO tem relação com a questão homossexual, mas sim com opressão econômica, e que essa é a interpretação mais antiga e mais tradicional, que continuou até os nossos dias dentro do povo judeu. Na tradição judaica, um ‘sodomita’ (middat Sedom) é alguém que se recusa a ajudar um necessitado quando a generosidade não custará nada à pessoa, não um praticante de sexo gay.

Mas será que a Epístola de Judas entendeu o pecado de Sodoma como sendo sexo gay?

Bem, aqui entraremos numa situação bem curiosa. O ‘ido após outra carne’ do versículo, quando lido por alguém hoje, realmente pode parecer ‘outra carne’ = ‘a carne que não é a das mulheres, logo a dos homens’. Mas você está provavelmente esquecendo que nessa cosmovisão antiga não eram só essas as opções de ‘pessoas’. A chave é que o versículo fala “entregue à fornicação como aqueles”, se referindo a um grupo de pessoas citado no versículo anterior. Quem são? Veja o trecho mais completo, incluindo o versículo anterior:

“E aos anjos que não guardaram o seu principado, mas deixaram a sua própria habitação, reservou na escuridão e em prisões eternas até ao juízo daquele grande dia; assim como Sodoma e Gomorra, e as cidades circunvizinhas, que, havendo-se entregue à fornicação como aqueles, e ido após outra carne, foram postas por exemplo, sofrendo a pena do fogo eterno.” (Judas 1:6,7)

Então o trecho diz que os habitantes de Sodoma e Gomorra se entregaram a relações sexuais proibidas DA MESMA FORMA como os anjos que deixaram sua própria habitação tinham se entregue a relações sexuais proibidas anteriormente, porque foram atrás de outra carne (proibida).

Isso significa que o trecho de fato dá uma interpretação sexual ao pecado de Sodoma, contudo, esse pecado é considerado análogo ao de certos anjos que também tiveram relações sexuais ilícitas. Ou seja, o trecho pressupõe que esses anjos pecadores e os habitantes de Sodoma compartilhavam de um mesmo pecado de ir atrás de outra carne. Que pecado sexual eles poderiam ter feito em comum?

Obviamente precisamos primeiro saber o que esses anjos teriam feito. E aqui a Epístola de Judas faz referência a um escrito apocalíptico-judaico, 1Enoque (cuja escrita inicial começou por volta de 200 antes da era comum).

A influência é tão grande que chega ao ponto que Judas 1:14–15 cita diretamente 1Enoque 1:12. Essa ideia de ‘anjos pecadores que foram postos numa prisão’ encontrada tanto na epístola de Judas como nas epístolas de Pedro (1Pedro 3:19–20; 2Pedro 2:4) se originam em 1Enoque. Então esse é um escrito fundamental para entender o contexto literário do Novo Testamento (mesmo que não seja aceito como canônico pela maioria da Cristandade, com a exceção da Igreja Ortodoxa Tewahedo Etíope, que possui o maior cânon bíblico).

A ideia de 1Enoque é que Enoque, um dos homens que viveram antes do dilúvio (e antes de Noé), profetizou o dilúvio antes mesmo de Noé nascer. E a causa para o dilúvio se encontraria não só nos pecados graves daquelas gerações humanas, mas também no grave pecado cometido por certos anjos que resolveram ter relações sexuais com as humanas e gerar filhos híbridos, os Nefilin (Gigantes). Essa é uma interpretação da seguinte passagem do Gênesis:

“E aconteceu que, como os homens começaram a multiplicar-se sobre a face da terra, e lhes nasceram filhas, viram os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas; e tomaram para si mulheres de todas as que escolheram. […]
Havia naqueles dias gigantes [Nefilin] na terra; e também depois, quando os filhos de Deus entraram às filhas dos homens e delas geraram filhos; estes eram os valentes que houve na antiguidade, os homens de fama.” (Gênesis 6:1–4)

1Enoque entende que os ‘filhos de Deus’ que tomaram para si as ‘filhas dos homens’ eram anjos celestiais que se rebeleram e desceram ao nosso planeta com o propósito de tomar para si essas mulheres. Por isso foram aprisionado no Tártaro.

“The Fall of Titans” [A Queda dos Titãs], Cornelis van Haarlem, 1588–1590, retratando seres mitológicos da mitologia grega que também foram aprisionados no Tártaro, um termo que aparece em 2Pedro no Novo Testamento como o destino dos anjos que pecaram, e que também é o destino dos anjos que pecaram em 1Enoque.

