[174] A mulher que SALVOU a linhagem de Davi da EXTINÇÃO
No antigo Reino de Judá, ao longo de 4 séculos (de aproximadamente 1.000 AEC a 587 AEC), a linhagem de Davi governou na capital Jerusalém (Sião), patrocinando os rituais oferecidos a YHWH o Deus de Israel pelos cohanim/sacerdotes e levitas no Templo construído por Salomão (o 2º rei da dinastia, filho direto de Davi).
É por conta dessa dinastia e desse templo terem existido no antigo Judá que surgiu a Bíblia e o judaísmo tal como os conhecemos, pois uma grande parte da Bíblia Hebraica se ampara em uma Aliança feita entre Davi e YHWH o Deus nacional israelita*, pela qual a dinastia de Davi duraria para sempre com direito ao trono israelita em Jerusalém, e essa seria também a cidade escolhida para que o próprio YHWH morasse dentro de um Santuário/Templo fixado nela para sempre. Assim, se tudo corresse bem, o Rei judeu da linhagem de Davi governaria em Jerusalém ao lado do próprio Deus, cuja presença santíssima repousava no Templo.
Uma coisa que pouca gente sabe, entretanto, é que a linhagem de Davi quase foi extinta naquela época mesmo! Foi por muito pouco que isso não aconteceu — e a responsável por impedir a extinção da linhagem de Davi foi uma mulher.
Se não fosse por esta mulher, a princesa Ieoseba (Jeoseba), não haveria judaísmo hoje no sentido que o conhecemos — e nem cristianismo, islamismo, sikhismo, rastafaris etc.
Se não fosse por Jeoseba, a esperança messiânica nunca teria se tornado tão preponderante na civilização israelita, uma vez que foi a persistência dessa linhagem contra todas as probabilidades que alimentou o crescente imaginário messiânico, como explicado nos posts [149]-[150]-[151]-[152]-[153]-[154]-[155]-[156]-[157]-[158].
De fato, o gesto nobre dessa judia — que examinaremos a seguir — não somente salvou a dinastia de um antigo reino da Idade do Ferro, mas também simplesmente mudou a face da história humana para sempre.
Note também que essa história dos 2 reinos israelitas, o de Israel/Efraim ao Norte e o de Judá ao Sul, é um dos estratos da narrativa bíblica mais bem atestado em termos historiográficos e arqueológicos, especialmente no que concerne aos dados fornecidos pelo livro dos [1–2]Reis, que foi escrito durante o período final do Reino de Judá e após seu final com o exílio babilônico pela Escola Deuteronomista de Escribas Reais, utilizando as próprias Crônicas Oficiais dos Reis de Judá e dos Reis de Israel. Ou seja, sua redação teve a vantagem de empregar fontes escritas primárias concomitantes aos eventos relatados.
É por isso que podemos com um alto grau de confiança aceitar que Jeoseba de fato existiu — e de fato mudou a história humana!
No que segue, vou me basear primariamente no livro dos [1–2]Reis, pela razão já mencionada acima. Mais para o final, também falarei o que o livro de [1–2]Crônicas acrescenta a respeito dela. Contudo, é importante salientar que o livro de [1–2]Crônicas foi escrito apenas após o exílio, inclusive utilizando o livro de [1–2]Reis como base. Por conta disso, o material extra de [1–2]Crônicas pode ter vindo de outras fontes aos quais o Cronista teve acesso, mas também por vezes pode vir de inferências e de lendas populares já construídas em torno do material de [1–2]Reis (o Cronista tende a dar um relato mais fechadinho do que o Deuteronomista dava, o que aumenta a suspeita). Portanto, historiograficamente falando, [1–2]Reis é mais convincente que [1–2]Crônicas.
Sem mais delongas, vamos ver o que Jeoseba fez, por volta do longínquo ano de 841 AEC (há 2.862 anos atrás).
Tudo começa no maior dos Reinos-irmãos, o de Israel ao Norte, onde a dinastia de Davi não governava. Durante décadas, esse Reino israelita vivera sob uma grande influência fenícia, porque o Rei de Israel à época (Ahab) havia se casado com uma princesa fenícia, de nome Jezabel. Em razão dessa aliança com o Império Fenício (vizinho a Israel) via esse arranjo matrimonial, o culto a YHWH (israelita) tinha em grande parte sido substituído pelo culto a Baal (fenício), com a maioria dos profetas de YHWH tendo sido assassinados a sangue frio, e a opressão social havia se intensificado com o desrespeito ao tradicional código legal mosaico.
