[74] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 21- Pró-Natalismo (Razão 3 do Levítico)

A Estrela da Redenção
6 min readNov 30, 2020

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Desde o post [62], vim desenvolvendo as razões para constar uma proibição ao sexo anal entre 2 homens no livro de Levítico. Razões estas para entender o porquê da proibição 1) ser sobre homossexualidade masculina, ao invés da feminina também 2) ser sobre o sexo anal, ao invés de outros tipos de homoerotismo.

Até o post anterior, eu trabalhei as duas razões principais:

  1. a associação do sexo anal entre 2 homens com idolatria e ritos sexuais entre os povos circundantes ao antigo Israel antes do texto ter sido escrito (razão 1);
  2. a associação do sexo anal entre 2 homens com relações hierárquicas de superior (ativo) e inferior (passivo) entre povos de cultura helenista que subjugaram o povo judeu após o texto já ter sido escrito, período no qual o processo de formação do cânon bíblico e do método rabínico tornou possível fazer uma leitura ‘canônica’ do mesmo que não havia se firmado até então mesmo que tecnicamente o texto já estivesse escrito (razão 2).

Apesar dessas duas razões já serem suficientes para entender como essa proibição geral do Levítico foi estabelecida (seja internamente ao próprio livro ou no contexto canônico mais amplo), penso que é necessário citar uma terceira razão, que ficou no ar durante todo esse tempo: o caráter pró-natalista da Lei Judaica desde suas origens na formação dos textos bíblicos e em sua recepção interpretativa canônica.

O motivo para mencionar essa terceira razão é que ela é acessória em relação às outras duas. Por si só, ela não é suficiente para motivar aquela proibição geral. Mas ela reforça o ponto das outras duas em favor do estabelecimento dessa proibição geral. E ela tem a vantagem de ser operante em todo o período, desde os primórdios do antigo Israel.

E o ponto aqui é muito simples: a Torá em particular e a Bíblia Hebraica no geral coloca uma ênfase grande na natalidade dentro da família e na perpetuação do povo hebreu/judeu, e mais do que isso, no crescimento populacional do povo hebreu/judeu.

Ter filhos é encarado como:

  1. uma bênção divina (“Eis que os filhos são herança do Senhor, e o fruto do ventre o seu galardão. Como flechas na mão de um homem poderoso, assim são os filhos da mocidade. Bem-aventurado o homem que enche deles a sua aljava; não serão confundidos, mas falarão com os seus inimigos à porta.”, Salmos 127:3–5);
  2. mas também como uma necessidade existencial! (vide a fala da matriarca Raquel, “Dá-me filhos, se não morro”, Gênesis 30:1)
“The Farm” [A Fazenda], Joan Miro, 1921-1922.

Então, na medida em que a relação homoerótica pudesse ameaçar essa maximização da natalidade, ela seria encarada com suspeita.

Mas por que então a proibição diz respeito apenas ao sexo anal entre 2 homens, isto é, um ato específico do homoerotismo masculino, ao invés do inteiro espectro homoerótico seja masculino ou feminino?

Um primeiro ponto é que a obrigação de ter filhos recaia sobre o homem, não sobre a mulher. Isso fica muito mais claro na Tradição Rabínica que discute isso explicitamente.

Mas no próprio texto bíblico encontramos isso no fato de que, por vezes, uma mulher (concubina/pileguesh) gera filhos para outra (esposa), de modo que o homem possa gerar filhos para a família.

Também vemos isso nas regras e narrativas relativas ao ‘Yibum’, mais conhecido como ‘casamento por levirato’, no qual o irmão de um homem que faleceu sem deixar filhos casa com a viúva deste e gera filhos em favor do irmão. Como o falecido não cumpriu essa obrigação, o irmão cumpre por ele e, ao fazê-lo, cumpre pra si mesmo também.

