[98] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 45- Contra a natureza? E as lésbicas? (Paulo)

A Estrela da Redenção
11 min readMar 17, 2021

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Nos últimos dois posts, analisei duas referências encontradas em epístolas de Paulo usadas para defender que, no Novo Testamento, haveria uma condenação absoluta à prática homossexual. Essas referências giravam em torno da definição de duas palavras do grego, sem nenhum desenvolvimento expresso do seu significado por parte de Paulo.

Mostrei que não havia uma condenação absoluta à prática homossexual (uma das palavras sequer envolvia esse assunto), e que na prática o que vemos é uma proibição com escopo mais limitado: homens que fazem sexo com prostitutos e/ou que prostituem outros homens de status inferior. Mesmo se Paulo tivesse em mente algo mais geral que isso, não encontrei evidência para afirmar que Paulo fosse além da proibição constante da Bíblia Hebraica que se refere unicamente ao sexo anal entre homens, como visto em Levítico.

Agora é o momento de analisar a terceira e última referência de Paulo relevante para esse debate. Um aspecto curioso desta que veremos neste post é que, ao menos a princípio, ela é a que mais se desviaria do tratamento dado pela Bíblia Hebraica.

Primeiro, porque essa passagem é muito utilizada para afirmar que a Bíblia inteira seria contra relações sexuais entre mulheres. Ela é basicamente o ÚNICO trecho que permitiria concluir alguma proibição referente à lesbianidade, e está no Novo Testamento, ou seja, é relevante apenas num contexto cristão.

A Bíblia Hebraica não contém absolutamente nada sobre isso, mas infelizmente é muito espalhado por aí como se ela condenasse a lesbianidade, porque a maioria das lideranças religiosas que citam a Bíblia Hebraica no debate público são cristãs e a chamam de ‘Velho’ Testamento, e continuam a propagar a falsa ideia de que a lesbianidade estaria proibida por toda o texto bíblico mesmo na sua parte judaica original. Se você leu meus posts [58]-[59]-[60], você estará já vacinado contra esse tipo de desinformação. O ‘problema’ da Bíblia parecer proibir a lesbianidade é um problema cristão, não judaico.

Segundo, porque esse trecho afirmaria que o homoerotismo é ‘contra a natureza’. Esse tipo de concepção é alienígena ao mundo da Bíblia Hebraica. Nada nela permitiria inferir algo assim a respeito da homossexualidade. Novamente, aqui a visão cristã sobre o assunto também contribuiu à desinformação, porque muitas lideranças cristãs afirmam que essa ‘contrariedade à natureza’ já estaria no Gênesis, muitas vezes por apelo a argumentos infantis como ‘Deus criou Adão e Eva, não Adão e Ivo”!

Eu vou voltar a isso mais para frente quando discutir qual a diferença fundamental entre as visões tradicionais judaica e cristã sobre a homossexualidade. Aqui vou me ater ao uso de Paulo e como esse tipo de argumento só poderia ter sido feito por um judeu helenizado como Paulo (não por um judeu nativo como Jesus ou seu irmão Tiago, também presentes no Novo Testamento).

Pois bem, feita essa introdução, vamos ao trecho:

“Por isso Deus os abandonou às paixões infames. Porque até as suas mulheres mudaram o uso natural, no contrário à natureza.
E, semelhantemente, também os homens, deixando o uso natural da mulher, se inflamaram em sua sensualidade uns para com os outros, homens com homens, cometendo torpeza e recebendo em si mesmos a recompensa que convinha ao seu erro.” (Romanos 1:26,27)

Eu posso concordar que nesse trecho vemos que Paulo tinha uma visão bem negativa sobre a homossexualidade masculina, tal como a via na sua época. Pegando o contexto do trecho como um todo, Paulo explica como a idolatria teria levado à decadência do ser humano em termos de uma diversidade de vícios. Dentre essas consequências da idolatria, estariam as relações sexuais entre homens.

Como já afirmei nos posts anteriores, aqui me parece que Paulo novamente mostrar concordar com a proibição de Levítico ao sexo anal entre homens, e a entendê-la de uma forma bem geral, mas que isso deve ser entendido no contexto de como o homoerotismo masculino era vivenciado no mundo helênico, não tendo como inferir diretamente disso para outros contextos, especialmente o moderno.

