[77] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 24- Levítico se Aplica aos Não-Judeus?
Até aqui eu tenho discutido a Bíblia Hebraica (vulgarmente chamada de “Velho” Testamento), em especial o livro de Levítico (na Torá), o único a trazer uma proibição para a homossexualidade (apenas masculina e apenas o ato do sexo anal). Também discuti expansões rabínicas (não bíblicas) restritivas a outros atos de homoerotismo masculino e para (certos) atos de lesbianidade, no âmbito da tradição judaica.
Mas será que essa proibição do livro de Levítico se aplica aos não-judeus? Na verdade, há duas questões separadas aqui. Se o livro de Levítico como um todo se aplica aos não-judeus e se o trecho de Levítico 18:22 (“não te deitarás com outro homem como se fosse mulher”) se aplica aos não-judeus.
Desse ponto de vista, a tradição judaica historicamente respondeu como: não e sim. O livro de Levítico se aplica apenas aos judeus pela Aliança entre Deus e o povo judeu, portanto, não se aplica aos não-judeus. MAS o trecho de Levítico 18:22 (entendido como referindo APENAS ao sexo anal entre homens) se aplica indiretamente aos não-judeus por conta de uma Aliança entre Deus e a humanidade anterior à Aliança de Deus com os judeus. Vamos entender isso melhor…
Num post antigo do blog, o [16], eu comentei que, para o judaísmo, os outros povos também estão sob uma aliança com Deus, aliança esta que a tradição judaica entendeu ter sido feita via Noé.
A premissa, seja para os judeus ou para toda a humanidade, é sempre a mesma:
1- Deus oferece primeiro, por sua graça, um benefício MATERIAL a uma comunidade, geralmente envolvendo uma terra para se estabelecer como povo e viver de forma livre da opressão;
2- Em contrapartida, depois disso, a comunidade precisa seguir as Mitzvot (preceitos), em especial pelo estabelecimento de uma comunidade humana justa, que é a sua parte do acordo.
No caso do povo judeu, isso é mais fácil de entender por conta da questão da ‘terra prometida’ e da libertação da escravidão no Egito. Mas isso acontece também na aliança com Noé. Nesta Deus promete dar as terras do mundo aos povos e aos animais perpetuamente, se comprometendo a nunca mais destruir nem a humanidade nem os animais como no dilúvio.
A contrapartida seriam as 7 Leis de Noé, a base mínima de Miztvot obrigatórias a serem seguidas por não judeus:
1- Não praticar idolatria;
2- Não blasfemar contra Deus;
3- Não cometer homicídio;
4- Não roubar;
5- Não ter relações sexuais proibidas, como adultério e relações incestuosas;
6- Não molestar os animais ingerindo um órgão retirado em vida;
7- Estabelecer tribunais para a realização da justiça.
Um não judeu pode cumprir Miztvot que estejam na Lei Judaica, em adição às leis de Noé, mas o fará voluntariamente, não com base nas ‘obrigações da Aliança’. As obrigações básicas de um não judeu pelo judaísmo são bem menores que as de um judeu.
Dentro do 5º ponto que elenquei, não ter relações sexuais proibidas, os sábios do Talmude entenderam que estaria uma proibição com o mesmo teor de Levítico 18:22. Mas a sua fundamentação NÃO está em Levítico 18:22, e sim neste pacto feito com Noé.
Se você ler a aliança entre Deus e Noé, como consta da Bíblia, em Gênesis 9, você perceberá que as 7 Leis não estão elencadas ali. Algumas estão, como a proibição do assassinato, mas outras não, inclusive essa das relações sexuais proibidas não está. Mas os rabinos entendiam que era possível descobrir o teor dessas Leis por intermédio de inferências com base em qualquer texto do Gênesis até Gênesis 7. Ou seja, instruções implícitas ou explícitas que pudessem ser encontradas no texto de Gênesis antes de Deus fazer o pacto com Noé após o dilúvio entrariam nas Leis de Noé.
Então, eles encontram uma proibição com o mesmo conteúdo de Levítico 18:22 em um texto também usado por cristãos (mas de uma forma diferente, como já veremos):
“Portanto deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma carne.” (Gênesis 2:24)
Esse texto é usado para fundamentar que as relações sexuais proibidas previstas em Levítico 18 se aplicam aos não-judeus. Uma inferência a cada uma dessas relações proibidas é feita a partir de cada uma das partes dessa sentença.
No caso que nos interessa nesta série, o argumento rabínico talmúdico se baseia numa inferência sobre a cláusula “e ele apegar-se-á” (Sanhedrin 58a). A ideia é que ‘apegar-se-á’ não é possível com outro homem. Daí a proibição de Levítico 18:22 estar já prevista nas Leis de Noé.
