[173] Abraão era um refugiado?

A Estrela da Redenção
10 min readNov 30, 2021

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“[Refugiado:] toda a pessoa que, em razão de fundados temores de perseguição devido à sua raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política, encontra-se fora de seu país de origem e que, por causa dos ditos temores, não pode ou não quer fazer uso da proteção desse país ou, não tendo uma nacionalidade e estando fora do país em que residia como resultado daqueles eventos, não pode ou, em razão daqueles temores, não quer regressar ao mesmo.” (Art. 1º da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, emendada pelo Protocolo de 1967; tratado sob os auspícios da Organização das Nações Unidas — ONU)

Geralmente quando se fala da saída de Abraão do local onde morava com sua parentela, para rumar em direção ao desconhecido na terra prometida (Canaã), costuma-se enfatizar como Abraão o fez voluntariamente, tornando-se um “peregrino em terra estranha” por livre opção.

Contudo, quando olhamos mais atentamente ao texto bíblico, é possível observar que, sim, Abraão de fato foi para Canaã voluntariamente quando já estava bem assentado em outra localidade com sua parentela, mas, quando isso ocorre, ele já não mais residia em sua terra original, Ur dos caldeus, e sim em Aram (também conhecida como Harã). Algo fez com que Abraão e sua parentela saíssem de Ur para Aram.

“E viveu Terá setenta anos, e gerou a Abrão, a Naor, e a Harã.
E estas são as gerações de Terá: Terá gerou a Abrão, a Naor, e a Harã; e Harã gerou a Ló.
E morreu Harã estando seu pai Terá ainda vivo, na terra do seu nascimento, em Ur dos caldeus.
E tomaram Abrão e Naor mulheres para si: o nome da mulher de Abrão era Sarai, e o nome da mulher de Naor era Milca, filha de Harã, pai de Milca e pai de Iscá.
E Sarai foi estéril, não tinha filhos.
E tomou Terá a Abrão seu filho, e a Ló, filho de Harã, filho de seu filho, e a Sarai sua nora, mulher de seu filho Abrão, e saiu com eles de Ur dos caldeus, para ir à terra de Canaã; e vieram até [a cidade de] Aram, e habitaram ali.
E foram os dias de Terá duzentos e cinco anos, e morreu Terá em Aram.
Ora, o SENHOR disse a Abrão: Sai-te da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei.
E far-te-ei uma grande nação, e abençoar-te-ei e engrandecerei o teu nome; e tu serás uma bênção.
E abençoarei os que te abençoarem, e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; e em ti serão benditas todas as famílias da terra.
Assim partiu Abrão como o Senhor lhe tinha dito, e foi Ló com ele; e era Abrão da idade de setenta e cinco anos quando saiu de Aram.
E tomou Abrão a Sarai, sua mulher, e a Ló, filho de seu irmão, e todos os bens que haviam adquirido, e as almas que lhe acresceram em Aram; e saíram para irem à terra de Canaã; e chegaram à terra de Canaã. (Gênesis 11:26–32, 12:1–5)

O que o texto indica é que, originalmente, Abraão morava com seu pai Terá e seus irmãos Harã e Naor na cidade (ou nas redondezas da cidade) de Ur dos Caldeus. Harã morreu prematuramente. Depois disso, Terá saí de Ur dos caldeus com Abraão e Naor, tentando ir para bem longe, e acabam se assentando na cidade (ou nas redondezas da cidade) de Aram. É nessa outra cidade que Abraão recebe o chamado divino para se dirigir até Canaã e ali, a partir de sua família, gradativamente formar um novo povo.

Veja o mapa abaixo para entender melhor onde esses diferentes locais se localizam no Crescente Fértil, berço das civilizações mais antigas do mundo, uma região marcada por intensos intercâmbios culturais e fluxos populacionais:

Mapa no qual se mostra a distância entre Ur e Aram/Harã, bem como entre Ur e Canaã. O Crescente Fértil segue essa ‘Rota de Abraão’. Nimrod teria governado a Região da Suméria. (Obs: as áreas de influência de impérios do mapa acima refletem a época onde aproximadamente teria ocorrido o relatado no livro de Êxodo, o próximo livro após o de Gênesis)

Assim, fica levantada a questão: por que a família de Abraão saiu de Ur dos caldeus e foi parar em Aram? O texto não nos informa um motivo, apenas indicando que um dos irmãos de Abraão, Harã (que era o pai de Ló), morrera ali, antes da mudança de residência para Aram.

Obviamente é possível imaginar diferentes motivos para isso ter ocorrido, mas a tradição oral judaica, no Midrash, traz uma leitura bem interessante: a família de Abraão estava em fuga, tendo caído no desfavor do tirano local, Nimrod, em razão de Abraão ter rejeitado a idolatria local, patrocinada pelo governo. Portanto, sob a leitura tradicional rabínica, Abraão e sua família eram refugiados, sendo forçados a sair do seu país por um fundado temor de perseguição religiosa!

