[103] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 50- Sodomia? (e conclusão sobre o cristianismo)
Tendo passado já alguns posts esclarecendo a questão do Novo Testamento cristão e como ele se relaciona à Bíblia Hebraica nesse assunto, uma dúvida final ainda deve ter ficado na mente do leitor: mas e aquela questão da ‘sodomia’? Se essa ideia não está presente nem na Bíblia Hebraica nem no Novo Testamento, de onde ela vem? Afinal, grande parte do problema do mundo cristão ocidental com a homossexualidade deriva da ideia de sodomia que supostamente viria da Bíblia mas na verdade não vem dela!
Bem, a genealogia agora já deve estar clara também para o leitor assíduo desta série. Primeiro, temos a Bíblia Hebraica. Depois, uma tradição judaica oral protorabínica, em hebraico mishnáico e aramaico, e uma literatura apocalíptica judaica de grupos específicos (como os essênios), em aramaico e grego, onde em dado momento Jesus (falante de aramaico e talvez hebraico mishnáico) aparece.
Aí temos o surgimento do ensinamento oral dos apóstolos originais, em aramaico, que, em contato com o judaísmo helenista (fala grega), leva à escrita dos livros do Novo Testamento, em grego (completados até o ano 110 EC). No segundo século surge a Igreja cristã de fala e cultura majoritariamente helenistas (grega e latina), com seus debates entre gnósticos, proto-ortodoxos e judeus-cristãos, sendo o primeiro cânon do Novo Testamento definido por um ‘gnóstico’, Marcião, por volta de 144 EC, o que levou à reação dos proto-ortodoxos em começar a se preocupar com o cânon ‘correto’.
Já da tradição judaica oral protorabínica surge o judaísmo rabínico, com a tradição oral rabínica estruturada pela Mishná (200 EC), em hebraico mishnáico. Também são gradativamente postos por escrito os Midrashim, expandindo as narrativas de livros bíblicos. Mais adiante, teremos os dois Talmudes, o de Jerusalém (500 EC) e da Babilônia (600 EC), este último prevalecendo por ser maior, com a Guemará comentando a Mishná, compilando ensinamentos de centenas e mesmo milhares de sábios rabínicos, tanto suas concordâncias como suas divergências.
No braço cristão, o período dos Sete Concílios Ecumênicos, de 325 EC a 787 EC, definiram uma ortodoxia de dogma cristão que uniformizou em grande medida o cristianismo mais plural que existira antes, tentando suprimir outras vertentes possíveis como heresias (às vezes conseguindo, às vezes levando aos cismas territoriais). Foi durante o período entre 300 e 400 EC que o grosso do cânon do Novo Testamento foi decidido. (Algumas Igrejas que ficaram isoladas como a Ortodoxa Tewahedo Etíope têm um cânon maior)
A ideia de sodomia não surge no judaísmo rabínico, que, ao contrário, o mais próximo da ideia de sodomita (Middat Sedom) tem a ver com a prática de injustiça econômica, não com práticas sexuais (muito menos homossexuais). E naturalmente essa ideia de sodomia não aparece no Novo Testamento, ainda muito próximo do contexto judaico.
Mas no Novo Testamento em si começa uma caminhada para uma forma de pensar mais helenista, o que é comprovado por sua escrita em grego. Os livros mais helênicos são as epístolas de Paulo e o Evangelho de João mais epístolas de João. Os livros menos helênicos (e mais judaicos-nativos) são o Evangelho de Mateus e a Epístola de Tiago. Os demais ficam intermediários, com grau maior ou menor de aproximação a esses pólos (exemplo: Apocalipse é bem judaico-cristão, enquanto o Evangelho de Lucas mais cristão helenista).
Isso se reflete também nos primeiros escritos pós-apostólicos, os chamados Pais Apostólicos, por exemplo, o Didaquê sendo mais judaico e os escritos de Inácio mais helênicos. Entre as obras proscritas pela ortodoxia posterior, os evangelhos perdidos em aramaico dos judeus-cristãos contrastam radicalmente com os evangelhos gnósticos-cristãos helênicos como o evangelho de Tomé.
A partir daí, o cristianismo no meio do segundo século vai se tornar majoritariamente helenista em termos culturais. Qual o motivo disso?
