[81] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 28- Judaísmo Ortodoxo Pró-LGBT

A Estrela da Redenção
4 min readDec 16, 2020

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R. Steven Greenberg é um rabino ortodoxo que defende, em seu livro “Wrestling with God and Men: Homosexuality in the Jewish Tradition” (2004), que Levítico 18:22 receba uma nova leitura contextual com base na gramática hebraica. Leitura esta que, apesar de gramatical, só fica clara quando entendemos que uma das razões para esse trecho é o aspecto hierárquico e de humilhação que o sexo anal entre homens tinha na antiguidade clássica (no qual o passivo era inferiorizado por ser o penetrado), de que falei nos posts [68]-[71]-[72]-[73].

Ele pontua como o fraseamento de Levítico 18:22 é muito incomum no texto bíblico. A expressão que designa o ato proibido, “mishkeve ishah” (que eu discuti exaustivamente no post [56]), não aparece em nenhum outro lugar das Escrituras, e o primeiro termo ‘mishkeve’ (que pode ser traduzido como ‘cama’ ou ‘leito’, onde se dorme — מִשְׁכְּבֵ֣) aparece apenas uma outra vez. (Isso é um grande balde de água fria na perspectiva fundamentalista que acha que basta ler o texto para entender seu significado…)

Mas o interessante é que a segunda aparição do termo ‘mishkeve’ (מִשְׁכְּבֵ֣) está em Gênesis:

“Impetuoso como a água, não serás o mais excelente, porquanto subiste ao leito [mishkevei — מִשְׁכְּבֵ֣י] de teu pai. Então o contaminaste; subiu à minha cama.” (Gênesis 49:4)

Essa referência em sentido literal tem relação com Ruben ter relações sexuais com a concubina de seu pai, sugerindo um estupro em Gênesis 35:22. A tradição judaica entendeu isso como sendo que Rúben desorganizou a cama de seu pai (existe uma lógica por trás disso, que por questões de espaço não comentarei aqui — veja o comentário de Rashi ao versículo), e isso foi considerado ‘como se’ ele tivesse deitado com a concubina do seu pai (um ato infamante). Mas academicamente é mais aceito que a referência seja a uma relação sexual com a concubina de seu pai (provavelmente não consentida) e R. Greenberg aceita esta visão.

Ou seja, pelo contexto de Gênesis 49:4 e Gênesis 35:22 ‘mishkeve’ é usado para designar a condição humilhante e infamante na qual um ato sexual foi feito, apossando-se de outro ser humano com violência (neste caso, de uma mulher). Fazendo a leitura de Levítico 18:22 a partir disso, ficaria assim:

V’et-zachar (Com homem)

lo tishkav (não farás penetração sexual)

mishk’vei ishah (para humilhar)

to’evah hu (é toevah)

Mas ele também faz uma outra proposta de leitura. Segundo a tradição judaica, mesmo os pingos do hebraico são relevantes para entender o significado de um texto. Isto é, aspectos gramaticais a mais que em tese não deveriam estar lá significam alguma coisa.

Em Levítico 18:22, temos uma palavra que aparentemente não devia estar lá, ‘et’. Um ‘et’ extra, para os sábios do Talmude, acrescenta algo à classe de coisas mencionadas, incluindo de forma oculta algo a mais sem falá-lo diretamente. Por exemplo no mandamento de ‘honrarás teu pai e tua mãe’ existe um duplo ‘et’ (que some na tradução). Os sábios entenderam que isso significava para honrar também o padrasto e a madrasta.

R. Greenberg aponta que a única proibição sexual de Levítico 18 que começa com um ‘et’ é a de 18:22, e, pelo método rabínico, isso deve ter algum significado. O ‘et’ está logo no ínicio, definindo o objeto da ação:

V’et-zachar (Com et homem)

Então, ele deve acrescentar outro objeto que sofre a ação de ‘mishk’vei ishah’. O ‘possuído’ por esse ato pode ser um homem e um “X” que não está dito diretamente. E o candidato mais natural aqui seria…. “uma mulher”! Na nova leitura ficaria assim:

V’et-zachar (Com [seja uma mulher ou um] homem)

lo tishkav (não farás penetração sexual)

mishk’vei ishah (para humilhar)

to’evah hu (é toevah)

Desse modo, o R. Greenberg entende que o significado de Levítico 18:22 é a proibição de um ato sexual por um homem que seja feito de modo degradante a outra pessoa, seja homem ou mulher. O sexo anal entre homens pode ser uma forma de fazer isso, mas não necessariamente faz isso, se realizado num contexto afetivo.

Isso bateria bem também com aquilo que os próprios rabinos do Talmude entendiam quando refletiam sobre o sexo anal masculino na cultura helenista que os circundava (que usava este como uma forma de degradação do passivo), mas sem absolutizar o ponto em si sobre o ato do sexo anal entre homens.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

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