“Nimrod”, Yitzhak Danziger, 1939 (créditos da foto: Shmulik Massoth). Essa estátua de Nimrod, feita por um judeu de nascença na Palestina sob o Mandato Britânico (atualmente, Estado de Israel), foi um gesto extremamente iconoclástico. Tornou-se símbolo do ‘Caananismo’ dos ‘Jovens Hebreus’, proto-israelenses que defendiam que o Estado a ser fundado na região deveria se pautar em uma identidade pan-hebréia anterior à judaica. A rejeição da identidade judaica permitiria uma unificação com os árabes da região, pelo resgate dessa identidade comum como hebreus. Os intelectuais e artistas desse movimento propunham que uma antiga civilização falante de hebraico teria incluído conjuntamente os israelitas e os caananitas da narrativa bíblica, antes do surgimento do judaísmo.

Nimrod é mencionado no texto bíblico antes de Abraão, e também sobre ele poucos detalhes são fornecidos textualmente. Mas os detalhes nos informam algo no mínimo interessante:

“E os filhos de Cam são: Cuxe, Mizraim, Pute e Canaã.
E os filhos de Cuxe são: Sebá, Havilá, Sabtá, Raamá e Sabtecá; e os filhos de Raamá: Sebá e Dedã.
E Cuxe gerou a Ninrode; este começou a ser poderoso na terra.
E este foi poderoso caçador diante da face do Senhor; por isso se diz: Como Ninrode, poderoso caçador diante do Senhor.
E o princípio do seu reino foi Babel, Ereque, Acade e Calné, na terra de Sinar.” (
Gênesis 10:6–12)

Como falei nos posts [122]-[126], Gênesis 10 tentará explicar como os povos circundando a terra prometida se aparentavam uns com os outros. Por exemplo, Egito, Cush (Etiópia) e Canaã eram originalmente 3 filhos de Cam (um dos filhos de Noé), o que significa que a nação do Egito e as nações caananitas eram vistas como irmãs. Cush estava ligada à origem tanto dos etíopes (ao sul do Egito, no extremo oeste do Crescente Fértil) como dos sumérios (no outro extremo do Crescente Fértil, o extremo leste). Assim, nessa visão, os povos-filhos de Cam teriam se instalado nos extremos do Crescente Fértil e também no seu centro (onde estava Canaã), tendo tais grupos a mais alta proeminência de partida.

A cidade de Babilônia (Babel) teria sido construída por Nimrod, que era neto de Cam por parte de Cush. Além de Babilônia/Babel, o Reino de Nimrod incluíra outras cidades, na terra de Sinar, que é a Suméria.

Agora, note a significância disso: esse é o primeiro Reino mencionado nas Escrituras, e já era um Reino logo no seu início composto por um número relevante de cidades. Uma dessas cidades é discutida em detalhes logo mais pelo texto bíblico, a cidade de Babilônia/Babel, lugar onde foi construída a famosa Torre de Babel.

Ligando os pontos, faz sentido pensar que por trás de uma edificação complexa como a Torre de Babel pretendia ser, haveria algum tipo de coordenação centralizada envolvida. Em sendo este o caso, o Reinado de Nimrod já é sutilmente criticado por essa obra, na qual se tentava afrontar os Céus pela exaltação do poder humano. Isso já indica um rompimento com a dependência em relação ao Criador, que prometera a Noé e a seus filhos que nunca mais mandaria um dilúvio; e tal rompimento já seria um passo dado na direção da idolatria.

Já a questão de ver Nimrod como um tirano parte de 2 pontos:

  1. o texto fala de Nimrod como um grande caçador, e no livro de Gênesis os caçadores profissionais são associados com a agressividade, inclusive agressividade armada, como no caso de Esaú posteriormente (algo que faz sentido sociologicamente, haja vista que alguém que treina para usar armas com animais pode vir a usá-las contra humanos);
  2. como já falei no post [113], muito do que vemos na Bíblia Hebraica pode ser melhor entendido num contexto de resistência israelita/judaica contra opressão sociopolítica, de cunho hierárquico e/ou imperial, no entorno do Antigo Israel, e, por conta disso, o texto da Torá tende a abordar negativamente o contato de seus personagens com os vários reinados e cidades da época (p. ex. a descida dos patriarcas ao reino do Egito ou ao reino de Abimeleque, ou a cidade de Siquém, ou as cidades de Sodoma e Gomorra, em todos esses casos coisas ruins acontecem).

Então, me parece bem fundado nos elementos do próprio texto que a figura de Nimrod seja entendida como o primeiro rei e tirano pós-dilúvio, que se desviou da (ou ignorou a) aliança feita entre Deus e Noé, e cujo reino começou pela mais antiga cidade conhecida: a Babilônia/Babel. O reino de Nimrod era localizado na antiga Suméria, na qual Abraão e sua parentela estavam originalmente, pois Ur dos caldeus fica na Suméria e ‘caldeus’ remete aos babilônios. (Historicamente falando, a Suméria e em seguida o Egito foram as civilizações mais antigas)

A partir daí a imaginação aggádica do Midrash judaico vai correr soltar, imaginando de forma muito vívida o que teria acontecido entre Abraão e Nimrod.