Mas um aspecto interessante é que Paulo demonstra certa percepção do contexto original da proibição de Levítico, que também envolvia a prática da idolatria por intermédio da prostituição ritual. É possível que Paulo aqui tenha em mente o sexo anal entre homens praticado em cultos idólatras (mas não significa que ele consideraria tal ato proibido apenas nesse contexto).

Diferentemente da Bíblia Hebraica, entretanto, a maneira de Paulo raciocinar essa conexão entre sexo anal entre homens e a idolatria é bem helenizada, fazendo um argumento com base na ‘Ordem da Criação’. Isso faz parte do fato de que Paulo era influenciado pelo estoicismo. A expressão usada em grego para ‘uso natural’ (την φυσικην χρησιν) é dos estóicos (veja Dewey, 2020, p. 26, rodapé 41).

Lembrem que na Torá isso era tratado de uma forma muito mais concreta e relativa aos rituais: as injunções contra os prostitutos rituais (e as prostitutas rituais) em Deuteronômio, que reverberam em Reis e em Jó, e o uso de ‘toevah’ (tabu) na proibição ao sexo anal entre homens em Levítico. Já aqui em Paulo vemos uma conotação mais moralizada, dada a lista de outros pecados que seguem esse trecho (veja versículos 29–31).

Paulo pensa também em outras formas de homoerotismo masculino como exemplos de referida ‘decadência’ idólatra? A linguagem usada pode de fato ser uma referência apenas ao que Levítico proibia, mas ao mesmo tempo é vaga o suficiente para deixar em aberto esse ponto. Contribui a isso o fato de que Paulo tem uma tendência anti-sexual, também influenciada pelo estoicismo, e provavelmente também relacionado à sua inserção na apocalíptica judaica helenizada (como o fim de todas as coisas está próximo, constituir uma família não seria uma prioridade). Vemos isso em 1Coríntios:

“Ora, quanto às coisas que me escrevestes, bom seria que o homem não tocasse em mulher; Mas, por causa da fornicação, cada um tenha a sua própria mulher, e cada uma tenha o seu próprio marido.” (1 Coríntios 7:1,2)

No contexto dessa mesma epístola aos Romanos, também vemos que a ideia de desejos e da ‘concupiscência’ é parte importante da maneira como Paulo entende o ‘pecado’, novamente de uma forma muito diferente de como essa noção é tratada na Bíblia Hebraica, no judaísmo nativo (protorabínico e posteriormente rabínico) e nas partes mais judaicas e menos helenizadas do próprio Novo Testamento. (Algo a que em breve eu voltarei para que vocês entendam porque estou fazendo questão de falar no Novo Testamento mesmo que minha perspectiva seja a judaica e o Novo Testamento não seja um livro sagrado do judaísmo)

Não vou entrar aqui em detalhes da teologia cristã e da interpretação de Paulo que entre os próprios cristãos é algo muito complicado, mas esse trecho é um exemplo de como Paulo tem uma visão metafísica de ‘domínio do pecado por meio da concupiscência’ que NÃO é uma forma judaica de tratar essa questão:

“Porque, quando estávamos na carne, as paixões dos pecados, que são pela lei, operavam em nossos membros para darem fruto para a morte.
Mas agora temos sido libertados da lei, tendo morrido para aquilo em que estávamos retidos; para que sirvamos em novidade de espírito, e não na velhice da letra.
Que diremos pois? É a lei pecado? De modo nenhum. Mas eu não conheci o pecado senão pela lei; porque eu não conheceria a concupiscência, se a lei não dissesse: Não cobiçarás.
Mas o pecado, tomando ocasião pelo mandamento, operou em mim toda a concupiscência; porquanto sem a lei estava morto o pecado.” (Romanos 7:5–8)

Agora, tendo demarcado como, em Romanos 1, Paulo consegue ao mesmo tempo se aproximar mas também se afastar muito da Bíblia Hebraica, talvez pareça plausível dizer que Paulo naturalmente se afastaria da Bíblia Hebraica no que diz respeito à lesbianidade, e por isso a condenaria por expresso aqui. Entretanto, apesar disso parecer plausível para a pessoa de Paulo, não acho que esteja claro que esse trecho de Romanos se refira à lesbianidade.

