[157] Os Escritos falam dos Messias? (Cântico dos Cânticos)

A Estrela da Redenção
15 min readAug 19, 2021

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Finalizando minha meta de fornecer aos leitores do blog o panorama geral de se e como a esperança messiânica emerge em diferentes partes da Bíblia Hebraica, analisarei aqui o livro do Cântico dos Cânticos, como parte da terceira e última parte da Bíblia Hebraica, os Ketuvim/Escritos.

Anteriormente, analisei a Torá ([150]), a primeira parte dos Neviim, com os livros históricos dos Profetas Anteriores ([151]), o caso samaritano que aceita apenas Torá sem Neviim nem Ketuvim ([152]), a segunda parte dos Neviim, com os livros proféticos dos Profetas Literários ([153]), o quadro geral dos Ketuvim/Escritos, excetuado Salmos e Daniel ([154]), o livro dos Salmos dentro dos Ketuvim ([155]) e o livro de Daniel dentro dos Ketuvim ([156]).

Antes de adentrar no tópico, é preciso observar que a Ordem Judaica dos livros da Bíblia Hebraica é diferente daquela que se encontra no “Velho” Testamento de uma Bíblia Cristã. Mesmo que no caso cristão protestante, os livros do “Velho” Testamento sejam exatamente os mesmos da Bíblia Judaica, a ordem dos livros é diferente. Isso pode parecer um detalhe menor, mas na verdade essa alteração tem um impacto significativo no entendimento. Por conta disso, aqui será usada a divisão original, i. e. judaica, dos livros da Bíblia Hebraica em 3 coletâneas: 1) Torá; 2) Neviim/Profetas; 3) Ketuvim/Escritos. Revise o post [112] se preciso.

Havia afirmado no post [154] que apenas Salmos e Daniel abordam diretamente (elementos d)a esperança messiânica entre os Ketuvim, e, por isso, naquele texto examinei todos os livros do Ketuvim que não passam perto dessa questão, incluindo o Cântico dos Cânticos. Então, por que abordá-lo agora e justamente no texto que fecha minha análise da questão messiânica na Bíblia Hebraica?

O motivo é que o Cântico dos Cânticos ocupa um lugar especial na tradição oral judaica e sua exegese tradicional dos textos bíblicos, desde pelo menos os tempos do Rabi Akiva (final do século I/início do II da nossa era, isto é, 1.900 anos atrás), como comentei nos posts [41]-[50]-[75]. Rav Akiva chamava esta poesia erótica de “Santidade das Santidades”, o livro ‘santíssimo’ entre os santos livros que compõem as Escrituras (Mishnah Yadayim 3:5). Isso porque, na Bíblia Hebraica (e no judaísmo), o amor ERÓTICO é uma metáfora central para o relacionamento entre Deus e seu povo (presente em vários livros proféticos). Não o amor ágape como muitos pensam, mas sim o amor EROS!

Os Profetas Literários, que examinamos nessa série no post [153], recorreram a esse imaginário no qual Deus e o povo de Israel são vistos como um casal apaixonado sofrendo uma grave crise de relacionamento. Um exemplo marcante disso é o Profeta Oséias, que chegou a casar com uma mulher adúltera, se divorciar dela e com ela se reconciliar, tudo isso simbolizando o relacionamento entre o Deus de Israel e seu povo Israel.

Ou seja, mais do que uma aliança num sentido puramente político, há um relacionamento erótico entre Deus e seu povo. Este povo ‘conheceu’ a YHWH. Esse ‘conhecer’ aqui tendo uma conotação erótica, no qual YHWH casa com Israel e tem relações ‘íntimas’ com Israel. Mas como a palavra ‘casamento’ hoje soa como algo frio e padrão, vamos reelaborar assim:

Deus SE APAIXONA pelo povo de Israel quando este era uma jovem moça ainda, e começa a NAMORAR COM MUITO ARDOR essa jovem. Mas com o passar do tempo essa namorada vai esquecendo o primeiro amor e várias vezes TRAI seu namorado (Deus) com vários AMANTES (outros deuses). Ainda assim, por estar apaixonado, Deus nunca a abandona e perdoa de novo e de novo mesmo SOFRENDO com as traições. Mas sua paciência começa a se esgotar, Deus está profundamente irritado com sua namorada e no auge dessa ira jura que NUNCA MAIS VOLTARÁ com ela… Mas um dia essa irritação passará e a traição novamente será perdoada, REATANDO O NAMORO como se fosse a primeira vez que se ‘conheceram’.