A ideia é que a família de Abraão, tal como os demais residentes da região, eram praticantes de idolatria, e tinham ídolos em suas casas, aos quais prestavam culto como deuses. Mas Abraão começou a se questionar sobre o valor de tais ídolos, feitos de coisas criadas, e começou a defender que o culto devia ser prestado unicamente ao Criador, cuja existência não era negada por seus contemporâneos, mas que era visto como apenas um distante ser supremo. Então, Abraão passou a adotar apenas a Fonte Única de tudo, recusando-se a prestar culto aos ídolos mantidos por seu avô Nachor e seu pai Terá, e em uma ocasião chegou a quebrar os ídolos da residência familiar.

O rei Nimrod foi informado de que Abraão havia se rebelado contra os deuses, sendo que o próprio Nimrod exigia ser visto como um deus (uma prática bem conhecida por parte de reis e imperadores antigos). Após ser levado a julgamento, Abraão tentou argumentar que fora um dos ídolos que havia quebrado os demais (Abraão havia deixado o ídolo maior intacto). Quando Nimrod respondeu que ele sabia que os deuses não podiam quebrar uns aos outros e que não acreditaria naquela história, Abraão aproveitou para afirmar seu ponto: como seria possível servir a tais deuses, que nada podem fazer, ao invés de servir ao Criador que tudo fez? E na mesma medida repreendeu o rei Nimrod por patrocinar a idolatria.

Por conta disso, Nimrod jogou Abraão na prisão por 10 anos.

Após essa década preso, Abraão foi trazido novamente diante de Nimrod, que exigia que Abraão aceitasse se curvar aos ídolos e reconhecesse que o próprio Nimrod era um deus. Mas Abraão continuava resoluto, recusando a idolatria seja das estátuas de deuses seja do próprio rei.

Em razão da persistência de Abraão em não aceitar o rei e seus deuses, ele foi condenado à morte numa fornalha, na cidade de Casdim.

Abraão foi jogado na fornalha a mando do rei Nimrod, numa execução pública diante de uma multidão, mas Abraão saiu ileso, pois Deus interveio em seu favor!

Ilustração encontrada no Leipzig Mahzor (uma edição medieval do ‘livro de rezas relativo às Grandes Festas’, quais sejam, Rosh Hashaná e Yom Kipur; esse tipo de livro é chamado de Mahzor), ~1300, representando o julgamento de Abraão pelo rei Nimrod, em razão do qual Abraão, recusando-se a servir aos ídolos, foi jogado em uma fornalha ardente a mando de Nimrod, mas foi salvo da morte pelas mãos dos Céus.

Aqui a tradição emprega um jogo de palavras, a respeito de um verso bíblico, onde Deus fala para Abraão:

“Eu sou o Senhor, que te tirei de Ur dos caldeus, para dar-te a ti esta terra, para herdá-la.” (Gênesis 15:7)

A palavra “Ur” no hebraico pode significar “fogo”. Então, o texto acima poderia ser lido como uma alusão à salvação de Abraão da fornalha de Nimrod:

“Eu sou o Senhor, que te tirei do Fogo dos caldeus, para dar-te a ti esta terra, para herdá-la.” (Gênesis 15:7)

O irmão de Abraão, Harã, que até então estava em dúvida entre servir ao Criador como Abraão pregava ou servir ao rei Nimrod e seus ídolos, ficou decidido pela primeira opção diante do milagre presenciado e proclamou isso abertamente ali no local. Os guardas do rei Nimrod, então, o jogaram nas chamas, mas, ao contrário de Abraão, Harã acabou morrendo. (Isso alude a um princípio da Lei Judaica segundo a qual um ser humano não pode se fiar na ocorrência de um milagre)

Quem conhece um pouco de Bíblia Hebraica, já deve ter percebido que esse conto a respeito de Abraão tem evidentes semelhanças com a história do capítulo 3 do livro de Daniel, onde 3 jovens judeus exilados para a Babilônia recusam-se a se ajoelhar diante da Estátua do Rei Nabucodonosor, foram jogados em uma fornalha em razão disso, mas saíram ilesos milagrosamente. Então, Nimrod seria como Nabucodonosor, um elo entre os reis babilônios e sua sanha assassina em relação a todos que não se curvassem à adoração da realeza como sendo composta de seres divinos.

Finalizando esse épico imaginativo, justamente por restar claro que não se podia contar sempre com um milagre, Terá (que à essa altura também tinha se convencido do ponto de Abraão dado o salvamento improvável ocorrido) decidiu que o melhor a fazer era sair daquela região, pois era possível que Nimrod novamente tentasse matar Abraão. Por isso a ideia de fugir até Canaã, que ficava muito longe da área de influência e poder de Nimrod. Mas quando de fato fugiram, se assentaram em Aram, pois viram que ali não havia mais risco de serem perseguidos por Nimrod.

Então, dentro dessa tradição judaica oral a respeito dos antecedentes de Abraão em face do seu lugar de origem, empregando imaginativamente os elementos literários à disposição no texto bíblico (e o fio da meada sociológico subjacente ali), podemos afirmar que Abraão e sua família, incluindo sua esposa Sara, seu pai Terá e seu sobrinho Ló, teriam sido refugiados.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

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