[175] Lei sobre agarrar testículo alheio numa briga? (Deuteronômio)

A Estrela da Redenção
6 min readDec 2, 2021

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Uma curiosa regra encontrada no livro de Deuteronômio intriga muitas pessoas a respeito de seu significado e contexto:

“Quando pelejarem dois homens, um contra o outro, e a mulher de um chegar para livrar a seu marido da mão do que o fere, e ela estender a sua mão, e lhe pegar pelas suas vergonhas, então cortar-lhe-ás a mão; não a poupará o teu olho.” (Deuteronômio 25:11,12)

Algumas pessoas inadvertidamente olham para isso e acham que se trata de uma exigência para cortar a mão da mulher como punição por tal ato, mas NÃO É ISSO!

“Study Sheet with Seven Hands” [Folha de Estudo com Sete Mãos], Vincent Van Gogh, 1885.

Você NÃO pode pegar trechos aleatórios da Torá (sobre o ‘olho por olho’, sobre pena de morte, etc.) e achar que entendeu sem verificar como os precedentes milenares decididos pelos tribunais rabínicos examinaram a questão. Seria similar a você pegar artigos randomicamente do Código Civil e achar que entendeu tudo, sem buscar saber o que os tribunais tem decidido a respeito ou como a doutrina tem abordado a questão.

Como já explicado no post [52], a Torá NÃO é uma legislação caída do céu que o divino decidiu tudo de antemão, mas SIM a fonte da jurisprudência que precisa ser desenvolvida pelo RACIOCÍNIO HUMANO. Os humanos podem e devem aperfeiçoá-la. É por isso que o Talmude basicamente contém MILHARES de sábios (em um intervalo de tempo que vai do 2º século antes da Era Comum — antes mesmo do nascimento de Jesus — até o 6º século da nossa era) debatendo entre si qual seria a decisão aplicável a cada caso para estabelecer as Halachot pertinentes.

No caso em apreço, existem dois ângulos possíveis para entender o trecho: 1) como referente a uma punição/sanção por ter agarrado o testículo alheio na briga; 2) como referente aos meios legítimos de defesa contra alguém que agarre o testículo alheio numa briga.

A primeira posição, entendendo como uma punição pelo ato, foi tratada na jurisprudência judaica (Halacha) há milênios como dizendo respeito a uma indenização pelo ato cometido, por conta da humilhação gerada (veja Rashi para Deuteronômio 25:12; Talmude, Bava Batra 27a e 28a).

Isso não é de se surpreender por quem acompanha o blog. No post [4] eu abordei a respeito da regra do “olho por olho”, entendida HÁ MILÊNIOS como uma exigência de indenização pela agressão física cometida. Repito: esse não é um entendimento moderno ou ‘apologético’, é simplesmente o ENTENDIMENTO TRADICIONAL MILENAR da questão.

No linguajar bíblico, me parece que estaríamos diante de um acréscimo à regra do ‘olho por olho’. Na formulação do ‘olho por olho’, como se pode observar, existe uma nítida reciprocidade: um olho por um olho, um dente por um dente etc. Ou seja, o valor de um olho por um olho injuriado, o valor de um dente por um dente injuriado, etc. Contudo, no caso em questão, a mulher agarra o testículo de um homem, sendo que ela mesma não tem testículo e não o poderia ter. Então, não existe uma reciprocidade exata aqui. Daí se procurar uma medida de reciprocidade ‘sujeita’ à sanção: a mão usada. Então esse trecho, no quadro geral, tem por função ensinar como a reciprocidade exata não é uma necessidade absoluta para que se aplique o principio do ‘olho por olho’ (indenização).

Na formulação rabínica, a maneira como esse trecho qualifica o ‘olho por olho’ fica ainda mais fácil de entender. Segundo o tratado Bava Kamma 83b-88a (Talmude), quem agride outro deve pagar cinco indenizações, estimadas por um tribunal: pelo dano, pela dor, pelas despesas médicas, pela perda de subsistência (não poder trabalhar por certo tempo), e pela humilhação. Inclusive o modo de como calcular essas indenizações é estabelecido ali. (Veja o post [4]) Aí o caso em questão encaixa-se pelo menos na humilhação, o que hoje chamaríamos de danos morais. Portanto, essa lei ajudaria a entender que o ‘olho por olho’ se aplica mesmo quando apenas danos morais são gerados.

