[99] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 46- Posição de Paulo é a mesmo que a do Novo Testamento?
Nos últimos posts discuti os 3 trechos do Novo Testamento que fazem referência em algum sentido ao homoerotismo. Todos esses trechos estão em epístolas de Paulo.
Meu veredicto sobre esses trechos é o seguinte:
- Malakoi em 1Coríntios não tem nenhuma relação com a questão homossexual, não sendo referência sequer a algo sexual. Mas caso tivesse alguma relação com a questão homossexual (apenas a masculina, como todos nesse debate concordam), não há evidência de que iria além da proibição de Levítico na Bíblia Hebraica (‘Velho’ Testamento), que proibira apenas e exclusivamente o sexo anal entre homens;
- Arsenokoitai em 1Coríntios e em 1Timóteo faz referência a algo sexual, provavelmente de teor homoerótico, mas talvez não necessariamente homoerótico, e parece envolver algum tipo de exploração de prostitutos ou subordinados. Também aqui não há evidência de que iria além da proibição de Levítico na Bíblia Hebraica (‘Velho’ Testamento), que proibira apenas e exclusivamente o sexo anal entre homens;
- A referência em Romanos às mulheres que abandonaram o ‘uso natural’ provavelmente não é homoerótica mas sim heterossexual, então considero que Paulo não faz nenhuma referência à lesbianidade em suas cartas, mas seu linguajar acabou abrindo a brecha para uma interpretação posterior nesse sentido;
- A referência em Romanos às relações sexuais entre homens como consequência da idolatria não indica se no escopo dessas relações se estaria pensando algo além do sexo anal entre homens. Paulo tem uma linguagem muito vaga e sua tendência anti-sexual mais genérica (seja por influência estóica ou de sua visão apocalíptica da iminência do fim) também não ajuda aqui. Mas certamente a maneira que Paulo conceitualiza a homossexualidade masculina é em termos de como ela era vivenciada na cultura helenista, não abordando o caso da homossexualidade masculina tal como vivenciada na cultura moderna;
- Talvez essas referências de Romanos sejam parte de uma interpolação e não estivessem na carta original de Paulo, mas isso não é confirmado.
Em contraste, o restante do Novo Testamento não faz nenhuma referência à essa questão (enquanto mais para frente vou comentar de uma referência que alguns acham encontrar na epístola de Judas).
Agora uma coisa relevante para o cristão desejoso de se manter antenado ao Novo Testamento (ou mais geralmente, da Bíblia como um todo, incluindo sua parte hebraica) é se perguntar se poderíamos de fato igualar a posição de Paulo em assuntos específicos como a posição do Novo Testamento (ou mais geralmente, da Bíblia como um todo, incluindo sua parte hebraica) sobre esses mesmos assuntos.
A meu ver a resposta é muito clara, mesmo se assumirmos a teologia cristã: um sonoro ‘NÃO’.
Em primeiro lugar, isso entra em choque de forma muito evidente se incluirmos a Bíblia Hebraica, chamada de ‘Velho’ Testamento pelos cristãos, dentro da jogada. O teor anti-sexual que move certas considerações de Paulo entra em rota de colisão direta com o que a Bíblia Hebraica incentiva a esse respeito. Paulo acha melhor alguém que remanesce celibatário e casto, enquanto a Bíblia Hebraica favorece abertamente o sexo, o amor erótico, o casamento e a geração de filhos.
E vejam: isso não sou só eu falando. Esse tipo de tensão foi algo que se tentou resolver em toda a história eclesiástica. No meio católico, foi ensinado que essa injunção anti-sexual de Paulo era ‘superrogatória’, não se aplicando a todos os cristãos, mas apenas àqueles que assumissem o ofício sacerdotal ou o monasticismo para alcançar uma santidade especial. No meio evangélico, foi ensinado que essa injunção anti-sexual de Paulo devia ser entendida ‘no seu contexto’, porque naquela época haviam muitas perseguições e assim o conselho de Paulo seria de natureza prática e utilitária.
Curioso que em ambas essas interpretações apela-se a algum tipo de contexto, seja histórico ou teológico mais geral, para relativizar o teor de Paulo nessa questão. O que mostra ser plenamente possível também fazer uso dessas considerações para relativizar o teor de Paulo na questão homoerótica, para a qual temos muita evidência de que o contexto é altamente relevante para interpretar isso.
Em segundo lugar, dentro do Novo Testamento, existem tensões entre os escritos mais judaico-nativos e os escritos mais judaico-helenistas, entre os quais encontram-se as cartas de Paulo. Por exemplo, a maneira como a Lei é tratada no Evangelho de Mateus e na Epístola de Tiago é bem diferente da maneira como ela é tratada nas Epístolas de Paulo. Mas essa questão do judaísmo dentro do Novo Testamento vou adentrar nos próximos posts.
Em terceiro lugar, e mais importante, temos de entrar na teologia cristã da inspiração bíblica. Como mostrei em post que escrevi no blog Evangelho de Brian, denominado “O Cristianismo Historicamente NÃO Depende da Infalibilidade Bíblica”, o cristianismo histórico concedia infalibilidade não à Bíblia diretamente, mas sim ao ‘Evangelho’, no sentido de uma doutrina ou mensagem que Jesus transmitira aos seus apóstolos.
