[172] A Difícil Vida dos Eleitos por Deus na Bíblia Hebraica

A Estrela da Redenção
9 min readNov 29, 2021

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Uma das coisas mais mal compreendidas a respeito da Bíblia Hebraica, vulgarmente conhecida como ‘Velho’ Testamento, é de que nela supostamente os justos sempre se davam bem, enquanto os maus sempre se davam mal (no máximo aceitando exceções à regra geral, como no caso de Jó).

Essa mal compreensão frequentemente vem de círculos cristãos, especialmente aqueles ligados: 1) à teologia da prosperidade, que recorrem à ênfase da Bíblia Hebraica nas bênçãos divinas nesse mundo para erroneamente tentar apoiar tal teologia; 2) ao dispensacionalismo, segundo o qual na ‘velha’ dispensação (a dos judeus), Deus atuaria de forma mais imediata na realidade humana, premiando os justos e punindo os maus imediatamente, algo que Ele teria deixado de fazer na ‘nova’ dispensação (a da igreja cristã).

A Bíblia Hebraica de fato enfatiza a bênção divina NESSE MUNDO, uma vez que seu objetivo é a construção de uma comunidade boa e próspera aqui e agora. A Torá (Escrita e Oral) organizou a vida do povo judeu durante milênios, provendo uma série de preceitos práticos para serem seguidos. A civilização judaica sempre enfatizou “mais a vibração e o crescimento comunitários do que a salvação individual” (Maurice Lamm, “Bem-vindo ao Judaísmo: retorno e conversão”, 1998).

É justamente esse elo transindividual que é esquecido por esses leitores apressados da Bíblia Hebraica. As recompensas ocorrem nesse mundo, mas elas não são estritamente pensadas de forma individualista. A consequência positiva pelo bem feito por um justo pode ser difundida entre outras pessoas, quiçá a comunidade inteira, e ainda por futuras gerações. O que leva ao outro lado da moeda: a consequência negativa pelo mal feito por um injusto pode ser difundida entre outras pessoas, quiçá a comunidade inteira, e ainda por futuras gerações. (Mas haveria uma assimetria aqui: os efeitos positivos do bem feito são superiores aos efeitos negativos do mal feito; tudo o mais igual, os efeitos positivos difusos do bem feito se estendem mais no tempo e no espaço do que os efeitos negativos difusos do mal feito)

O motivo é bem lógico: a ideia de bênção e maldição divinas na Bíblia Hebraica tem um teor consistentemente mundano e prático, afeito à observação concreta do que acontece na prática (p. ex. como se associar a pessoas ruins pode fazer você sofrer mesmo se você não for ruim como elas). É diferente do amálgama de mundanismo e sobrenaturalismo como ocorre na teologia da prosperidade e no dispensacionalismo cristãos, onde se demanda fé em ocorrências milagrosas para poder sustentar suas ideias acerca da bênção e da maldição.

É por isso que, na Bíblia Hebraica, ao contrário da caricatura promovida pela teologia da prosperidade e pelo dispensacionalismo, os justos muito frequentemente passavam por sérios problemas e apuros. Para além dos justos, os próprios ELEITOS, pessoas escolhidas para alguma missão especial, costumavam ter uma vida bem difícil, se soubermos atentar não só para os seus melhores momentos (a bênção), como também para seus piores momentos (a maldição). Esse é o caso do próprio povo eleito, os judeus.

“Stop Your Cruel Opression of the Jews” [Pare sua Cruel Opressão dos Judeus], Emil Flohri, 1905, na revista Judge. Diante da imagem de uma família judia fugindo dos pogroms russos (perseguição antissemita violenta), o presidente dos Estados Unidos, Theodore Roosevelt, aparecendo repreendendo o Czar Russo Nicolau II, falando “para sua cruel opressão dos judeus” e “agora que você têm paz [após a guerra russo-japonesa), por que não remove a sua carga [de opressão] e traz a paz para dentro de suas fronteiras?”. (Qual a extensão da responsabilidade do governo pelo ocorrido é algo discutido até hoje)

Então aqui vou fornecer um inventário das dificuldades sofridas pelos justos eleitos por Deus, mais especificamente no livro de Gênesis, para ilustrar meu ponto.