No interesse de estreitar laços com seus irmãos do norte, o Reino de Judá ao Sul decidira também se unir à Casa Real do Norte por meio de matrimônio, como fizeram os fenícios. Então, o príncipe herdeiro Jorão, da dinastia de Davi, se casou com a princesa Atalia, filha de Ahab e Jezabel. Esse seria um erro de cálculo pelo qual a dinastia de Davi pagaria um preço altíssimo…
Após a morte do rei Jorão de Judá, seu filho Acazias assumiu o trono, estando ainda viva a Rainha-Mãe, Atalia (que era filha de Jezabel). O rei Acazias governou por pouco tempo, afetado pela turbulência política que estava ocorrendo no Reino de Israel ao Norte.
O motivo era uma revolta popular sob a liderança de Jeú, buscando o fim da influência fenícia sob a então Rainha-Mãe Jezabel. O rebelde aspirante ao trono Jeú exterminou toda a dinastia real do Reino do Norte (no caso, todos os descendentes do sexo masculino da dinastia que estava governando aquele reino no momento, a dinastia Omri — o Reino do Norte teve várias dinastias diferentes) e restabeleceu o culto tradicional israelita a YHWH no lugar do culto fenício a Baal.
No meio dessa rebelião, o Rei Acazias de Judá (neto de Jezabel) havia ido ao encontro do Rei Jeorão de Israel, e ambos foram encontrar Jéu. Mas aqui Acazias acabou morto, atingido por flechada de Jéu, que momentos antes já havia acertado uma flecha no Rei Jeorão, cujo corpo caiu sem vida no próprio local onde décadas antes um humilde israelita havia sido morto injustamente a mando da Rainha Jezabel para que sua propriedade fosse tomada para o Fisco Real.
“E saiu Jorão, rei de Israel, e Acazias, rei de Judá, cada um em seu carro, e saíram ao encontro de Jeú, e o acharam no pedaço de campo de Nabote, o jizreelita.
E sucedeu que, vendo Jorão a Jeú, disse: Há paz, Jeú? E disse ele: Que paz, enquanto as prostituições da tua mãe Jezabel e as suas feitiçarias são tantas?
Então Jorão voltou as mãos e fugiu; e disse a Acazias: Traição há, Acazias.
Mas Jeú entesou o seu arco com toda a força, e feriu a Jorão entre os braços, e a flecha lhe saiu pelo coração; e ele caiu no seu carro.
Então Jeú disse a Bidcar, seu capitão: Toma-o, lança-o no pedaço do campo de Nabote, o jizreelita; porque, lembra-te de que, indo eu e tu juntos a cavalo após seu pai, Acabe, o Senhor pôs sobre ele esta sentença, dizendo:
Por certo vi ontem, à tarde, o sangue de Nabote e o sangue de seus filhos, diz o Senhor; e neste mesmo campo te retribuirei, diz o Senhor. Agora, pois, toma-o e lança-o neste campo, conforme a palavra do Senhor.
O que vendo Acazias, rei de Judá, fugiu pelo caminho da casa do jardim; porém Jeú o perseguiu dizendo: Feri também a este; e o feriram no carro à subida de Gur, que está junto a Ibleão. E fugiu a Megido, e morreu ali.
E seus servos o levaram num carro a Jerusalém, e o sepultaram na sua sepultura junto a seus pais, na cidade de Davi.” (2 Reis 9:21–28)
Logo depois disso, a Rainha-Mãe do Reino de Israel ao Norte, Jezabel, também é morta:
“Depois Jeú veio a Jizreel, o que ouvindo Jezabel, pintou-se em volta dos olhos, enfeitou a sua cabeça, e olhou pela janela.
E, entrando Jeú pelas portas, disse ela: Teve paz Zinri, que matou a seu senhor?
E levantou ele o rosto para a janela e disse: Quem é comigo? quem? E dois ou três eunucos olharam para ele.
Então disse ele: Lançai-a daí abaixo. E lançaram-na abaixo; e foram salpicados com o seu sangue a parede e os cavalos, e Jeú a atropelou.