Em primeiro lugar, como bem destacado por James Miller (1995, p. 1–2), muitos comentadores assumem aqui uma paridade entre homoerotismo masculino e feminino que não existia na cultura clássica. Então os intérpretes modernos tendem a invocar a categoria de ‘homossexual’ aqui para dizer ‘se Paulo tratou no versículo 27 sobre homoerotismo masculino, a referência sexual no versículo 26 sobre mulheres deve ser sobre o homoerotismo feminino’. Mas se o leitor vier ao texto sem essa premissa de que a prática lésbica é uma contraparte para a prática gay, não haveria nenhuma razão particular para ler o versículo 26 como se referindo a uma atividade homossexual por parte das mulheres.

Em segundo lugar, já de posse dessa informação, você pode reler o trecho e vai perceber que, enquanto o versículo 27 sobre os homens de fato fala de homens tendo relação sexual com outros homens, o versículo 26 anterior sobre as mulheres não faz o análogo disso para o caso feminino em nenhum momento! O trecho meramente diz que “as suas mulheres mudaram o uso natural”, não dizendo com quem nem qual é esse tipo de relação sexual contra o uso natural. (Ironicamente muitos religiosos dizem que tem algo claro ali… que nem está lá!)

“Through Birds Through Fire But Not Through Glass” [Através de Pássaros, Através de Fogo, Mas Não Através de Vidro], Yves Tanguy, 1943.

Em terceiro lugar, reforçando o ponto 1, numa revisão das fontes clássicas vemos que a homossexualidade masculina era grandemente debatida no mundo helenista, mas a lesbianidade não o era, havendo poucas fontes acerca dela, e havia uma rejeição universal à lesbianidade dentro da cultura helenista (veja Miller, 1995, p. 4–8; Brooten, p. 289–290).

Por isso, não seria plausível no contexto cultural sob análise Paulo tratar a homossexualidade masculina e feminina em paridade. Na verdade naquele contexto era muito mais ‘natural’ fazer como a literatura clássica (e mesmo a judaica helenista) fazia, tratando o caso feminino em certos tipos de relação heterossexual como em paridade com a homoerótica masculina. Então, na falta de uma especificação maior do texto, o mais seguro é que Paulo não estaria fazendo referência ao caso lésbico, mas imaginando esse desvio sexual das mulheres como heterossexual.

Em quarto lugar, relações sexuais heterossexuais ‘contrárias à natureza’ eram muito debatidas no mundo helenista (greco-romano). Essas relações heterossexuais ‘contrárias à natureza’ geralmente envolviam um objetivo contraceptivo, enquanto também muitas vezes não fossem explicitamente descritas. Sabemos, entretanto, que a questão do sexo anal e oral heterossexuais foram discutidas no mundo greco-romano como formas de contraceptivo e especificamente a mulher fazer sexo oral no homem era visto de uma forma negativa. (Miller, 1995, p. 8–10)

Isso pode cair como uma surpresa para aqueles que acham que o mundo helenista fosse uma cultura praticante plena do ‘amor e sexo livres’. Quem está acompanhando esta série do meu blog já sabia que isso não era verdade para o caso homoerótico masculino no qual predominava a valorização do ativo com o rebaixamento do passivo. Agora fica clara que isso não é verdadeiro nem para o caso lésbico (rejeitado por aquela cultura) e nem mesmo havia uma liberdade plena para o heterossexual, pois diferentes grupos poderiam rotular certas formas de relação heterossexual como ‘contrárias à natureza’.

Enquanto obviamente a cultura helenista não-cristã admitisse mais formas de relação sexual e expressão erótica que o cristianismo veio a admitir, o cristianismo também herdou grande parte desses aspectos mais ‘negativos’ em relação ao sexo de tendências já existentes nessa mesma cultura.

De fato, o cristianismo posterior é culturalmente helenista, não judaico. No Novo Testamento apenas vemos o início desse processo, com algumas partes dele ainda bem no contexto judaico-nativo e outras — via judeus helenistas como Paulo — caminhando na direção helenista. Isso porque ao tempo da escrita (e tradições subjacentes) de várias partes do Novo Testamento a demografia cristã ainda era basicamente judia, seja nativa ou helenista, enquanto posterior ao Novo Testamento a demografia se torna esmagadoramente gentia, greco-romana, helenista no sentido mais forte.