A eleição desses personagens do livro de Gênesis diz respeito primordialmente a serem ancestrais da humanidade ou, depois, do povo judeu, que receberia a Torá e a presença divina terrena no Santuário. Mas incluirei Abel aqui porque, mesmo tendo morrido sem deixar descendentes, se encaixa muito bem no problema sob análise (e de um ponto de vista cabalístico, existem conexões profundas entre Abel e a ancestralidade da humanidade e do povo judeu). E também colocarei José, ancestral de uma parte dos israelitas/judeus (mais especificamente, tribos de Efraim e Manassés), porque a narrativa dá mais detalhes sobre sua vida do que as de seus irmãos.

Antes de prosseguir, lembre-se que: Adão e Eva foram pais de Abel; Abraão e Sara foram pais de Isaque; Isaque e Rebeca foram pais de Jacó; Jacó e Raquel foram pais de José.

Serão analisados 12 personagens: Adão, Eva, Abel, Noé, Abraão, Sara, Isaque, Rebeca, Jacó, Léia, Raquel, José.

Na esmagadora maioria do tempo simplesmente estarei me referindo ao que está diretamente escrito na Bíblia. Apenas 3 ou 4 vezes mencionarei elaborações rabínicas tradicionais que ajudam a elucidar certos pontos, mas, mesmo se o leitor não quiser ‘comprar’ estas elaborações, ainda sobra uma evidência esmagadora para o que estou apontando mesmo usando apenas o que está mais óbvio e escancarado nos textos bíblicos.

1/2) Adão e Eva:

  • Tiveram um filho assassinado pelo próprio irmão.
  • Perderam o filho que assassinou seu irmão, exilado pelo delito cometido.

3) Abel:

  • Foi assassinado pelo próprio irmão.
  • Não teve filhos, morrendo sem deixar descendentes.

4) Noé:

  • Viveu grande parte da sua vida numa época marcada por uma quantidade absurda de violência e crueldade no cotidiano (pré-dilúvio).
  • Presenciou a morte de quase toda a humanidade e animais não-marítimos de sua época.
  • Embriagado, sofreu abuso do seu próprio filho (seja na forma de uma humilhação, seja como os sábios talmúdicos entendem, na forma de uma castração e talvez de estupro).

5) Abraão:

  • Foi perseguido por Nimrode em Ur dos Caldeus, o lugar onde vivera inicialmente (segundo a tradição oral judaica, tentando explicar porque Abraão e seu pai Terá tinham saído de Ur dos Caldeus antes do chamado divino a Abraão).
  • Logo após chegar na terra para o qual Deus pedira que ele fosse (Canaã), enfrentou um cenário de fome e escassez alimentar.
  • Tendo que descer ao Egito por causa da fome na terra em Canaã, teve medo de ser morto e ter sua esposa (Sara) sequestrada, levando ele a ocultar sua condição de casados.
  • Efetivamente sua esposa foi sequestrada a mando do Faraó.
  • Em outra ocasião, peregrinou por terras filistéias, teve medo de ser morto e ter sua esposa sequestrada, e novamente sua esposa foi raptada, a mando do tirano local (Abimeleque, de Gerar).
  • Teve que se separar de seu sobrinho Ló, por conflitos entre os pastores de Abraão e os pastores de Ló;
  • Seu sobrinho Ló foi aprisionado durante uma guerra, e Abraão teve de arriscar sua própria vida para salvá-lo (e aos demais prisioneiros das cidades envolvidas), numa operação militar arriscada;
  • Tentou salvar Sodoma e Gomorra da destruição sem sucesso, sendo que seu sobrinho morava lá, e nunca mais teve notícias de Ló após isso;
  • Ficou casado durante décadas a fio com sua esposa, sem conseguirem ter nenhum filho.
  • Teve um filho com a empregada/serva (agora concubina) por ideia de sua esposa, mas por duas vezes os conflitos com sua esposa levaram a uma separação de Abraão em relação ao seu filho Ismael: na 1ª a concubina, ainda grávida, fugiu, mas acabou retornando; na 2ª Sara libertou a serva e a expulsou da residência deles, junto com Ismael. Apenas depois da morte de Sara que Abraão pôde ficar próximo de Ismael novamente.
  • Quando finalmente teve um filho com sua própria esposa, chegou a pensar equivocadamente que teria de matá-lo por ordem divina.