E dentro da jurisprudência rabínica em questão, também é esclarecido que a mulher só vai ter que indenizar por esse ato de humilhação se havia outro meio de ajudar seu marido. Caso fosse realmente necessário fazer isso para salvar seu marido, o ato é completamente justificado. (Bava Batra 28a)

Já a segunda posição, entendendo a questão como pertinente aos meios legítimos de defesa, é a adotada pelo Rambam (Maimônides), um codificador da Lei Judaica da Idade Média.

Para Rambam (Sefer Hamitzvot, Preceito Positivo 247; Mishnê Torá, Rotzeach uShmirat Nefesh 1), esse trecho estabelece a Misvá de salvar a vítima de um atacante que está tentando matá-la, mesmo se isso exigir matar o atacante ou, menos gravemente, mesmo ao custo de partes do corpo do atacante (a lei do Rodef, da qual já falei no post [171]).

Note que sob essa interpretação o ato de agarrar os testículos não é enxergado como um ato gerador de humilhação (danos morais), mas sim como um ato que coloca a vida da outra pessoa em perigo. Então a ideia seria que, caso alguém agarre o testículo alheio de modo que esteja colocando a vida desse homem em perigo, é permitido mesmo cortar a mão da pessoa (seja homem ou mulher) que está perigosamente apertando as partes íntimas alheias.

Dentro do linguajar bíblico, entendido desse modo, estaríamos diante da seguinte dúvida: se uma pessoa pressiona perigosamente os testículos de um homem, é permitido a esse homem ou a um transeunte cortar a mão da pessoa que está exercendo a pressão para salvar a vida desse homem (ou talvez salvar sua função reprodutiva e saúde, dado o severo dano causado mesmo que continue a viver)? Note que isso não é tão trivial, afinal, seria possível argumentar que cortar a mão da outra pessoa levaria à indenização segundo o ‘olho por olho’, nesse caso, ‘mão por mão’. Mas aí essa lei veio dizer que, nessa situação, cortar a mão dessa pessoa para se defender ou defender outrem seria justificado, não cabendo indenizá-la posteriormente.

Portanto, esse trecho NÃO diz respeito a amputar a mão de uma mulher como punição pelo ato em questão. Essa conclusão não é surpreendente para quem é familiar com o texto bíblico: a Torá nunca comina penas corporais desse estilo, então seria estranho que aqui houvesse uma exceção isolada. E literalmente EM NENHUM LUGAR DA BÍBLIA HEBRAICA jamais se ouve de alguém que tenha sido punido por amputação. O mais lógico, olhando sistemicamente, é que não fosse o caso de uma punição por amputação e a Jurisprudência Judaica Tradicional MILENAR confirma que realmente não se trata disso.

Para finalizar, uma curiosidade a respeito desse trecho é que ele foi sutilmente utilizado por um rabino da Idade Média para justificar punições severas ao marido que batesse na sua esposa e persistisse em fazê-lo. O rabino Meir ben Baruch de Rothenburg (1215–1293) escreveu o seguinte em uma Responsa a respeito de violência doméstica:

“Um judeu deve honrar sua esposa mais do que ele honra a si mesmo. Se um bate em sua esposa, deve ser punido mais severamente do que por bater em outra pessoa; uma vez que está comprometido a honrar sua esposa, mas não está comprometido a honrar outra pessoa… Se ele persiste em bater nela, ele deve ser declarado maldito, chicoteado e sofrer as punições mais severas, mesmo ao ponto de amputar seu braço. Se sua esposa estiver disposta a aceitar um divórcio, ele deve divorciá-la e pagar sua ketubbah [valor estabelecido no contrato de casamento em caso de divórcio].” (Ever ha-Ezer #297; tradução livre)

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Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.