Cabe destacar que a interpretação majoritária dentro da tradição judaica oral é diferente dessa: os ‘filhos de Deus’ (literalmente ‘filhos dos Elohim’) são ‘filhos dos poderosos’, aristocratas da época, e as ‘filhas dos homens’ (literalmente ‘filhas de Adam’) são moças comuns. Porque ‘Elohim’ pode designar ‘Deus’, mas também pode designar ‘pessoas humanas poderosas’. E mesmo a interpretação minoritária na tradição judaica oral que considera os filhos de Elohim como anjos, é ligeiramente diferente na medida em que os anjos não se rebelam no céu, mas acabam pecando por fraqueza quando assumem forma humana. (Veja a explicação sucinta do Rabino Rosenfeld sobre isso)

Portanto, 1Enoque foi o primeiro escrito judaico a falar de anjos rebeldes e caídos, em contraste à tradição judaica oral (que mesmo aceitando que anjos podem pecar e que alguns pecaram em alguns casos, não ligam isso a uma rebelião). Essa ideia se tornou comum na literatura da Apocalíptica Judaica na qual o Novo Testamento bebeu (enquanto o livro de Daniel, escrito um pouco depois de 1Enoque e único exemplar da apocalíptica judaica encontrado na Bíblia Hebraica, NÃO apresenta essa ideia). Por isso o Novo Testamento tem várias referências a uma queda ou rebelião de seres celestiais, algo que não encontramos no ‘Velho’ Testamento.

Entre os escritos judaicos-helenistas desse período do Novo Testamento que beberam na fonte de 1Enoque, maior parte deles escrito em grego, temos os Testamentos dos Doze Patriarcas (este provavelmente retocado pelos cristãos ou mesmo escrito por cristãos) e o Livro dos Jubileus (basicamente usado por cristãos também na antiguidade)*. Esses livros conectam o pecado de Sodoma ao dos anjos (Testamento de Naphtali 3:4–5; Jubileus 20:5) tal como faz Judas, em claro contraste à tradição judaica oral que entende isso tudo de forma muito diferente.

Alguns apologetas cristãos acham que há nesses escritos também uma confirmação de que o pecado de Sodoma seria homossexual, mas isso é absurdo! O que esses escritos falam é o que Judas também fala, que o pecado sexual de Sodoma foi o mesmo do desses anjos e, como vimos, o pecado dos anjos foi ‘heterossexual’. (Sem contar que esse tipo de escrito NÃO é representativo da visão judaica da época)

Entendido agora porque 1Enoque e escritos similares não devem ser entendidos como representativos da visão judaica mesmo daquela época (ao contrário do que muitos cristãos sugerem!), fica claro que esse escrito e os similares foram muito marcantes para o Novo Testamento, sendo mais representativos no contexto cristão, especialmente para as Cartas de Pedro e a Carta de Judas.

E qual foi o pecado dos anjos? Como disse há pouco, não foi o homoerotismo, porque os anjos transam com mulheres e nisso houve sua derrocada. Então, por que Judas fala que eles foram atrás de ‘outra carne’ (e o Testamento de Naphtali fala até que eles mudaram a ordem da natureza)? Simples: porque anjos não deviam ter relações sexuais com humanos, sejam homens ou mulheres. Um ser humano transar com um anjo vai contra a ordem da natureza, é ir atrás de outra carne.

E aí fica claro como os habitantes de Sodoma fizeram o mesmo pecado ou, mais rigorosamente, tentaram. Quando anjos entraram em Sodoma, os habitantes de Sodoma quiseram estuprá-los.

“E antes que [os anjos e a família de Ló] se deitassem, cercaram a casa, os homens daquela cidade, os homens de Sodoma, desde o moço até ao velho; todo o povo de todos os bairros.
E chamaram a Ló, e disseram-lhe: Onde estão os homens [ = os anjos] que a ti vieram nesta noite? Traze-os fora a nós, para que os conheçamos [sexualmente].” (Gênesis 19:4,5)

Ou seja, os habitantes de Sodoma foram atrás ‘de outra carne’, pretendendo ter relações sexuais com anjos, transpassando as fronteiras da natureza angelical versus humana.

A epístola de Judas está falando de sexo com anjos, não de sexo gay!

E, secundariamente, é possível também que se pense no pecado de raptar mulheres usando de força ou de sua posição de poder, porque foi também isso que os anjos fizeram na interpretação enoquita.

Em todo caso, como a questão aí é uma analogia entre o pecado dos anjos (na interpretação enoquita) e o pecado de Sodoma, pelo qual os habitantes de Sodoma seguiram o exemplo dos anjos cujo pecado foi bem anterior ao de Sodoma, fica claro que não é possível interpretar isso como uma referência a sexo gay.

*Um erro muito comum que vejo por aí é de cristãos pegarem esses escritos judaicos ‘apócrifos’ ou ‘intertestamentários’ (como gostam de chamá-los) para ‘provar’ que o judaísmo da época pensava assim ou assado. O problema é que esses escritos não são representativos da visão judaica da época, em especial a nativa de fala aramaica/hebraica, na qual maior parte das discussões naquele momento se faziam na tradição ORAL, não sendo colocado por escrito. Não à toa o próprio Jesus nunca escreveu nada, mas transmitiu ensinamentos oralmente a seus discípulos. E ainda tem o fator de que esses escritos judaicos ‘apócrifos’ melhor preservados chegaram até nós por meio de FONTES CRISTÃS e foram preservados por ser de interesse dos cristãos. Então existe um viés muito forte envolvido nessa preservação.

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Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.