Entrando ele e havendo comido e bebido, disse: Olhai por aquela maldita, e sepultai-a, porque é filha de rei.
E foram para a sepultar; porém não acharam dela senão somente a caveira, os pés e as palmas das mãos.
Então voltaram, e lho fizeram saber; e ele disse: Esta é a palavra do Senhor, a qual falou pelo ministério de Elias, o tisbita, seu servo, dizendo: No pedaço do campo de Jizreel os cães comerão a carne de Jezabel.
E o cadáver de Jezabel será como esterco sobre o campo, na herdade de Jizreel; de modo que não se possa dizer: Esta é Jezabel.” (2 Reis 9:30–37)
Agora paremos um pouco para refletir. No Reino de Israel ao Norte, uma verdadeira revolução havia ocorrido, com a destruição da dinastia real ali vigente e a morte da Rainha-Mãe Jezabel, uma fenícia. Agora, no Reino de Judá ao Sul, o trono acabar de ficar vago, mas a filha de Jezabel, Atalia, continuava a ocupar o posto de Rainha-Mãe em Judá.
Para garantir seu poder, a Rainha-Mãe Atalia então mandou exterminar a dinastia de Davi, mandando matar todos os descendentes do sexo masculino do rei Davi! O que incluía, diga-se de passagem, descendentes da própria Atalia (pelo menos alguns netos dela, que poderiam suceder ao Trono Real).
“Vendo, pois, Atalia, mãe de Acazias, que seu filho era morto, levantou-se, e destruiu toda a descendência real.” (2 Reis 11:1)
É difícil ter certeza absoluta sobre o que a motivou a agir assim. Mas ao que parece isso foi um golpe de Estado promovido por uma Rainha que se considerava talvez mais fenícia (como sua mãe) e mais israelita do norte (como seu pai) do que uma israelita do sul, sem sentir nenhuma fidelidade especial à dinastia de Davi. Então, como sobrevivente da antiga Dinastia do Norte (que, como falei, teve todos os seus descendentes do sexo masculino mortos) e culturalmente fenícia, Atalia deu um golpe de Estado em Jerusalém, na expectativa de construir uma nova dinastia totalmente dissociada da tradicionalíssima dinastia davídica — mesmo que isso custasse tantas vidas inocentes, incluindo vidas de alguns descendentes dela mesma.
É aqui que a princesa Jeoseba entra na história, salvando um dos filhos de Acazias (com sua esposa Zíbia), o bebê Joás (descendente de Davi, sobrinho de Jeoseba, neto da própria Atalia e bisneto de Jezabel), escondendo-o no Templo, mesmo que ao fazê-lo Jeoseba estivesse arriscando a própria vida, por estar traindo uma ordem da Rainha:
“Mas Jeoseba, filha do rei Jorão, irmã de Acazias, tomou a Joás, filho de Acazias, furtando-o dentre os filhos do rei, aos quais matavam, e o pôs, a ele e à sua ama na recâmara, e o escondeu de Atalia, e assim não o mataram.
E esteve com ela escondido na casa do Senhor seis anos; e Atalia reinava sobre o país.” (2 Reis 11:2,3)
O nome Jeoseba é etimologicamente oriundo do Sagrado Nome Divino, YHWH. No caso, YHWH em hebraico é יהוה, e Jeoseba (rigorosamente, Ioseba) em hebraico é יְהוֹשֶׁ֣בַע. Assim, temos que o nome de Deus é YHWH e o nome dessa princesa era YHWSVA. Seu nome significa “YHWH jurou”. Isso demonstra que Jeoseba era uma judia seguidora da aliança tradicional com YHWH que vinculava os israelitas à Torá.
Além disso, percebemos que Jeoseba escondeu o bebê Joás com sua ama, isto é, a babá do príncipe (que provavelmente o amamentava). Então, a anônima babá também foi crucial para essa missão de salvamento da dinastia de Davi — pelo salvamento de uma criança indefesa.
O nome desse príncipe também é etimologicamente oriundo do Sagrado Nome Divino. Ele é chamado de duas formas, de Ioás/YWAS (יוֹאָשׁ)e de Ieoás/YHWAS (יְהוֹאָשׁ). Seu nome significa “YHWH deu”, representando como a preservação desse menino fora um presente divino, simbolizando também a esperança de que a dinastia de Davi fosse preservada por meio dele.
