[91] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 38- O Diferencial Reformista e Reconstrucionista

A Estrela da Redenção
7 min readFeb 19, 2021

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No post anterior expus, com base no texto de um rabino reformista, a ideia de que os rabinos do Talmude, e mesmo os escritores originais do livro de Levítico, poderiam adotar a posição judaica reformista (e reconstrucionista) sobre homossexualidade caso tivessem o conhecimento que temos hoje.

Contudo, alguns leitores podem ter ficado intrigados: como a posição reformista/reconstrucionista não é halachica (isto é, pautada pelo método jurisprudencial tradicional de Lei Judaica), mas sim ética, qual seria o seu caráter distintivo como uma posição judaica?

A resposta a essa pergunta toca em outro ponto importante. No post [87], eu discuti qual seria a diferença entre as posições do judaísmo conservador (masorti) e de parte da ortodoxia moderna, que havíamos discutido nos posts anteriores. Agora, seria a hora de apresentar o que torna diferente a posição reformista/reconstrucionista dessas posições conservadoras/ortodoxas modernas (agora consideradas no que elas tem de comum, e que as contrapõem à primeira).

Sim, de fato a posição reformista/reconstrucionista não é pautada no procedimento da Halacha, seja o com base estritamente nas codificações clássicas como quer a ortodoxia seja o atualizado dentro do movimento conservador.

Para alguns (ortodoxos mais fundamentalistas), isso tornaria suspeito seu status como uma posição legitimamente judaica (ou judaico-religiosa), mas isto é um grande equívoco. Apesar de não oferecer uma decisão halachica (judicial/arbitral), a posição reformista/reconstrucionista ainda é pautada na Torá, e, portanto, judaica (ou judaico-religiosa).

Coloquei esse ‘judaico-religiosa’ porque o objetor poderia até considerar a posição reformista/reconstrucionista como uma posição judaica, mas apenas no sentido secular da vida judaica. Sob esse ponto de vista, estaríamos diante de uma opção feita por judeus seculares com base em argumentos políticos seculares, à semelhança como o sionismo é um movimento judaico-secular, ou seja, que não se fundamenta na Torá. Esse ponto de vista assume que a posição reformista/reconstrucionista seria ‘secular’ por não ser baseada na Halacha, e, assim, não seria “de Torá”. Mas é justamente contra um tal entendimento restritivo do que seria o “judaico de Torá” que estou me levantando aqui.

Judeus reformistas e reconstrucionistas não usam simplesmente teoria e prática políticas seculares para adotar sua posição integralmente inclusiva à homossexualidade. Ao contrário, seu argumento tem por base como o mandato da Torá deve ser aplicado quando estamos diante de novos conhecimentos e novas circunstâncias, em especial sobre o que seria a sexualidade.

Assim, para entender plenamente a posição judaica reformista e reconstrucionista, é preciso ter em mente os seguintes pontos.

Primeiro, os reformistas e os reconstrucionistas não rejeitam a Torá. O fato de não discutirem seus pontos duma perspectiva estritamente de Halacha e pretendendo fazer Halacha NÃO advém de uma pretensa rejeição à Torá!

Esse aspecto das práticas reformista e reconstrucionista advém de certo realismo sociológico e político. Os judeus não vivem mais como comunidades autônomas em sociedades tradicionais como outrora viveram. Agora, eles são cidadãos de Estados-nação modernos. O próprio Estado de Israel, mesmo sendo um Estado judaico, é um Estado-nação moderno.

Portanto, o Direito sobre o qual os judeus vivem hoje é o israelense (ordem jurídica judaico-secular) ou o de outro Estado-nação (ordens jurídicas não-judaicas). A Halacha NÃO é mais o Direito sob o qual os judeus vivem hoje (enquanto, em Israel, partes dela ainda sejam usadas para definir certas questões, como a do casamento entre judeus, uma vez que não existe casamento civil feito por juízes israelenses).