Agora perceba: o Cântico dos Cânticos em si mesmo, lido em seu sentido direto e plano, é um exemplar da antiga poesia erótica/romântica israelita, retratando dois apaixonados ansiando por estarem juntos e se deleitarem fisicamente. O livro tem um caráter bem ‘profano’ e cotidiano, sem sequer mencionar o nome de Deus. Contudo, como havia falado no post [154], exatamente por ser assim que ele consegue exprimir o sentido da sacralidade do profano, vendo o amor erótico como uma das maiores das dádivas e bênçãos que a vida proporciona.

É justamente porque o erotismo e a afetividade íntima, com conotações abertamente físicas e corporais, são tidos em tão alta conta na Bíblia Hebraica que o relacionamento entre Deus e Israel acabou sendo pensado em termos eróticos e íntimos.

Nesse contexto, seria natural ler profeticamente (e poeticamente, pois os Profetas eram também poetas) a poesia erótica do Cântico dos Cânticos como uma metáfora para o relacionamento entre Deus e Israel, desenvolvendo essa camada a mais. Eis a equação:

  1. Se no Cântico dos Cânticos está representado o suprassumo do amor apaixonado pelo qual os apaixonados ali descritos desejam ardentemente um ao outro num nível radical e incondicional;
  2. Se esse tipo de relacionamento erótico-afetivo representa o relacionamento entre Deus e o povo judeu, como elaborado no discurso profético;
  3. Então o suprassumo do amor apaixonado pelo qual os apaixonados ali descritos desejam ardentemente um ao outro num nível radical e incondicional representa o relacionamento entre Deus e o povo judeu.

Ou seja, apesar de concordar totalmente com a pesquisa acadêmica no sentido de que o Cântico dos Cânticos não foi escrito tendo em vista essa metáfora sagrada, o fato de ter sido lido metaforicamente pelos sábios da tradição oral judaica dessa forma não foi algo “forçado” ou “artificial”, mas sim um desenvolvimento bem orgânico de um imaginário cultural que usava o relacionamento amoroso erótico como símbolo privilegiado da jornada da Presença Divina no povo de Israel ao longo de toda a história que começou com a libertação do Egito (ou mesmo antes, quando Deus se apaixona por Abraão). A interpretação em questão não deserotiza o Cântico dos Cânticos, mas sim erotiza o Divino (o que será levado a extremos na Kaballah).

E aqui chegamos no elo que liga o Cântico dos Cânticos à esperança messiânica. Entendendo o relacionamento de Deus e Israel como passando pelas vicissitudes e percalços de um relacionamento de um casal, a HISTÓRIA da aliança entre Deus e Israel pode ser vista como um HISTÓRICO de relacionamento entre duas pessoas.

Indo ainda mais concretamente, os acontecimentos entre o casal apaixonado retratado no Cântico dos Cânticos teriam correspondência em acontecimentos do relacionamento histórico entre Deus e o povo judeu.

É muito importante lembrar que, no contexto judaico, a redenção humana não é pensada de forma “espiritualizada”, mas sim em termos concretos: a paz mundial, o fim da opressão sociopolítica, o conforto daqueles que sofrem, a restauração de Israel, o fim do exílio judaico, o fim da fome e da pobreza, a cura das doenças, a realização da justiça no seu sentido mais pleno para todos, a destruição dos opressores, a exaltação dos oprimidos etc.