No sétimo ano após o ato heróico de Jeoseba, o sumo-sacerdote Joiada decide que é a hora de apresentar ao povo o herdeiro legítimo do trono real. Até então, ninguém fora de um círculo muito restrito sabia que alguém da dinastia de Davi havia sobrevivido. Foi um período no qual o povo talvez chegasse a pensar que a aliança entre Deus e Davi havia sido uma farsa, ou que fora revogada — o que seria impossível, pois YHWH havia jurado e Ele nunca quebra seus juramentos!
Então, aqui, vemos mais um motivo para a salvadora Jeoseba portar esse nome: “YHWH jurou”, então era impossível que a dinastia de Davi fosse exterminada. Por meio de Jeoseba, YHWH agiu para salvar a dinastia. YHWH dependeu de Jeoseba para cumprir seu juramento perpétuo em favor de Davi e seus descendentes. A princesa Jeoseba era o juramento divino encarnado!
Então, nessa história de Jeoseba, vemos como Deus, na Bíblia Hebraica, muitas vezes depende dos seres humanos para agir, especialmente de seres humanos fiéis à Aliança. A ideia de poder ilimitado ou onipotência é estranha à maneira hebraica de enxergar a ação divina (veja o post [108]; cf. também “Torah Min HaShamayim” do existencialista judaico R. Heschel e “Is God ‘Perfect Being’?” do especialista em Filosofia da Bíblia Hebraica Yoram Hazony).
O sumo-sacerdote Joiada então consegue reverter o golpe de Estado, restabelecendo a dinastia davídica em Jerusalém:
“E no sétimo ano enviou Joiada, e tomou os centuriões, com os capitães, e com os da guarda, e os colocou consigo na casa do Senhor; e fez com eles uma aliança e ajuramentou-os na casa do Senhor; e mostrou-lhes o filho do rei.
E deu-lhes ordem, dizendo: Isto é o que haveis de fazer: Uma terça parte de vós, que entrais no sábado, fará a guarda da casa do rei.
E outra terça parte estará à porta de Sur; e a outra terça parte à porta detrás dos da guarda; assim fareis a guarda desta casa, afastando a todos.
E as duas partes de vós, a saber, todos os que saem no sábado, farão a guarda da casa do Senhor junto ao rei.
E rodeareis o rei, cada um com as suas armas na mão, e aquele que entrar entre as fileiras o matarão; e vós estareis com o rei quando sair e quando entrar.
Fizeram, pois, os centuriões conforme tudo quanto ordenara o sacerdote Joiada, tomando cada um os seus homens, tanto os que entravam no sábado como os que saíam no sábado; e foram ao sacerdote Joiada.
E o sacerdote deu aos centuriões as lanças e os escudos que haviam sido do rei Davi, que estavam na casa do Senhor.
E os da guarda se puseram, cada um com as armas na mão, desde o lado direito da casa até ao lado esquerdo da casa, do lado do altar, e do lado da casa, em redor do rei.
Então Joiada fez sair o filho do rei, e lhe pôs a coroa, e lhe deu o testemunho; e o fizeram rei, e o ungiram, e bateram as palmas, e disseram: Viva o rei!
E Atalia, ouvindo a voz dos da guarda e do povo, foi ter com o povo, na casa do Senhor.
E olhou, e eis que o rei estava junto à coluna, conforme o costume, e os príncipes e os trombeteiros junto ao rei, e todo o povo da terra estava alegre e tocava as trombetas; então Atalia rasgou as suas vestes, e clamou: Traição! Traição!
Porém o sacerdote Joiada deu ordem aos centuriões que comandavam as tropas, dizendo-lhes: Tirai-a para fora das fileiras, e a quem a seguir matai-o à espada. Porque o sacerdote disse: Não a matem na casa do Senhor.
E lançaram mão dela; e ela foi, pelo caminho da entrada dos cavalos, à casa do rei, e ali a mataram.” (2 Reis 11:4–16)
Por conta desses 6 anos de governo da rainha Atalia, o culto a Baal havia sido institucionalizado em Judá, portanto, ganhando uma sobrevida em relação ao que havia acontecido no Reino de Israel ao Norte, onde, por conta de Jéu, o culto a Baal havia sido encerrado. Basicamente o projeto de Jezabel havia sobrevivido, no Reino de Judá, por meio de sua filha Atalia.