Agora, os rabinos reformistas e reconstrucionistas conhecem a Halacha e conhecem os textos fundamentais de Lei Judaica (Talmude, Torá, etc.). Mas seu papel não é mais o de ‘legislar’ e ‘arbitrar’ autoritativamente, à maneira de um juiz, as comunidades com as quais trabalham. E sim de usar tal conhecimento para ajudar suas comunidades a reproduzirem os valores judaicos que a Halacha (e a Agadá, Mussar, Filosofia Judaica, etc.) encarna para dentro de uma existência contemporânea-moderna.

Daí ganhar centralidade a ética: não sendo mais a Halacha uma ordem jurídica vinculativa nem mesmo no único Estado judaico existente, o aspecto ético da Torá (escrita e oral) ganha primazia sobre seu aspecto jurídico.

Claro que conservadores e ortodoxos (incluindo ortodoxos modernos) tem outra forma de entender essa questão, que os justificaria a continuar usando o procedimento halachico tradicional mesmo que a Halacha estritamente falando não seja mais uma ordem jurídica vinculativa. Mas meu ponto aqui é que, sob as premissas dos reformistas e reconstrucionistas, seu uso mais flexível e criativo da Halacha com enfoque na ética faz muito sentido.

Isso nos leva a um segundo ponto: sob o enfoque reformista e reconstrucionista, os aspectos rituais da Torá são importantes para o cultivo da santidade. Mas a santidade, em sentido judaico (não confundir com os usos cristãos do termo), serve para a lapidação do caráter, que deve ser entendido primordialmente no aspecto ético e de justiça social. Assim, mesmo fora o contexto histórico moderno, temos mais um argumento independente para sustentar que a ética judaica deva ter a primazia.

E aqui encontra-se no próprio passado as bases para tal pensamento: todo o arcabouço dos antigos profetas israelitas (os livros dos 3 Profetas Maiores e 12 Profetas Menores que fazem parte da Bíblia Hebraica) ia no sentido de que Deus deseja mais a ética do que o ritual. Conclusão similar pode ser tirada da literatura bíblica de sabedoria (Provérbios e Eclesiastes). No caso da homossexualidade, é digno de nota que todos esses livros bíblicos proféticos e sapienciais NÃO pressupõem a proibição de Levítico (ao sexo anal entre 2 homens), como já mostrei nos posts [55]-[65]-[66], o que significa, ironicamente, que é como se seus autores fossem reformistas.

Por fim, nesse resgate das fontes também ganha destaque o tratado ético do Talmude, o Pirkei Avot, e outros aspectos éticos e de justiça social espalhados por toda a tradição oral judaica.

Aqui é importante destacar, considerando o primeiro e o segundo ponto, que a vida judaica tradicional pré-modernidade NÃO pode ser entendida como ‘judaísmo ortodoxo’. O judaísmo ortodoxo é uma REAÇÃO à modernidade e aos primórdios do movimento reformista. O que havia antes era o judaísmo tradicional, que na verdade era uma multiplicidade de comunidades com algumas divisões étnicas maiores (sefaraditas, askhenazi, etc.) nas quais os estilos de governança comunitária (mesmo que ‘halachico’) diferiram bastante no espaço e no tempo.

E isso nos permite chegar ao terceiro ponto: a meu ver a principal diferença entre a posição reformista/reconstrucionista e a posição dos conservadores e de parte da Ortodoxia Moderna (daqueles ortodoxos que oficiam casamento homoafetivo) reside no CONCEITO usado para decidir sobre a homossexualidade com base na Torá. Mais do que uma discussão sobre adotar ou não o procedimento da Halacha (ou seja, a FORMA na qual essas decisões de comunidade judaica são tomadas), a diferença está no CONTEÚDO usado para conceitualizar aquilo que está ‘sob avaliação’.

O entendimento tradicional da questão homossexual sob a Lei Judaica não conhecia a homossexualidade como tal. Como vimos em vários dos posts anteriores desta série, NÃO EXISTE um tratamento unificado para a categoria da homossexualidade na tradição judaica. De fato, não existe uma categoria paralela à de ‘homossexualidade’ como a entendemos hoje. Ainda mais forte: nem mesmo algo paralelo a ‘atos homossexuais’. Repito: NÃO EXISTE UMA CATEGORIA ÚNICA ALI.