À luz dessa visão fica mais claro que nem tudo na Bíblia é igualmente importante e necessário, sob uma visão cristã TRADICIONAL. Às vezes o escritor fala de certas coisas como sendo ‘sua opinião’, não sendo a única correta ou possível. No caso de Paulo, ele o assume explicitamente, como na própria carta de 1Coríntios:
“Quanto às pessoas virgens, não tenho mandamento do Senhor, mas dou meu parecer” (1 Coríntios 7:25)
Ou pense na carta a Filemom, onde Paulo responde a uma questão privada entre um senhor e seu escravo fugitivo, ambos cristãos. (Vale a pena lê-la integralmente pois só possui um único capítulo)
Então as comunicações de Paulo por epístola não contém apenas ‘o Evangelho’ no sentido que comentei acima, mas também considerações do próprio Paulo e tentativas feitas por ele de como seria melhor aplicado nas circunstâncias concretas de cada comunidade. Não são as únicas formas de aplicar ‘o Evangelho’, mas mais como protótipos de como essa aplicação poderia ser feita.
Isso redunda numa outra discussão que existe entre os cristãos, a respeito do ‘adiáfora’. ‘Adiáfora’ seriam questões onde não incide um dogma (resumindo grosso modo), e assim haveria liberdade para diferentes opiniões em matérias ‘adiáfora’. Agora peço que o leitor cristão pense comigo: há ‘adiáfora’ no Novo Testamento? É claro que sim! Mesmo se você considerar que todos os escritos são inspirados, as considerações feitas anteriormente conduzem à conclusão de que os escritores bíblicos afirmam ‘adiáfora’ aqui e ali.
Como tudo isso se relaciona com a questão homossexual no Novo Testamento?
Ora, é costume aqui se usar esses trechos de Paulo para afirmar que a posição do Novo Testamento inteiro ou da Bíblia cristã inteira (incluindo o ‘Velho’ Testamento) seria a de Paulo, e a de Paulo interpretada de uma forma bem radical.
Contudo, não só mostrei que Paulo melhor interpretado condena apenas algo muito mais específico do que dizem por aí, como também que não existe uma prioridade dos escritos de Paulo sobre os demais escritos e que ele apresenta ênfases e opiniões próprias em suas cartas.
Assim, a omissão dos outros escritos do escritos acerca da questão homossexual deve ser entendida como tendo tanto peso e sendo tão significativa quanto a opinião mais explícita feita por Paulo nessas três cartas. Se Paulo dava muita importância à essa questão, até por em geral ter um tom mais negativo em relação à sexualidade, isso NÃO significa que o resto do Novo Testamento concorde com essa postura ou que um cristão seja obrigado a seguir Paulo em tudo. O silêncio dos demais escritos ‘grita’ como essa questão era (provavelmente) desimportante para esses outros escritos ou que não precisaria ser tratada no mesmo tom fortemente condenatório de Paulo.
Um exemplo ilustrativo encontra-se no Apocalipse (um escrito bem mais judaico que as epístolas de Paulo), onde também vemos uma lista similar às de 1Coríntios e de 1Timóteo, mas em contraste essa terceira lista não apresenta condenações a sujeitos categorizados pela prática de algum tipo de homoerotismo:
“Bem-aventurados aqueles que guardam os seus mandamentos, para que tenham direito à árvore da vida, e possam entrar na cidade pelas portas.
Mas ficarão de fora os cães e os feiticeiros, e os que se prostituem, e os homicidas, e os idólatras, e qualquer que ama e comete a mentira.” (Apocalipse 22:14,15)
Talvez se as pessoas interpretassem as listas de Paulo mais em sintonia com a lista do Apocalipse (ao invés do contrário!) ficaria mais claro que o problema não é a homossexualidade em si, mas sim o contexto no qual ela era praticada.
Ou veja a carta de Tiago (irmão de Jesus), um escrito do Novo Testamento que bem poderia ser um escrito judaico-rabínico não fosse por sua menção a Jesus como Messias:
“Porque qualquer que guardar toda a lei, e tropeçar em um só ponto, tornou-se culpado de todos.
Porque aquele que disse: Não cometerás adultério, também disse: Não matarás. Se tu pois não cometeres adultério, mas matares, estás feito transgressor da lei.
Assim falai, e assim procedei, como devendo ser julgados pela lei da liberdade.” (Tiago 2:10–12)
E o que essa Lei a que Tiago se refere (a Torá escrita) proibira? Como não canso de repetir, apenas o sexo anal entre homens, em Levítico. Num contexto marcado pela prostituição ritual masculina como uma fonte de perigo para a Aliança da Torá. Ou seja, pela mesma Lei ficou em aberto como novos casos seriam julgáveis perante ela. Para saber como outros casos recaem ou não nisso, está em nossas mãos, pelo uso de discernimento e lógica, e também de empatia. Ou como Tiago bem prossegue no seu raciocínio:
“Porque o juízo será sem misericórdia sobre aquele que não fez misericórdia; e a misericórdia triunfa sobre o juízo.” (Tiago 2:13)
Por fim, se realmente algum escrito do Novo Testamento devesse ter procedência sobre os outros, em termos de teologia cristã, o mais lógico (e também mais tradicional) é que fossem os Quatro Evangelhos, que narram a vida e feitos de Jesus de Nazaré.
E os Quatro Evangelhos fazem silêncio a respeito da questão homossexual, um silêncio que deveria ser mais interpretado pelos cristãos em geral em todo o seu peso, ao invés de ficarem surdos com os gritos estridentes de Paulo, um homem que não conhecera Jesus durante o ministério deste na Galiléia e Judéia, e que só veio a entrar em contato com a comunidade de Jesus muitos anos depois da morte desse rabino galileu.
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