Então, o restabelecimento da dinastia davídica sob o Rei Joás, promovido pelo Sumo-Sacerdote de YHWH, Joiada, levou ao restabelecimento da aliança com YHWH em rejeição ao culto de Baal:
“E Joiada fez uma aliança entre o Senhor e o rei e o povo, para que fosse o povo do Senhor; como também entre o rei e o povo.
Então todo o povo da terra entrou na casa de Baal, e a derrubaram, como também os seus altares, e as suas imagens, totalmente quebraram, e a Matã, sacerdote de Baal, mataram diante dos altares; então o sacerdote pôs oficiais sobre a casa do Senhor.
E tomou os centuriões, e os capitães, e os da guarda, e todo o povo da terra; e conduziram da casa do Senhor, o rei, e foram, pelo caminho da porta dos da guarda, à casa do rei, e ele se assentou no trono dos reis.
E todo o povo da terra se alegrou, e a cidade repousou, depois que mataram a Atalia, à espada, junto à casa do rei,
Era Joás da idade de sete anos quando o fizeram rei.” (2 Reis 11:17–21)
Por conta de toda essa história tão ligada ao Templo, o Rei Joás coordenou mais tarde a Reforma do Templo, fazendo reparos na Casa de YHWH, que o salvara da morte e salvara a dinastia davídica da extinção — por meio da princesa Jeoseba.
“E disse Joás aos sacerdotes: Todo o dinheiro das coisas santas que se trouxer à casa do Senhor, a saber, o dinheiro daquele que passa o arrolamento, o dinheiro de cada uma das pessoas, segundo a sua avaliação, e todo o dinheiro que trouxer cada um voluntariamente para a casa do Senhor,
Os sacerdotes o recebam, cada um dos seus conhecidos; e eles mesmos reparem as fendas da casa, toda a fenda que se achar nela.
Sucedeu, porém, que, no ano vinte e três do rei Joás, os sacerdotes ainda não tinham reparado as fendas da casa.
Então o rei Joás chamou o sacerdote Joiada e os mais sacerdotes, e lhes disse: Por que não reparais as fendas da casa? Agora, pois, não tomeis mais dinheiro de vossos conhecidos, mas entregai-o para o reparo das fendas da casa.
E consentiram os sacerdotes em não tomarem mais dinheiro do povo, e em não repararem as fendas da casa.
Porém o sacerdote Joiada tomou um cofre e fez um buraco na tampa; e a pôs ao pé do altar, à mão direita dos que entravam na casa do Senhor; e os sacerdotes que guardavam a entrada da porta punham ali todo o dinheiro que se trazia à casa do Senhor.
Sucedeu que, vendo eles que já havia muito dinheiro no cofre, o escrivão do rei subia com o sumo sacerdote, e contavam e ensacavam o dinheiro que se achava na casa do Senhor.
E o dinheiro, depois de pesado, davam nas mãos dos que faziam a obra, que tinham a seu cargo a casa do Senhor e eles o distribuíam aos carpinteiros e aos edificadores que reparavam a casa do Senhor.
Como também aos pedreiros e aos cabouqueiros; e para se comprar madeira e pedras de cantaria para repararem as fendas da casa do Senhor, e para tudo quanto era necessário para reparar a casa.
Todavia, do dinheiro que se trazia à casa do Senhor não se faziam nem taças de prata, nem garfos, nem bacias, nem trombetas, nem vaso algum de ouro ou vaso de prata para a casa do Senhor.
Porque o davam aos que faziam a obra, e reparavam com ele a casa do Senhor.” (2 Reis 12:4–14)
Curiosamente, entretanto, mais pro fim de sua vida, o Rei Joás se viu em apuros, porque o poderoso Rei da Síria estava a postos para tomar Jerusalém. Então, o rei Joás acaba entregando tesouros do Templo para apaziguar o rei sírio.
“Então subiu Hazael, rei da Síria, e pelejou contra Gate, e a tomou; depois Hazael resolveu marchar contra Jerusalém.
Porém Joás, rei de Judá, tomou todas as coisas santas que Jeosafá, Jorão e Acazias, seus pais, reis de Judá, consagraram, como também todo o ouro que se achou nos tesouros da casa do Senhor e na casa do rei e o mandou a Hazael, rei da Síria; e então se desviou de Jerusalém.” (2 Reis 12:17,18)
No 40º ano de seu reinado, Joás foi morto numa conspiração política, mas a dinastia de Davi persistiu, sendo Joás sucedido por seu filho Amazias.
