[88] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 35- Sábios do Talmude Adotariam Halacha Mais Inclusiva?
Vimos nos últimos posts posições judaicas que são vanguardistas em matéria de Halacha (Jurisprudência Judaica tradicional) na questão LGBT. Isto é, tais posições trabalham no framework halachico tradicional de raciocínio com base em precedentes e, ainda assim, alcançam uma posição muito mais inclusiva na questão LGBT que a maneira mais clássica de se entender este assunto em termos de Halacha.
Vimos duas variantes dessa estratégia: a ortodoxa moderna (aqui incluindo versões sefarditas, apesar da ortodoxia moderna ser askhenazi) e a conservadora. A diferença é que a ortodoxa moderna se baseia ainda na Halacha clássica tentando encontrar brechas nela, enquanto a conservadora favorece sua modificação deliberada em continuidade à prática halachica do passado.
Uma questão que podemos fazer seria: os sábios do Talmude estariam afinados com tais posições vanguardistas (seja ortodoxa moderna ou conservadora) se vivessem hoje?
A meu ver, tais posições representam melhor o espírito que animava a discussão de precedentes e de exegese feitas pelos sábios do Talmude enquanto produziram o material-fonte da Halacha clássica.
O que chamamos de Halacha clássica é uma entre diferentes maneiras de organizar e derivar decisões práticas a partir das discussões feitas na Mishná (com Zigot e Tannaim) e na Guemará (dos Amoraim).
Assim, o que hoje nos parece a ‘reinvenção’ criativa da Halacha nada mais é do que aquilo pelo qual a própria Halacha já primava com os sábios tanaíticos e amoraitas que escreveram o Talmude.
Daniel Boyarin nos traz razões adicionais para pensar assim considerando os próprios dias nos quais viveram os sábios talmúdicos. Boyarin é um professor de Talmude e judeu ortodoxo (ortodoxia moderna) que também é conhecido por trabalhos em teoria queer e feminismo, e por posições críticas ao sionismo favorecendo uma judaicidade da diáspora.
No artigo “Are There Any Jews in “The History of Sexuality”?” (1995), retrabalhado como capítulo em uma coletânea sobre teologia queer sob o título “Against Rabbinic Sexuality” (2007), Boyarin mostra como os sábios do Talmude e a cultura bíblica que os antecedeu não se baseavam numa divisão de sexualidade homo versus heterossexual em sua visão sobre o comportamento sexual.
Boyarin entende que seu critério residia antes na questão do gênero. A proibição ao sexo anal contida tanto na Bíblia Hebraica como no Talmude se deriva dum esforço para impedir a mistura do domínio masculino e do domínio feminino. (Mesmo enquanto o próprio Talmude reconheça no total seis identidades sexuais)
Aqui ele trabalha a razão por detrás da proibição de Levítico de uma forma diferente que trabalhei antes nesta série, porque ele a entende dentro da categoria de leis relativas ao ‘evitar misturas’, que inclui proibições como a de misturar linho e lã nas roupas, algo que R. Greenberg também faz em seu livro “Wrestling with God and Men: Homosexuality in the Jewish Tradition” (2004). Eu entendo de forma diferente por ver isso mais como consequência da regra (com seu esforço anti-idolatria por detrás) que como causa, mas é sem dúvida uma posição legítima, principalmente — a meu ver — para o caso dos sábios do Talmude.
Conclusão de Boyarin: independente da razão exata para a proibição ao sexo anal entre homens, não temos muita razão para pensar que isso se expandia para outras práticas homoeróticas (como já mostrei à exaustão aqui na série).
Não havendo uma divisão de sexualidade entre homossexual versus heterossexual na cultura rabínica, Boyarin vai atrás de certas pistas de como a intimidade entre homens — erotizada ou não — se expressaria de maneiras inesperadas para nós que pensamos em termos de uma divisão muito rígida entre o hetero e o homossexual.
Por exemplo, um midrash pergunta “quem é um amigo?” e responde “aquele com quem se come, bebe, le, estuda, dorme e revela para ele todos os seus segredos — segredos da Torá e segredos dos caminhos desse mundo”. “Dormir com” aqui não tem o significado metafórico mais carregado de nossos idiomas modernos, mas o texto está falando de um nível muito intenso e emocional de intimidade entre homens. “Caminhos desse mundo” é um termo metafórico ambíguo que pode se referir a muitas áreas da vida ordinária, como atividades comerciais, mas também sexo (como se percebe ao comparar com outros midrashim).
Obviamente não temos como dizer exatamente que expressões de intimidade os sábios do Talmude de fato se permitiam. Mas o ponto importante aqui é que as fronteiras da experiência erótica para eles — argumenta Boyarin — não eram tão rigidamente definidas como agora o são.
Ou seja, justamente porque as culturas bíblicas e talmúdicas não tinham uma categoria do homossexual, elas permitiriam maiores possibilidades normativas para o homoerótico.