Por fim, entre os escritos cristãos mais antigos, além de serem poucos e esparsos os comentários a respeito desse trecho (maioria que o cita apenas menciona o início “Por isso Deus os abandonou às paixões infames”, sem parar para elucida-lo, como feito por Orígenes, 185 EC — 253 EC), ainda vemos essa mesma dúvida sobre de que tipo de relação praticada por mulheres se está imaginando aqui. Alguns Pais da Igreja, como Anastásio (296 ou 298 EC — 373 EC) e Agostinho (354 EC — 430 EC), entendiam que era um tipo de relação heterossexual, enquanto outros pensaram se tratar da lesbianidade, como João Crisóstomo (347 EC — 407 EC) e Clemente de Alexandria (150 EC — 215 EC).

Agora vamos caminhando para o epílogo. Esse trecho que analisei aqui faz parte de um discurso maior dentro da carta, Romanos 1:18–32. O curioso é que essa seção como um todo, e talvez tão longe a ponto de incluir Romanos 2:1–28 na sua sequência imediata, é sujeita a uma discussão acadêmica se se trata de uma interpolação. Sob essa hipótese de interpolação, essa parte como um todo não teria estado no original da epístola aos Romanos!

Os defensores dessa hipótese argumentam isso em razão da linguagem usada nessa seção, que parece muito divergente daquela do restante da própria epístola aos Romanos e de outras epístolas paulinas genuínas. Além disso, algumas ideias discutidas nessa seção parecem divergir dos ensinamentos de Paulo em outras cartas (também genuínas) e leitura da Epístola sem esta seção fica menos ‘convoluta’: sob a hipótese de que seria um trecho genuinamente paulino, há certa dificuldade em fazer a ponte entre o que vem antes e o que vem após essa seção. Por fim, é possível que Marcião, o gnóstico cristão (em sentido amplo*) que foi o primeiro a elaborar um cânon para o Novo Testamento e que consistia basicamente da maioria das epístolas paulinas + Evangelho (muito similar ao) de Lucas, tivesse à sua disposição uma carta aos Romanos sem Romanos 1:19 até 2:1! Se quiser saber mais sobre essa discussão, veja Walker Jr., 1999, Walker Jr., 2002. e Walker Jr., 2017.

E um segundo ponto curioso envolve esse uso do ‘contra a natureza’ nesse trecho sob análise. Em 1Coríntios 11:14 o cabelo comprido em homens é considerado algo contra a natureza também!

“Ou não vos ensina a mesma natureza que é desonra para o homem ter cabelo crescido?” (1 Coríntios 11:14)

E na própria epístola aos Romanos, Paulo faz todo um discurso sobre como não seria natural aos gentios serem enxertados no tronco de Israel, mas que não obstante Deus o faria e estava fazendo por meio do evangelho:

“Porque, se tu foste cortado do natural zambujeiro e, contra a natureza, enxertado na boa oliveira, quanto mais esses, que são naturais, serão enxertados na sua própria oliveira!” (Romanos 11:24)

Discordâncias à parte com a teologia paulina, essa outra seção da carta mostra que o ‘contra a natureza’ em Paulo poderia ser relativizado pela graça de Deus.

Por fim, com base na discussão dos Pais da Igreja podemos concluir que a ideia de uma condenação à lesbianidade surgiu relativamente cedo na tradição da Igreja cristã (enquanto provavelmente não no Novo Testamento), em pleno contraste com a tradição judaica na qual a lesbianidade passou basicamente desregulada até as codificações medievais de Lei Judaica mais especificamente do Rambam (veja post [59]), sendo essa proibição rabínica tardia mais limitada que a correlata na tradição cristã (veja post [60]).

Assim, podemos concluir com muita facilidade que a tradição cristã veio a herdar a rejeição veemente à lesbianidade da cultura helenista na qual a maioria dos cristãos a partir do 2º século eram nascidos e criados. Isso não foi herdado da cultura judaica.

*Em sentido amplo, porque a rigor o marcionismo pode ser considerado uma corrente distinta do gnosticismo, mas não vamos entrar nesse mérito aqui)

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

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