A redenção messiânica nesse sentido não é qualitativamente diferente das tantas libertações que já ocorreram com o povo judeu e com outros povos ao longo da história, nem das que ainda ocorrerão ou estão ocorrendo. O diferencial da redenção messiânica é ser o completamento de todas essas redenções já acontecidas, a libertação DERRADEIRA. Dessa forma, é uma esperança terrena, material, ‘carnal’, sociopolítica, ‘corporificada’ — e por isso mesmo pode ser pensada à luz do erótico em um sentido muito físico!

Assim, uma chave de leitura essencial aqui é o tema do exílio. Duas vezes no Cântico dos Cânticos a amada fica desesperada à procura de seu amado, por tê-lo perdido de vista:

“De noite, em minha cama, busquei aquele a quem ama a minha alma; busquei-o, e não o achei.
Levantar-me-ei, pois, e rodearei a cidade;pelas ruas e pelas praças buscarei aquele a quem ama a minha alma; busquei-o, e não o achei.
Acharam-me os guardas, que rondavam pela cidade;eu lhes perguntei: Vistes aquele a quem ama a minha alma?” (Cânticos 3:1–3)

“Eu dormia, mas o meu coração velava; e eis a voz do meu amado que está batendo: ‘abre-me, minha irmã, meu amor, pomba minha, imaculada minha, porque a minha cabeça está cheia de orvalho, os meus cabelos das gotas da noite.’
Já despi a minha roupa; como a tornarei a vestir? Já lavei os meus pés; como os tornarei a sujar?
O meu amado pôs a sua mão pela fresta da porta, e as minhas entranhas estremeceram por amor dele.
Eu me levantei para abrir ao meu amado, e as minhas mãos gotejavam mirra, e os meus dedos mirra com doce aroma, sobre as aldravas da fechadura.
Eu abri ao meu amado, mas já o meu amado tinha se retirado, e tinha ido; a minha alma desfaleceu quando ele falou; busquei-o e não o achei, chamei-o e não me respondeu.
Acharam-me os guardas que rondavam pela cidade; espancaram-me, feriram-me, tiraram-me o manto os guardas dos muros.
Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, que, se achardes o meu amado, lhe digais que estou doente de amor.” (Cânticos 5:2–8)

A exegese rabínica aqui entende que o desespero dessa mulher pela perda de seu amado é análogo ao desespero do povo judeu pelo ocultamento da Presença Divina com o exílio. A experiência do exílio é comparada à experiência de ‘se desencontrar’, ‘se perder’ de alguém que você ama, sem saber se irá reencontrar essa pessoa amada.

E como isso ocorre duas vezes ao longo do Cântico dos Cânticos, acrescida de um terceiro caso de desabafo parecido, teríamos aí novamente uma analogia com a relação entre Deus e Israel, uma vez que foram 3 os exílios do povo judeu: o egípcio, o babilônico e o romano. O egípcio nesse caso se refere à escravidão dos israelitas no Egito, descrita na Torá. O babilônio é o descrito nos Neviim e nos Ketuvim da Bíblia hebraica. O romano é o descrito no Talmude. (Note que é mais comum falarmos de exílio considerando o babilônico e o romano, enquanto o egípcio é mais comum falarmos em escravidão no Egito, mas isso é mais terminológico)

Esse último exílio, o romano, é crucial para entender como o Cântico dos Cânticos veio a ser interpretado. Antes da destruição do Segundo Templo em 70 EC, não era exatamente claro que tal catástrofe aconteceria (enquanto o Talmude relata sinais e declarações de Rabinos décadas antes já antecipando esse acontecimento; Yoma 39b), em especial quanto tempo duraria um possível exílio disso decorrente.

Em 132 EC, houve um raio de esperança de que tal situação já estava prestes a acabar: uma rebelião armada judaica conseguiu recuperar a Judéia, sob a liderança de Bar Kokhba (ocasionada pela intenção do Imperador em construir um Templo para Júpiter no lugar onde ficava o Templo judeu destruído).