6) Sara:

  • Foi raptada duas vezes.
  • Teve de ver Abraão ter filho com uma concubina.
  • Passou décadas a fio casada sem conseguir ter filhos.
  • Quando finalmente teve um filho, teve problemas com a postura do filho da concubina em face de seu filho (Ismael ‘zombava’ de Isaque).
  • Chegou a pensar que seu filho teria sido morto pelo próprio pai por ordem divina e morreu pelo ‘choque’ com isso (uma interpretação rabínica de porque a narrativa da morte de Sara ocorre logo após o incidente do quase sacrifício de Isaque)

7) Isaque:

  • Quase foi morto pelo próprio pai, por este ter interpretado equivocadamente uma aparente ordem divina;
  • Enfrentou um período de fome e escassez alimentar;
  • Chegando na Filistéia fugindo da fome, teve medo de ser morto e ter sua esposa raptada, por isso ocultou que fossem casados;
  • Teve vários de seus poços inutilizados por estrangeiros hostis (pode parecer pouca coisa, mas pense que segurança hídrica era uma questão crucial para a subsistência na época);
  • Durante sua velhice, perdeu a visão;
  • Foi enganado pelo próprio filho, Jacó;
  • Teve a insatisfação de ver Esaú se casar com mulheres caananitas que o incomodavam;
  • Passou décadas sem poder ver seu filho Jacó.

8) Rebeca:

  • Não conseguia ter filhos inicialmente com seu esposo Isaque;
  • Quando finalmente conseguiu engravidar, teve uma gravidez difícil e conturbada (em decorrência de ter concebido gêmeos);
  • Teve de presenciar o favoritismo errôneo de seu esposo para com o filho Esaú, por conta disso tramando um plano para enganar seu esposo de modo que Jacó fosse favorecido (como era de fato o melhor a ser feito);
  • Teve medo que Esaú matasse Jacó, sendo obrigada a estimular Jacó a ir para a cidade do irmão dela (tio de Jacó, Labão);
  • Passou décadas a fio sem poder ver seu filho favorito, Jacó;
  • Teve a insatisfação de ver Esaú se casar com mulheres caananitas que a incomodavam;

9) Jacó:

  • Foi induzido por sua mãe a enganar seu próprio pai;
  • Teve medo em inúmeras ocasiões de ser morto pelo seu irmão Esaú;
  • Teve de fugir de casa para não ser morto pelo irmão, sem praticamente nenhum dinheiro ou bens;
  • Passou 14 anos de sua vida trabalhando como escravo para seu tio Labão;
  • Foi enganado por seu tio Labão, em relação a com qual filha se casaria, acabando tendo de casar com as 2 filhas de Labão (Léia e Raquel), mesmo que originalmente só quisesse casar com 1 delas;
  • Durante muito tempo não conseguia ter filhos com a esposa com que de fato havia se disposto a trabalhar como escravo para poder casar, isto é, com Raquel;
  • Essa mesma esposa morreu precocemente, depois do parto de seu 2º filho com ela;
  • Lutou com um ‘misterioso ser angelical’ na volta para Canaã e acabou ficando manco para sempre;
  • Sua filha Diná foi raptada e estuprada por um príncipe caananeu, que depois ainda tentou forçar a barra para que Jacó aceitasse que esse príncipe casasse com sua filha.
  • Dois de seus filhos, Simeão e Levi, corretamente salvaram Diná e mataram o princípe caananeu que a mantinha em cativeiro, contudo, se excederam e mataram todos os homens da cidade daquele príncipe;
  • Após a morte de sua esposa Raquel, seu filho primogênito (via a esposa Léia) dormiu (i. e. teve relação sexual ou, como entende a tradição rabínica, cometeu um ato que faria levantar tal suspeita ou seria comparável, mesmo sem tê-lo efetivamente feito) com a concubina de Jacó, concubina esta que lembrava Jacó de Raquel por ser uma serva de Raquel (Raquel havia proposto que Jacó a tomasse por concubina já que Raquel àquela altura não conseguia ter filhos ela mesma);
  • Pensou que seu filho primogênito com Raquel, José, havia sido morto por um animal selvagem, quando na verdade José fora vendido como escravo por seus meio-irmãos, algo que foi ocultado de Jacó durante décadas.