Primeiro, a obra missionária de Paulo vai firmar o cristianismo à maneira paulina (já mais helenista que o ensinamento oral dos apóstolos que viveram com o próprio Jesus) nos grandes centros do Império Romano, antes do ano 70 EC. De início a maioria ainda eram judeus helenistas e gentios que já frequentavam suas sinagogas. Mas isso preparou o caminho para uma explosão demográfica do cristianismo entre gentios de cultura puramente helênica, nascidos e criados na cultura greco-romana sem influências judaicas.
Segundo, com a destruição do Templo em 70 EC, antecedida pela morte de Tiago o irmão de Jesus em 62 EC, isso tudo representou um grande baque para o braço judaico-nativo do cristianismo, que era a comunidade original sucessora de Jesus, composta pelos apóstolos originais, as seguidoras mulheres (como Maria Madalena) e a própria família de Jesus (incluindo o Tiago já citado e Maria sua mãe). Esse cristianismo ainda era um judaísmo, tendo inclusive o Templo como um locus privilegiado de adoração.
Terceiro, os eventos em torno da guerra judaica de 135 EC levaram ao rompimento final entre Igreja e Sinagoga (em que pese a sobrevivência de comunidades judaico-cristãs aqui e acolá): como os judeus entraram em conflito direto com Roma em torno da soberania judaica sobre sua terra nativa, o cristianismo rompeu de vez com o caráter étnico judaico, por considerar irrelevante na prática se os judeus tinham ou não sua soberania restaurada ali.
Quarto, tudo o que falamos nos segundo e terceiro pontos significava que Jesus não iria voltar imediatamente, na própria geração de sua comunidade original (veja Mateus 16:28, um dito de Jesus que embasava esta esperança). No limite, morta toda a geração apostólica original, era necessário reconfigurar a esperança messiânica. Mas já tendo o Messias vindo, isso significava uma doutrina messiânica que seria muito divergente à reconfiguração que ocorreu no próprio judaísmo rabínico a respeito da questão messiânica, para o qual o Messias não tinha vindo ainda. Isso contribuiu para um afastamento ainda maior da raiz judaica.
Agora entendido que o cristianismo posterior é mais helênico que o Novo Testamento em si, fica mais claro como toda a carga cultural greco-romana vai influenciar enormemente os rumos do cristianismo. Um desses aspectos eram certas tendências anti-sexuais dentro do próprio mundo helênico, nas quais se valorizava muito mais o ‘espiritual’ acima do ‘material’ (colocado em termos simplificados, pois não é o foco aqui desenvolver os detalhes disso).
Então o cristianismo classicamente desenvolveu uma postura bem restritiva e desconfiada em relação à sexualidade humana como um todo, chegando à ideia de que a sexualidade deveria restringir-se ao sexo procriativo. Essa ideia nunca se desenvolveu no judaísmo rabínico, o qual sempre autorizou plenamente o sexo não procriativo.
A diferença entre judaísmo e cristianismo (clássico/medieval), em linhas gerais, seria: para o cristianismo, permitir um ato sexual demanda justificação, porque se parte duma proibição a priori do ato sexual em relação à qual se abrem exceções de permissão; para o judaísmo, proibir um ato sexual demanda justificação, porque se parte duma permissão a priori do ato sexual em relação à qual se abrem exceções de proibição. Mesmo se por hipótese ambos chegassem nas mesmas conclusões sobre o permitido e o proibido (o que não era o caso, mas suponha que tivesse acontecido), a justificação e o processo para chegar nisso teriam sido necessariamente diferentes entre essas duas tradições.
E esse aspecto mais restritivo à sexualidade no cristianismo afetou a interpretação sobre a história de Sodoma e Gomorra depois de vários séculos. De início a interpretação dela nos Pais da Igreja era similar a que encontramos na tradição rabínica, focada na injustiça econômica e na hospitalidade. Mas em algum momento da Idade Média, chegou-se na conclusão de que o principal pecado de Sodoma fora… ‘a sodomia’, entendido nesse sentido sexual que remetia ao homoerotismo.
Contudo, ‘a sodomia’ era uma categoria muito mais ampla que a do homoerotismo. Sodomia como categoria era aplicável a toda relação sexual não procriativa, incluindo homoerotismo, bestialidade, incesto, e mesmo relações sexuais heterossexuais fora do casamento. Como um sinônimo de ‘pecado carnal’.