Em moedas emitidas pelos rebeldes judeus, voltava-se ao uso do Hebraico para escrever nelas mensagens de libertação e redenção em relação à opressão estrangeira: “à Liberdade de Sião”, “Ano Dois da Libertação de Israel”, etc. Também nelas vemos o uso de simbologia judaica: o templo, arca da aliança, itens cerimoniais (lulav — ramo de palmeira — e etrog — fruta
cítrica — usados na festa de Sucot/Cabanas), cachos de uvas, guirlandas de oliveira, palmeiras, liras, etc.

O Talmude relata que um dos maiores sábios de Torá de todos os tempos, rav Akiva (que citamos mais cedo como tendo dito que o Cântico dos Cânticos é o Lugar Santíssimo da Bíblia Hebraica), chegou inclusive a pensar que Bar Kokhba fosse “o Messias” (um título que esse líder judaico não usava, optando pelo de “Nasi”, Príncipe).

A libertação durou de 132 a 136, período conhecido como a 3ª Guerra Judaico-Romana, cujo fim foi catastrófico para o povo judeu, com centenas de milhares de mortos (as mortes no lado das forças armadas romanas foram altas também).

Dessa forma, ficou claro que o exílio romano iria durar muito tempo, e os Rabinos da tradição oral judaica chegaram à conclusão de que era melhor que Israel não tentasse obter a terra de Israel à força do Império Romano.

O interessante é que os rabinos da época se basearam… no Cântico dos Cânticos!

Trata-se da ideia dos 3 Juramentos, entre Deus, Israel e as nações (Ketubot 110b-111a):

  1. o povo judeu não deve ir para a terra de Israel em bloco (i. e. à força);
  2. o povo judeu não deve se rebelar contra as nações do mundo;
  3. em troca, as nações do mundo não devem maltratar o povo judeu.

Tais juramentos estariam ocultos no Cântico dos Cânticos, em 3 trechos nos quais a Amada fala com as “filhas de Jerusalém” utilizando as mesmas palavras (1º e 2º trecho idênticos, 3º trecho uma parte idêntica do 1º e 2º). Nessa interpretação rabínica, a “Amada” corresponde ao “povo judeu” e as “filhas de Jerusalém” correspondem às “nações do mundo”, e o tópico da conversa é o “Amado”, que corresponde a “Deus”.

“Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, pelas gazelas e cervas do campo, que não acordeis nem desperteis o meu amor, até que queira.” (Cânticos 2:7)

“Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, pelas gazelas e cervas do campo, que não acordeis, nem desperteis o meu amor, até que queira.” (Cânticos 3:5)

“Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, que não acordeis nem desperteis o meu amor, até que queira.” (Cânticos 8:4)

Os dois primeiros trechos são antecedidos por aquela busca desesperada da amada pelo seu amado perdido, que, como falado acima, representaria o exílio judaico. E o terceiro trecho também é antecedido por uma expressão de anseio da amada pela proximidade contínua do amado. Aí nos três trechos, a amada se mostra zeloso pelo sono de seu amado, pedindo que as filhas de Jerusalém não o perturbem, deixando-o descansar, até que o amado por ele mesmo retorne.

A analogia aqui funciona então do seguinte modo: tal como a amada, mesmo ansiando ardentemente pela presença total e permanente de seu amado, não tenta apressar esse reencontro, de forma similar o povo judeu, mesmo ansiando ardentemente pela presença total e permanente de seu Deus na terra de Israel, não deveria apressar esse reencontro.

Então, tal como a amada e as filha de Jerusalém entram em acordo para não forçar esse reencontro antes da hora, deixando que o amado durma até que queira se levantar, o povo judeu e as nações do mundo entram em acordo para não forçar esse reencontro antes da hora (i. e. por meio de violência), deixando que Deus sozinho escolha o momento da redenção final do povo judeu.