10) Léia:

  • Casou com Jacó via um artifício empregado pelo seu pai, Labão, dessa forma sendo ‘vendida’ por seu pai de uma maneira que a tornava uma esposa ‘não desejada’;
  • Teve de conviver com o fato de que seu esposo amava mais sua outra esposa, que não era ninguém menos que a própria irmã de Léia;
  • Teve de fugir da casa de seu próprio pai, porque este queria impedir que Jacó e sua família retornassem à Canaã, se preciso utilizando de violência;
  • Sua filha Diná foi raptada e estuprada por um príncipe caananeu, que depois ainda tentou forçar a barra para que Jacó aceitasse que esse príncipe casasse com sua filha;
  • Dois de seus filhos, Simeão e Levi, corretamente salvaram Diná e mataram o princípe caananeu que a mantinha em cativeiro, contudo, se excederam e mataram todos os homens da cidade daquele príncipe;
  • Seus filhos participaram de uma conspiração para vender o filho da irmã dela, José, como escravo, e ocultaram que José estivesse vivo, fazendo Léia imaginar que seu sobrinho havia sido vítima de uma fatalidade envolvendo um animal selvagem;

11) Raquel:

  • Foi enganada pelo próprio pai, que não a deu em casamento para Jacó imediatamente, dando sua irmã Léia no lugar;
  • Não conseguia ficar grávida, mesmo sua irmã conseguindo ter vários filhos com facilidade;
  • Teve de fugir da casa de seu próprio pai, porque este queria impedir que Jacó e sua família retornassem à Canaã, se preciso utilizando de violência;
  • Morreu prematuramente, no parto de seu 2º filho, Benjamin;
  • Depois de já ter morrido, o filho primogênito dela, José, foi vendido como escravo pelos meio-irmãos, e chegou a ser preso no Egito por uma falsa denúncia de tentativa de estupro.

12) José:

  • Sua mãe morreu prematuramente no parto de seu irmão caçula;
  • Quase foi assassinado pelos meio-irmãos, não fosse a intervenção de um deles (Ruben, o primogênito de Léia);
  • Foi atirado num poço com cobras e escorpiões pelos meio-irmãos;
  • Foi vendido como escravo pelos meio-irmãos (sem o conhecimento de Ruben);
  • Foi escravo no Egito;
  • Teve de suportar o assédio constante da esposa de seu chefe, que queria ter relações sexuais com ele;
  • Quando a esposa de seu chefe esteve sozinha com ele, ela segurou em seu casaco tentando induzi-lo a ter relações sexuais com ela, assim obrigando José a fugir do local às pressas;
  • Foi vítima de uma falsa denúncia de tentativa de estupro por parte da esposa de seu chefe;
  • Ficou preso durante 2 anos por conta da denúncia caluniosa;
  • Passou décadas a fio sem poder ver seu irmão caçula e seus pais.

Agora diante de tudo isso, realmente dá pra afirmar que, na Bíblia Hebraica, os justos tem uma vida fácil e sortuda, sendo recompensados de forma imediata e contínua? Ao contrário, mesmo os maiores Eleitos tiveram suas vidas marcadas por uma série de complicações. As grandes vitórias pelas quais também passaram não reduzem o PESO das aflições narradas acima.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.