ENTRETANTO, como eu já discuti extensivamente no post [56], a proibição de Levítico 18:22 se refere ÚNICA E EXCLUSIVAMENTE ao sexo anal entre 2 homens. Ali não abrange nem outras formas de homoerotismo masculino, nem nenhuma forma de homoerotismo feminino.
Muitos cristãos usam Gênesis 2:24 para afirmar que todo o espectro de relações homoeróticas estaria proibida para toda a humanidade, por vezes com argumentos mesmo infantis ao estilo ‘Deus criou Adão e Eva, não Adão e Ivo”. Mas a verdade é que:
- o texto em seu sentido literal não trata do tema das relações sexuais proibidas;
- mesmo se fizermos uma inferência a partir desse texto para a questão das relações sexuais proibidas em geral e da homossexualidade em particular, indo além de sua literalidade imediata (como os rabinos do Talmude fizeram), o MÁXIMO que conseguimos obter disso é uma proibição ao sexo anal entre 2 homens.
E dentro da tradição judaica, como eu discuti no post [57], a proibição de outros atos homoeróticos masculinos que não o sexo anal se dá apenas rabinicamente, sob a ideia de evitar ‘se aproximar [de fazer o intercurso sexual proibido]’. Os rabinos acrescentaram esta ‘cerca’: faça/deixe de fazer um pouco mais do que se é de fato obrigado para evitar descumprir a obrigação.
Contudo, MESMO SE aceita essa visão da tradição judaica, tal proibição da tradição se aplicaria APENAS aos judeus. NÃO CONFUNDA. Essa parte de acréscimo rabínico não consta dessas Leis de Noé discutidas no Talmude.
Agora note: todo esse conceito de Leis de Noé NÃO é um conceito puramente bíblico, mas sim talmúdico. De fato, o texto de Gênesis traz o Pacto de Deus com Noé, e esse Pacto incorpora certas Leis. Mas não fica de todo claro quais Leis são essas e, mesmo se aceitássemos a narrativa desse Pacto como um fato histórico (algo que academicamente não podemos, mas vamos supor para fins de argumento), o teor do Pacto com as nações (goyim) foi perdido exceto pelo que encontramos no livro de Gênesis (isto é, pouca coisa).
Então, a discussão sobre as Leis de Noé faz mais sentido APÓS a entrega da Torá ao povo judeu, para fins de entendermos as relações do Deus de Israel com os outros povos à luz da Torá e a definição do que seria o ‘humano (minimamente) justo’ fora do pacto especificamente judaico. No fundo, ao contrário das aparências, essa questão não é sobre um passado remoto….
Os sábios do Talmude tentam derivá-las e inferi-las a partir de certas passagens na Torá que são cronologicamente anteriores ao primeiro ancestral judaico, mas sua visão no ponto relevante a nós aqui é afetada pelos posts que já discuti sobre a homossexualidade masculina como vivida no período romano ([72]-[73]).
Ao interpretar a proibição geral ao sexo anal masculino, eles tinham em mente como isso era vivenciado na sua época, não como veio a ser nos dias de hoje. Então, as considerações que já fiz sobre esse ponto no tocante ao texto de Levítico também se aplicam à categoria do Talmude das ‘Leis de Noé’ quando consideradas nações não-judias.
Por fim, cabe destacar que essa discussão sobre Leis de Noé é mais relevante para um ramo interno ao judaísmo ortodoxo, ligado ao Rebbe de Lubavitch (Chabad), que defende a necessidade de promover a observância das Leis de Noé entre os não-judeus como uma espécie de Halacha para as nações não-judias. (Uma atitude que recebe muitas críticas)
Para outros judeus, sejam ortodoxos ou não, essa questão não recebe muita atenção, na medida em que 1) as 7 Leis são apenas um parâmetro mínimo, 2) os aspectos universais do judaísmo, em especial sua (sabedoria) ética, são bem mais abrangentes do que a discussão de teor mais jurídico (halacha) envolvendo as 7 Leis, e 3) não cabe aos judeus legislar sobre outros povos.
E aproveitando a deixa, chegou a hora de falarmos sobre como os diversos ramos judaicos da atualidade se relacionam com a questão da homossexualidade, que depende de sua visão sobre a Jurisprudência Judaica tradicional (Halacha) em sua relação à ética judaica.
É o que apresentarei a seguir, mas apenas após o post imediatamente posterior a este, no qual abrirei um parêntesis sobre a tradição judaica como um todo para esclarecer uma possível dúvida de alguns leitores que deve ser sanada antes de falarmos dos ramos específicos do judaísmo atual.
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