Daí os 3 juramentos descritos antes, normatizando a existência judaica na Diáspora, onde os judeus acabaram se tornando uma população global, espalhada em todos os continentes, de caráter multiétnico e multirracial. A sobrevivência judaica seria ganha não por tentar reobter o controle da terra de Israel pela violência armada, mas por se espalhar ao redor do globo de maneira pacífica em relação às nações já residentes nas demais regiões do mundo. Em troca, as nações deveriam tratar bem os judeus, dada sua intenção pacífica de residir em harmonia com os residentes não-judeus. (Infelizmente, a recíproca muitas vezes não foi verdadeira)

Comentando Cânticos 2:7, o Me’am Lo’ez explica:

“A amada aqui intima as outras mulheres a se manterem afastadas do seu amado. Cercada por suas companheiras (alegoricamente, as outras nações da terra), que são simbolizadas pelas gazelas e corças do campo, a jovem (Israel) lhes fala do passado. Ao mesmo tempo, ela suplica que elas não lhe peçam para falar do amor por seu Amado. Pois estas memórias despertam a agonia da saudade.

‘Para que vocês não despertem ou incitem o amor’. A dupla ênfase significa que, nem os justos individualmente, e nem o povo como um todo, tentará terminar o exílio ‘antes que ele queira’. Nossos esforços somente podem ter sucesso se vierem no momento próprio. Assim, quatro exortações estão contidas neste versículo:

1 — Israel não deve rebelar-se contra as nações do mundo; 2 — Não deve apressar o fim; 3 — Não deve revelar seus mistérios para as nações do mundo e 4 —Não deve vir em grandes massas para a terra de Israel. Quanto aos mistérios que não devem ser relevados, há os que dizem ser as razões dos mandamentos, enquanto outros dizem que se tratam dos ensinamentos esotéricos.

Outros interpretam im tairu (‘para que não despertem’) como um apelo à ação, e traduzindo, portanto, como ‘se vocês despertarem’. A Congregação de Israel envia ‘as filhas de Jerusalém’ para interceder por ela, para que continuam a incitar Seu amor ‘até que queira’. O tempo esperado virá quando seu amor (de Israel) por Ele encontrar favor em seus olhos.” (Me’am Lo’ez)

Já Rashi explica:

“A Congregação de Israel está obrigada por juramento (‘conjuro’) a não forçar um término prematuro do exílio por intermédio de preces e súplicas excessivas. No entanto, para que o desespero não nos domine, não vamos relegar a redenção para um futuro distante. Ao contrário, estejamos prontos, em todos os momentos, para sua vinda, concentrando nossos pensamentos na redenção, e expressando nosso desejo para que ela seja antecipada através das preces já estabelecidas.” (Rashi)

E o Midrash:

“Há duas conjurações: uma endereçada a Israel e a outra para as nações. Deus convoca Israel a não se rebelar contra o jugo dos governos, e Ele conjura os governos a não tornarem seu jugo sobre Israel pesado, para que eles não façam com isso que o exílio termine antes do tempo devido.” (Shir Hashirim Rabbah)

O versículo seguinte ao 2:7 já é um exemplo da Redenção Messiânica vindo para Israel:

“Esta é a voz do meu amado; ei-lo aí, que já vem saltando sobre as montanhas, pulando sobre os montes.” (Cânticos 2:8)

Logo após a amada alertar as filhas de Jerusalém para que deixem seu amado dormir até quando queira, ela ouve a voz dele, saltando por cima de montanhas e montes, vindo até ela!

“Em contraste com o desespero de Israel, o versículo expressa a imagem de Deus apressando-se a vir redimir os judeus antes da época predeterminada.” (Rashi)

“Montanhas refere-se às transgressões intencionais, as quais Deus ‘saltou’, isto é, relevou (perdoou), enquanto montes refere-se às transgressões menos severas, não-intencionais.” (Ibn Aknin)

“A amada pode ouvir os passos do seu amado aproximando-se, apressado, saltando sobre montanhas, transpondo os montes. A Congregação de Israel sente que a redenção se aproxima. Logo ela conhecerá de novo o amor de Deus. Embora ela esteja sob o juramento de não apressar o final de seu exílio, ela reafirma sua fé na redenção.” (Me’am Lo’ez)

O próximo versículo sugere que o amado agora está muito perto, espiando a amada por trás de um muro:

“O meu amado é semelhante ao gamo, ou ao filho do veado; eis que está detrás da nossa parede, olhando pelas janelas, espreitando pelas grades.” (Cânticos 2:9)

Por que atrás do muro?