A maneira como eles viam essa questão era, de um lado, o sexo anal entre homens, que ameaçava a identidade masculina naquela cultura, e outras práticas íntimas (eróticas ou não) entre pessoas do mesmo sexo, que não ameaçavam a identidade masculina. Portanto, se engajar nessas outras práticas poderia ser feito, mais ou menos normativamente, sem atrair para si o espectro da masculinidade ameaçada.
Assim, só quando a identidade sexual passa a ser determinada pela escolha do objeto (se homem ou se mulher) que qualquer forma de identidade física entre homens se torna tão problemática para nossa cultura, algo que não acontecia nas antigas culturas do mediterrâneo (seja a helenista seja a judaica).
O que pensar da proposta provocativa de Boyarin? Uma possibilidade é encara-la como uma forma de exegese criativa dos textos rabínicos, mas não muito além disso. Uma objeção seria que os próprios sábios também consideraram que um homem judeu não é suspeito do intercurso proibido, e por isso dois homens judeus podem dormir juntos na mesma cama (Kiddushin 82a), então eles não poderiam praticar abertamente o homoerotismo.
Mas eu penso que isso perde o ponto da proposta de Boyarin. Boyarin concorda que os sábios não permitiriam o sexo anal entre homens. A sua questão é que eles não eram tão estritos quanto a outras formas de intimidade mesmo que física entre homens, justamente porque eles não tratavam essas coisas como estando na mesma categoria. O que para nós poderia parecer ‘gay’ não pareceria assim a eles.
Nós não sabemos de fato quais seriam as intimidades entre homens que eles se permitiam, se eróticas ou não. Mas não é irrazoável pensar que de fato existissem amizades ‘calorosas’, que nunca tiveram sexo anal, mas que tinham um caráter homorromântico e talvez homoerótico (como também pode ter sido o caso de Davi e Jônatas, e como vimos no caso da poesia homoerótica judaica sefardita medieval).
Um exemplo interessante é o caso dos rabi Yonatan e Resh Lakisha, que ele aborda em outro paper “Why is Rabbi Yonatan a Woman? Or, a Queer Marriage Gone Bad: ‘Platonic Love’ in the Talmud” (2006), também discutido por R. Greenberg em seu livro.
O Talmude conta que rabi Yonatam era extremamente belo, e que Resh Lakisha, no dia em que se conheceram, o viu tomando banho nu no Jordão e de primeira pensou ser uma mulher*! Quando se aproximou de R. Yonatam atraído por aquela visão, ele louva a beleza deste e ambos acabam formando uma relação de discipulado pelo qual R. Yonatam passaria a ensinar Resh Lakisha (que desposa a irmã de R. Yonatam no processo…).
Leia o paper de Boyarin ou o livro de Greeberg para outros detalhes dessa história (p. ex. alguns manuscritos omitem a parte de confundir com uma mulher, o que reforça a sugestão homoerótica do episódio), ou assista essa aula comentando sobre o livro “O Erotismo da Cabalá” (Die Erotik der Kabbala, 1923) de Jiri Langer que aborda a questão do amor entre homens mencionando esta e outras histórias.
Agora você pode estar pensando: mas se a proibição às demais práticas homoeróticas não penetrativas foram proibições rabínicas, como Boyarin pode estar dizendo que talvez alguns deles praticassem algumas delas?
Bem… como vimos no post [57], a discussão na Halacha em torno disso envolve as primeiras tentativas de codificação halachica com Rambam/Maimônides, que tentava fundamentar tal proibição (não só no caso homoerótico masculino, mas para as todas as relações sexuais proibidas de maneira geral) como bíblica. Ramban/Nachmânides vem em contraponto mostrando que tal proibição seria rabínica.
As próprias fontes talmúdicas não são claras sobre essa proibição. Há discussão sobre evitar contato próximo com a esposa menstruada para evitar a relação sexual durante a menstruação por exemplo (Shabbat 13a), mas não há sobre o caso homoerótico. O Talmude de modo geral é muito lacônico sobre esse tema…
Assim, não fica claro quando exatamente referida proibição total foi estabelecida na Tradição e parece que o intuito original de evitar certos atos periféricos às relações sexuais (penetrativas) proibidas era mais voltado para relações entre pessoas de sexos diferentes do que entre pessoas do mesmo sexo. (Por conta da penetração vaginal ser um ato corriqueiramente praticado)
Com o advento dos esforços codificatórios, acabou se consagrando uma opção mais restritiva considerando as possibilidades do material escrito, mas tal opção não é a única consistente com a redação talmúdica. A meu ver aqui está a principal contribuição feita por Boyarin nesse estudo, trazer à tona como o material escrito por si só permitiria opções menos restritivas também, mas que não foram exploradas pelos codificadores (chamados de Rishonim; que podem ou não ter herdado sua opção mais restritiva de seus predecessores, os Geonim, pelo aprendizado oral nas academias geônicas?).
Assim, é possível que essas opções de vanguarda em termos de Halacha, tanto a versão conservadora como a versão de alguns ortodoxos modernos, sejam mais próximas dos sábios do Talmude do que poderíamos imaginar a princípio.
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