Então, nesse entendimento tradicional existe uma série de comportamentos separados. O sexo anal entre homens é uma coisa. Os atos homoeróticos masculinos não-penetrativos, outra coisa. E atos lésbicos que imitem o intercurso pênis-vagina, uma terceira coisa. Outros atos lésbicos que não fazem tal imitação? Não encaixa em nenhum dos anteriores!

Isso permite ‘cortar a realidade’ de uma maneira muito diferente de como a nossa definição moderna de orientação sexual faz. Por exemplo, na Lei Judaica atos homoeróticos masculinos não-penetrativos e masturbação masculina são MAIS PRÓXIMOS ENTRE SI do que atos homoeróticos não-penetrativos e o sexo anal homoerótico entre homens. Note que sob a nossa definição moderna, o contrário é verdadeiro.

Outro exemplo: pela Lei Judaica, os atos lésbicos rabinicamente proibidos na Idade Média por ‘parecerem’ o intercurso pênis-vagina são mais próximos do intercurso entre uma mulher e um garoto pré-púbere (cujo ato sexual também ‘pareceria’ o intercurso pênis-vagina entre adultos) do que de outros atos lésbicos ou de qualquer ato homoerótico masculino! Novamente, pela nossa definição moderna de sexualidade, o contrário seria o caso.

Então, a insistência de conservadores e ortodoxos modernos em tratar a homossexualidade com base nesse recorte antigo implica num tratamento mais fragmentário dessa questão. Certamente esses grupos estão cientes da definição moderna da orientação sexual e mesmo a mencionam em suas decisões; contudo, quando vestem a ‘toga’ da Halacha, tal definição fica subordinada à tradicional.

Já os reformistas e reconstrucionistas ‘viram o jogo’: SE nós adotamos hoje uma definição moderna de orientação sexual que está solidamente fundamentada numa série de evidências e fatos empíricos, então nós precisamos refletir sobre a consequência de adotar ESSE FRAMEWORK CONCEITUAL ao pensar esses casos em termos de Torá.

Ou seja: o que aconteceria se nós analisássemos as obrigações advindas da Torá em termos desse framework conceitual da orientação sexual, ao invés do framework conceitual clássico fragmentado que a Halacha utilizava?

Note que isso independe de eu fazer ou não o procedimento halachico (isto é, a forma da decisão estar na moldura da Halacha). Porque eu poderia fazer também o seguinte exercício imaginativo:

SE os judeus do passado que escreveram o livro de Levítico ou o Talmude ou as codificações medievais de Lei Judaica TIVESSEM conhecido o framework conceitual sustentado por sólida evidência empírica, a Halacha sobre isso TERIA SIDO DIFERENTE. É o que vimos esboçado no post anterior (o [90]) e que eu já tinha chegado próximo também nos posts [61]-[72]-[73]-[88].

Portanto, no fundo encontramos no cerne da postura reformista e reconstrucionista, a Torá, e sim, também, a Halacha. O diferencial está em examinar as consequências de adotar integralmente as descobertas contemporâneas sobre a sexualidade, não somente ao nível empírico (por exemplo, o caráter não voluntário da atração sexual), mas também ao nível teórico (por exemplo, ver a sexualidade como uma questão intrínseca, formativa da identidade do sujeito).

Ao vermos dessa nova maneira, abrimos a porta não apenas para acomodar a homossexualidade dentro da vida judaica, mas para como esses outros horizontes da sexualidade humana podem contribuir ativamente para uma melhor comunidade judaica e para a plena realização da experiência humana em toda a sua diversidade. Ou seja, como parte plena da própria redenção (profundamente corporal, e até mesmo com uma dimensão erótica) que o judaísmo tanto anseia para a humanidade.

“Le Cantique des Cantiques IV” [O Cântico dos Cânticos IV], Marc Chagall, 1958.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

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