Por conta disso, diferentes línguas ocidentais contemporâneas acabaram atrelando sodomia mais fortemente a diferentes práticas sexuais desse grupo genérico: o português ‘Sodomia’ como o francês ‘Sodomie’ se referem ao ato do sexo anal (seja homo ou heterossexual), enquanto o alemão ‘Sodomie’ se refere ao sexo com animais, passando pelo dinamarquês ‘sodomi’ que se refere tanto ao homoerotismo quanto à bestialidade.
Note que isso é muito diferente do caso judaico-rabínico, onde os rabinos buscaram classificar em diferentes categorias as práticas sexuais. Como vimos no post [91], dentro das categorias rabínicas, o sexo anal entre homens estava numa categoria ([56]), o sexo não penetrativo entre homens e a masturbação numa segunda categoria ([57]-[74]) que intersecciona com uma terceira categoria que abrange sexo não penetrativo entre homens e sexo não penetrativo com parentes ou com uma mulher casada ([82]), o sexo entre lésbicas que parecesse a penetração pênis-vagina e o sexo entre uma mulher e um menino uma quarta categoria ([60]), e outros tipos de sexo entre lésbicas ainda uma quinta categoria! A relação sexual antes do casamento não equivalia ao adultério, e por isso não gerava filhos ‘bastardos’ (mamzer). E uma série de outras distinções sutis.
Já no caso cristão medieval (especialmente ocidental), tudo foi resumido ao pecado carnal, no todo ou na maior parte coberto pelo conceito ‘sodomia’, de um lado, e ao ato conjugal, de outro lado.
O próprio fato do matrimônio ter sido elevado a um sacramento, um meio pelo qual Deus infunde sobrenaturalmente sua graça nos fiéis, fazia da relação sexual dentro do casamento algo completamente distinto de qualquer tipo de relação sexual fora do casamento, não importa o quanto essa parecesse a relação sexual dentro do próprio casamento. E curiosamente mesmo as igrejas protestantes, que abandonaram a ideia do matrimônio ser um sacramento, continuam na maior parte mantendo essa ‘consequência’ de vê-lo como um.
Em ambos os casos, tanto o judaico medieval como o cristão medieval, não havia a moderna ideia de orientação sexual que divide os atos sexuais primordialmente em termos de homossexualidade e heterossexualidade, e sua combinação como bissexualidade (no esquema científico, também incluiríamos a heteroflexibilidade e a homoflexibilidade, enquanto socialmente isso não seja tão usado). Então judeus e cristãos tradicionalmente NÃO falavam sobre homossexualidade, porque isso não era uma classificação/conceitualização usada no passado ([61]-[72]).
O que vivemos hoje em termos de religiosidade ocidental (de matriz cristã) é basicamente uma ressaca dessa concepção mais antiga de ‘sodomia’ (agora em países como o nosso mais focada na homossexualidade masculina) persistindo nas igrejas mesmo que conflitando com a nova concepção de orientação sexual que as próprias igrejas também conhecem.
A solução de remendo é falar que Deus não condena a orientação homossexual em si (seguindo a concepção de orientação sexual), mas que Deus condena a prática homossexual em si igualmente como condenaria a prática incestuosa ou adúltera ou da zoofilia etc. sem fazer nenhuma distinção (seguindo a concepção de sodomia).
O problema dessa solução de remendo é que ela é claramente incoerente, pois sob a concepção de orientação sexual, não tem como colocar em par qualquer prática homossexual não importa como seja e as práticas do adultério, incesto, bestialidade, sexo antes do casamento etc.
A concepção da sodomia antiga conseguia colocar tudo isso em pé de igualdade porque ela desconsiderava a orientação sexual, do ponto de vista dela qualquer ser humano tinha como que probabilidade igual de fazer sexo homo ou heterossexual desde que assim se dispusesse por vontade própria. É como se o ser humano não possuísse uma ‘orientação sexual’. E é apenas na ausência da ideia de orientação sexual que a concepção antiga de sodomia faz sentido nessa consequência de equivaler homoerotismo, incesto etc.