Uma coisa curiosa que me chama atenção aqui é que essa história toda implica que a linhagem de Davi a partir de Joás sempre terá Jezabel e Atalia em sua ancestralidade sanguínea!
Agora, uma dúvida que pode ter restado é qual seria a relação entre a princesa Jeoseba e o sumo-sacerdote Joiada, uma vez que a princesa Jeoseba escolheu justamente o Templo para ocultar o príncipe Joás. O livro dos Reis nada aborda sobre isso, mas o livro das Crônicas entra nesse assunto, afirmando que Jeoseba seria esposa de Joiada.
“Vendo, pois, Atalia, mãe de Acazias, que seu filho era morto, levantou-se e destruiu toda a descendência real da casa de Judá.
Porém Jeosabeate, filha do rei, tomou a Joás, filho de Acazias, furtando-o dentre os filhos do rei, aos quais matavam, e o pôs com a sua ama na câmara dos leitos; assim Jeosabeate, filha do rei Jeorão, mulher do sacerdote Joiada (porque era irmã de Acazias), o escondeu de Atalia, de modo que ela não o matou.” (2 Crônicas 22:10,11)
Note que o texto de Crônicas repete quase que igualmente o texto de Reis, mas acrescenta essa linha de que Jeoseba seria esposa do sacerdote Joiada. Não é possível saber se isso é um fato histórico atestado por outra fonte utilizada pelo Cronista, ou se isso foi uma inferência do próprio Cronista, tentando entender como Jeoseba tinha um acesso tão direto ao Templo sem ser de uma família sacerdotal ou levita, mas sim da família real judaíta. (Uma explicação alternativa bem direta seria simplesmente que o Templo era o refúgio mais seguro para um descendente de Davi justamente por conta da associação tradicional entre a dinastia davídica prevalente no Reino e o sacerdócio aarônico prevalente no Templo, ambas as linhagens tendo um forte respeito mútuo e apego às suas prerrogativas particulares)
Outro acréscimo que o Cronista introduz nessa história é uma tentativa de explicar o trágico destino de Joás, inclusive o ataque sírio, mesmo que o rei Joás tivesse sido um justo segundo o livro dos Reis. Em Reis já haveria uma pista: ali se afirma que Joás fora justo enquanto Joiada estava vivo. Então, a explicação fornecida pelo Cronista é que Joás, após a morte de Joiada, teria mandado matar o filho deste, Zacarias, porque Zacarias havia profetizado contra o fato de que o rei Joás havia permitido que o povo se desviasse do culto exclusivo a YHWH (após a morte do sumo-sacerdote Joiada).
Esse é mais um exemplo do que falei a respeito de como Crônicas tenta dar uma história suspeitamente mais fechadinha que a de Reis: enquanto Reis assume que mesmo um rei justo poderia enfrentar problemas na condução do reino (enquanto não tenha sido um rei perfeitamente justo, por ter se desviado do reto caminho mais pro fim de sua vida), Crônicas tenta tornar os problemas perfeitamente alinhados ao desvio comportamental.
Contudo, é possível que de fato Crônicas tenha razão em considerar que o desvio de Joás tenha sido tão grave ao ponto de mandar matar um profeta de YHWH, que fosse filho do Sumo-Sacerdote que tanto bem fizera para o Rei.
Se de fato esse severo desvio de Joás aconteceu, ilustra como um início promissor não garante um fim brilhante — e ainda assim em nada ofusca o brilho das ações de Jeoseba, a justa que salvou a dinastia de Davi, assim possibilitando a libertação do povo de Judá em relação a uma potencial nova dinastia fenícia no Sul tão opressiva quanto fora a de Jezabel no Norte.
*Uma das exceções a esse padrão — uma exceção notável — diz respeito à própria Torá! Os samaritanos, que aceitam somente a Torá e não os demais livros, disputam a reivindicação de Davi e de Sião a uma Aliança especial, entendendo que o Templo legítimo na verdade ficava no Reino de Israel no Norte, não no Reino de Judá no Sul, assim revertendo o argumento do “pecado de Jeroboão” feito no livro dos Reis.
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