(Mas note que referido casamento NÃO é obrigatório e hoje em dia mesmo as comunidades judaicas ortodoxas não o praticam mais. Tanto casar por Yibum quanto fazer a cerimônia da Chalitsá para não casar por Yibum são AMBOS cumprimentos de Mitzvotpreceitos sagradospara a Lei Judaica)

Então, o homoerotismo masculino seria mais suspeito dessa perspectiva pró-natalista porque ele pode levar ao não cumprimento da obrigação de ter filhos (ou de tentar tê-los) pelo homem.

Mas por que então o foco no sexo anal? Aí temos de ir para um segundo ponto: o sexo anal entre homens envolve um ato que imita a penetração vaginal e envolve emissão de sêmen.

Então, a ideia é que o sexo anal é particularmente suspeito porque ele envolve uma potencial substituição por inteiro da penetração vaginal com uma mulher (pois uma relação muito similar já está sendo satisfeita, mas com outro homem) e ao mesmo tempo desperdiça sêmen que poderia ser usado para a penetração vaginal com uma mulher aumentando as chances de se gerar prole com ela.

Daí que: 1) relações lésbicas não envolvem desperdício de sêmen; 2) outros atos homoeróticos masculinos que não sejam a penetração anal não necessariamente desperdiçam sêmen e, mesmo quando tem esse potencial, não funcionam como substitutos para a penetração vaginal geradora em potencial de prole.

Essa categoria foi codificada na Tradição Rabínica como restrições/proibições a ‘derramar sêmen em vão’ que se dirigem especificamente aos homens, já que apenas estes podem derramar sêmen em vão, por exemplo, via masturbação (mas veja discussão sobre a origem tardia dessa ideia nos sábios do tempo do Talmude Babilônico em Greenberg, 2004, p. 152–155).

Tal proibição é de origem rabínica, não bíblica, segundo um importante Codificador da Lei Judaica, Rambam/Maimônides (Comentário à Mishnah, Sanhedrin 7:4).

Mas os sábios que a desenvolveram se inspiraram na narrativa bíblica de um homem que que casara pela instituição do Yibum já mencionado. Isto é, ele casou com a viúva de seu irmão, porque este morreu sem que eles tivessem filhos. O detalhe é que esse homem (anterior cunhado, agora esposo) evitou deliberadamente a concepção por não ejacular dentro dela:

“Então disse Judá a Onã: Toma a mulher do teu irmão, e casa-te com ela, e suscita descendência a teu irmão.
Onã, porém, soube que esta descendência não havia de ser para ele; e aconteceu que, quando possuía a mulher de seu irmão, derramava o sêmen na terra, para não dar descendência a seu irmão.
E o que fazia era mau aos olhos do Senhor, pelo que também o matou.” (Gênesis 38:8–10)

Não pretendo entrar na questão dessa categoria de ‘não derramar sêmen em vão’ presente na Halacha (Jurisprudência Judaica), mas chamo atenção que o motivo original para existirem restrições à masturbação no contexto judaico NÃO é que tal ato seja visto como ‘depravado’, mas sim que esse ato pode atrapalhar a produção da prole, o que seria indesejável.

Também as leis de pureza familiar tradicionais (estabelecendo uma proibição para relações sexuais durante a menstruação e um tempo em seguida a esta), pensadas pela Tradição Oral a partir do mesmo capítulo do Levítico (18:19), tem um objetivo similar, maximizando as relações sexuais no período fértil da mulher. Não se trata, como alguns erroneamente pensam, que ‘menstruar’ seja um pecado ou que a ‘impureza ritual’ seja um pecado ou que o desejo sexual não procriativo seja imoral. Não é isso! A Lei Judaica é muito mais pragmática e mundana: preservar e aumentar a população judia é sua meta nesses quesitos.

Por fim, cabe destacar que essa razão acessória NÃO é aplicável à humanidade em geral. O objetivo pró-natalista da Lei Judaica dirige-se aos judeus apenas, não às pessoas de outros povos. Mais um motivo para considerar tal razão como acessória em relação às outras duas, uma vez que tal razão, quando sozinha, fundamenta apenas regras específicas para o povo judeu.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

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