“A redenção está próxima, pois o Maschiach (Messias) está de pé atrás do muro. O versículo indica que o povo judeu está sob a supervisão divina, mesmo no exílio. A Shechiná (Presença Divina) está presente no dia do Shabat, olhando e supervisionando. Ela está lá também durante os festivais. Deus aproxima-se para observar o povo judeu a celebrar suas ocasiões festivas, pulando como uma gazela, ou um jovem cervo, do muro para o telhado e do telhado para o muro de toda sinagoga e casa de estudo.

Portanto, todo judeu deve se alegrar muito, especialmente nessas ocasiões. A realidade da supervisão divina não é conhecida diretamente. Deus permanece oculto ‘atrás do muro’. Durante nosso longo exílio nós nos sentimos muito afastados de Deus, mas a verdade é que Deus está próximo e sua supervisão é infalível.

Quando se olha através de um janela, aquele que vê também é visto. Mas assim não acontece quando se olha através das rachaduras do muro.” (Me’am Lo’ez)

Com isso a Redenção finalmente chega fazendo Israel reencontrar seu Deus na terra prometida em plena primavera verdejante, tal como o reencontro entre o Amado e a Amada para viverem seu amor, sua companhia, suas relações sexuais, de modo livre e desimpedido nos jardins do campo:

“O meu amado fala e me diz: Levanta-te, meu amor, formosa minha, e vem.
Porque eis que passou o inverno; a chuva cessou, e se foi;
Aparecem as flores na terra, o tempo de cantar chega, e a voz da rola ouve-se em nossa terra.
A figueira já deu os seus figos verdes, e as vides em flor exalam o seu aroma; levanta-te, meu amor, formosa minha, e vem.” (Cânticos 2:10–13)

O prazer erótico aqui é intenso, vivo, indomável.

“Quão formosa, e quão aprazível és, ó amor em delícias!
A tua estatura é semelhante à palmeira; e os teus seios são semelhantes aos cachos de uvas.
Dizia eu: Subirei à palmeira, pegarei em seus ramos; e então os teus seios serão como os cachos na vide, e o cheiro da tua respiração como o das maçãs.
E a tua boca como o bom vinho para o meu amado, que se bebe suavemente, e faz com que falem os lábios dos que dormem.
Eu sou do meu amado, e ele me tem afeição.
Vem, ó amado meu, saiamos ao campo, passemos as noites nas aldeias.
Levantemo-nos de manhã para ir às vinhas, vejamos se florescem as vides, se já aparecem as tenras uvas, se já brotam as romãzeiras; ali te darei os meus amores.” (Cânticos 7:6–12)

A Redenção é um orgasmo infinito com a pessoa amada.

“Song of Songs nº 13 [Cântico dos Cânticos nº 13], Egon Tschirch, 1923. Vale muito a pena conferir a sequência completa de pinturas do Cântico dos Cânticos desse artista, retratando muito bem o ritmo e intensidade das alternâncias entre saudade, encontro, gozo, admiração, etc. apresentadas nessa antiga poesia erótica judaica, o Lugar Santíssimo da Bíblia Hebraica.

O fundamento do reencontro é o amor radical e incondicional do casal apaixonado. Mesmo a distância por muito tempo, mesmo os obstáculos por vezes esmagadores, NADA pode destruir esse amor:

“Põe-me como selo sobre o teu coração, como selo sobre o teu braço, porque o amor é forte como a morte, e duro como a sepultura o ciúme; as suas brasas são brasas de fogo, com veementes labaredas.
As muitas águas não podem apagar este amor, nem os rios afogá-lo; ainda que alguém desse todos os bens de sua casa pelo amor, certamente o desprezariam.” (Cânticos 8:6,7)

E é assim que o Cântico dos Cânticos se relaciona à esperança messiânica: o amor profundamente erótico entre Deus e Israel fundamenta a expectativa da Redenção definitiva, findando toda opressão e permitindo uma existência tranquila para toda a humanidade. O amor dará a nota final da História.

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A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.