[78] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 25- Sexo NÃO é só Procriativo
Antes de entrarmos no tema dos ramos do judaísmo atual, percebi que uma dúvida ainda pode ter ficado para o leitor da série, principalmente com relação à razão 3 do Levítico, o caráter pró-natalista da Lei Judaica (post [74]).
A impressão equivocada que pode ter ficado é que a tradição judaica só vê a sexualidade pelo lado masculino e unicamente pelo seu aspecto penetrativo. Ou seja, o prazer sexual feminino é irrelevante, e a única coisa que importa é penetração vaginal porque esta pode gerar filhos. Daí isso explicaria porque eles não falam da lesbianidade nem do homoerotismo masculino não penetrativo, já que teriam uma visão reducionista machista da sexualidade em termos da penetração vaginal procriativa e do prazer unicamente masculino.
Eu entendo a incompreensão, afinal nossa cultura foi MUITO influenciada por uma visão assim, que as pessoas inclusive acham que está na Bíblia Hebraica. Mas nada está mais longe da verdade! A perspectiva judaica DE MILÊNIOS é TOTALMENTE DIFERENTE DISSO.
Primeiro, a Bíblia Hebraica tem LITERALMENTE um livro de poesia erótica no seu meio que alterna entre o homem e a mulher. Nela encontramos muitas referências à atração erótica por puro prazer, tanto do homem QUANTO DA MULHER, não necessariamente penetrativo, inclusive com uma referência ao sexo oral:
“Qual a macieira entre as árvores do bosque, tal é o meu amado entre os filhos;desejo muito a sua sombra, e debaixo dela me assento;e o seu fruto é doce ao meu paladar.” (Cânticos 2:3)
Esse livro ocupa um lugar importante na teologia/filosofia judaica e em sua liturgia, desde pelo menos os tempos do Rabi Akiva (final do século I/início do II da nossa era, isto é, 1.900 anos atrás), como comentei nos posts [41] e [50]. Rabi Akiva chamava esta poesia erótica de “Santidade das Santidades”, o livro ‘santíssimo’ entre os santos livros que compõem as Escrituras (Mishnah Yadayim 3:5). Isso porque, na Bíblia Hebraica (e no judaísmo), o amor ERÓTICO é uma metáfora central para o relacionamento entre Deus e seu povo (presente em vários livros proféticos). Não o amor ágape como muitos pensam, mas sim o amor EROS!
Em segundo lugar, vamos olhar a tradição judaica. Nela vemos uma extensão dessa postura positiva em relação à sexualidade recreativa, voltada ao prazer mútuo INCLUSIVE DA MULHER. Veja os seguintes trechos de tratados do Talmude:
“Deve haver contato corporal próximo durante a relação sexual. Isso significa que um marido não deve tratar sua esposa à maneira dos Persas, que realizam os deveres maritais em suas roupas. Isso fornece apoio para a determinação legal do Rav Huna que determinou que um esposo que diz “eu não realizarei meus deveres maritais a menos que ela vista suas roupas e eu as minhas” deve se divorciar dela e dar a ela sua indenização [o acordo de indenização em caso de divórcio previsto no contrato de casamento]” (Ketubot 48a)
“Rabbi Joshua ben Levi diz: Qualquer um que sabe que sua esposa é uma mulher temente a Deus e não a visita devidamente é chamado um pecador.” (Yevamot 62b)
Note que a ideia aqui é que a mulher tem direito a uma vida sexual que o marido tem o dever de fornecer, e não o contrário. (Se não quer acreditar em mim, veja a análise feita neste site, que é basicamente consensual)
Mas os mesmos sábios proibiram o estupro conjugal, NÃO SENDO DEVER da mulher transar sempre que o homem queira:
“Um homem é proibido de forçar sua esposa a ter relações maritais… Rabbi Joshua ben Levi similarmente estabeleceu: Qualquer um que força sua esposa a ter relações maritais terá filhos indignos.” (Eruvin 100b)
Essas coisas todas que vimos acima foram escritas por volta do ano 500, mas refletem entendimentos orais anteriores a isso (o Talmude compila discussões feitas anteriormente de maneira oral). Então, tais entendimentos têm pelo menos 1.500 anos de existência, e provavelmente mais do que isso.
Em sua codificação de Lei Judaica, Mishnê Torá, o Rambam/Maimônides estabelece que, segundo a tradição judaica, todo e qualquer ato sexual feito por um casal é permitido, INCLUSIVE sexo oral, sexo anal e carícias em qualquer parte do corpo um do outro (Mishneh Torah, Laws Concerning Forbidden Relations 21:9). Mas ele não pode estuprá-la nem iniciar o ato sexual se ela estiver temerosa (Mishneh Torah, Laws Concerning Forbidden Relations 21:12).
Em outra parte dessa mesma obra, o Rambam esclarece ainda mais esse ponto: “Eles não devem estar bêbados […] e nem a mulher estar dormindo no momento […]. Ao invés, [as relações sexuais devem ser conduzidas] com consentimento mútuo e alegria. Ele deve conversar e flertar/acariciá-la um tanto, de tal modo que ela fique relaxada” (Mishnê Torah, Hilchot Deot 5:4–5).
Lembrando que Mishnê Torá foi escrito pelo Rambam por volta dos anos 1170–1180, em plena Idade Média!
Enfim… peço ao leitor que tenha cuidado com certas inferências que podem ser derivadas de más informações prévias que o leitor tenha recebido nesse assunto, ou uma indevida pressuposição de certas posições negativas em relação ao prazer sexual presentes no cristianismo.
A maneira como a Bíblia Hebraica e a Tradição Judaica se relacionam com a temática da homossexualidade NÃO TEM NADA A VER com uma postura negativa em relação à sexualidade, nem com uma desconsideração do prazer sexual feminino, nem por uma desvalorização de atos sexuais não penetrativos. Eu já expliquei exaustivamente de onde vem as posturas bíblicas e tradicionais em relação a esse tema em vários posts prévios, e NADA do que eu disse implicava tal reducionismo machista que alguns acabaram pensando.
E no próximo post, voltando a falar do tema geral dessa série, já iniciarei a discussão sobre os ramos do judaísmo atual e como se posicionam em relação à questão homossexual.
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