Então, o remendo de que podemos separar orientação e prática para, quando falamos da orientação isoladamente, podermos usar a concepção de orientação sexual, enquanto, quando falamos da prática isoladamente, podermos usar a concepção de sodomia, só seria possível dada uma falta de nexo causal entre a orientação e a prática, justamente o nexo causal que a concepção de orientação sexual necessariamente assume que exista.
E a solução de remendo tem um corolário: ao homossexual restaria a opção do celibato ou da castidade. Isso faz sentido dentro do pensamento cristão clássico de que a priori o sexo não é permitido. (E não faria nenhum sentido dentro do pensamento judaico clássico de que a priori o sexo é permitido) Contudo, isso gera o problema de que ao homossexual seria exigida uma supressão completa da sua orientação sexual, algo que não é exigido do heterossexual!
Então, novamente, vemos a incoerência de colocar em par coisas que não estão em par. Exigir igualmente do homossexual e do heterossexual não cometer adultério ou não cometer incesto é um tratamento equitativo. Mas exigir do homossexual uma supressão completa da sua orientação sexual, enquanto não se exige isso do heterossexual (que o pode fazer voluntariamente se quiser, como ato superrogatório, não obrigatório), é o contrário de um tratamento equitativo!
Sob a concepção de sodomia, como não havia a ideia de orientação sexual, ninguém era obrigado a suprimir sua orientação sexual porque ninguém tinha uma! Mas sob a concepção de orientação sexual, isso necessariamente seria o caso se toda a prática homoerótica for proibida enquanto alguma prática heterossexual for permitida.
Enquanto esse blog seja escrito da perspectiva judaica, e não da cristã, nesse ponto de diálogo interreligioso eu sou levado inevitavelmente à seguinte conclusão: é hora dos cristãos abandonarem por completo o modelo da sodomia!
Temos alguns exemplos disso entre as Igrejas inclusivas (cujo pioneirismo foi das Igrejas da Comunidade Metropolitana), e entre alguns teólogos principalmente em igrejas protestantes históricas como a anglicana/episcopal e a luterana (e mesmo alguns católicos). Mas enquanto no judaísmo a maioria dos movimentos judaicos aceita em grau maior ou menor a homossexualidade como vimos em diversos posts (do [79] ao [91]), a maioria dos movimentos cristãos rejeita por completo a homossexualidade.
E nem pensem que é necessário adotar uma teologia liberal, ou queer, para que se veja o problema desse cenário cristão. Dentro do judaísmo, mesmo judeus ortodoxos tem se tornado mais inclusivos. Não é preciso ser um judeu liberal para fazer essa guinada. O mesmo deveria valer para as teologias cristãs das mais conservadoras às mais liberais.
Então, a única explicação que me ocorre para esse indigesto estado de coisas no meio cristão é a demografia:
- como homossexuais são uma minoria populacional nas igrejas, não há suficiente proporção demográfica para fazer o tipo de pressão e empatia que leva ao repensar natural dessas posições que afetam essa demografia (muito diferente o caso das mulheres nas igrejas, as quais são maioria);
- como a filiação cristã é pensada mais em termos de escolha individual pelos grupos cristãos que mais crescem atualmente, torna-se mais cômodo perder os potenciais fiéis homossexuais sob a base de que ‘ninguém os obriga a estar aqui’. Escolhe estar na igreja quem quer aceitar as regras daquela igreja específica.
Note que esse segundo ponto ajuda a explicar porque muitos dos teólogos e religiosos cristãos inclusivos estão em Igrejas que praticam batismo infantil, um rito que torna o bebê num cristão pela escolha dos pais; e no caso judaico, ainda mais radical, o simples nascimento em família judaica automaticamente torna alguém judeu, o que torna mais urgente reter os judeus LGBTs dentro da família judaica estendida (o povo judeu).
E em relação ao primeiro ponto, se por algum motivo misterioso a partir de certa data 50% da população se tornasse homossexual, isso seria um número grande demais para ser ignorado. Pareceria injusto excluir metade da população das igrejas, afinal, essas sobreporcentagem não ‘escolheu’ ser assim. E de repente todos os argumentos que não pareciam convincentes para os religiosos mais irredutíveis, tornariam-se convincentes. Claro que sempre haveria alguns redutos anti-LGBT, mas a maioria dos movimentos cristãos seria inclusiva nesse cenário hipotético.
Demografia é destino? Cabe a cada fiel cristão decidir.
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