[140] Naum: a alegria pela destruição dos opressores
O livro do Profeta Naum é uma coletânea poética com apenas 3 capítulos, celebrando a derrota do Império Assírio, com a queda de sua capital, Nínive, pelas mãos do exército babilônico, ocorrida em 614 antes da Era Comum.
A poesia/profecia de Naum é uma mostra em primeira mão de como um Profeta bíblico respondia aos acontecimentos de sua época. Esse livro foi escrito ao tempo dos eventos, seja no mesmo ano se ele escreveu logo após o evento, seja anos antes se sua escrita antecipou o evento. Schokel e Diaz (1980) datam esse livro por volta de 668 e 654 AEC, durante o Reino de Manassés, algumas décadas antes da queda de Nínive ocorrer em 612 AEC. (Caso queira entender o motivo para essa provável datação, veja a nota ao final do texto)
Desse modo, o livro de Naum foi provavelmente escrito em um período de intensa opressão da Assíria sobre o Reino de Judá, composto principalmente por 2 tribos de Israel (mais a tribo de Levi). Além disso, no tempo dessa escrita, o Reino de Israel/Efraim, que ficava ao norte do Reino de Judá e era composto pelas demais 10 tribos de Israel, havia sido varrido da história mundial.
A política assíria com os povos conquistados tinha uma marca distintiva: tentava-se deslocar os povos de uma região para outra que eles não conhecessem, de maneira que tornaria mais fácil continuar a dominá-los. Ao conquistarem o Reino de Efraim, grande parte de sua população foi deportada e/ou dispersa, a qual acabou assimilada entre outros povos e perdendo sua identidade étnica distinta. Por outro lado, exilados de outros povos do Levante foram levados para lá, se integrando e misturando ao remanescente da população local das 10 tribos que havia permanecido. Desses acontecimentos emergiu a comunidade etnorreligiosa samaritana, dos israelitas samaritanos, em distinção a dos judeus, ou israelitas judeus.*
Além disso, o Império Assírio era conhecido por sua crueldade em guerra, em especial pela prática da tortura, num nível nunca antes visto. Cenas de tortura eram representadas em murais assírios. O rei assírio Asurbanipal (668–631 AEC) se vangloriava de sua crueldade. Naum era contemporâneo exatamente desse rei assírio! E provavelmente escreveu sua poesia profética durante o reinado desse rei.
Portanto, ao tempo que Naum viveu, era possível saber o que a Assíria poderia fazer com o Reino de Judá e sua capital Jerusalém. De fato, décadas antes, a Assíria quase conseguira fazê-lo, durante o Reinado de Ezequias, não fosse por uma doença que acometeu o exército assírio na época. Em todo caso, Judá acabou sendo obrigada a pagar tributos ao Império Assírio. Portanto, a ameaça de uma possível EXTINÇÃO do povo judeu pairava no ar — sem contar o terrível espectro da tortura assíria….
Diante de um TERROR tão próximo e real, em meio ao PICO dessa opressão imperial cruel, Naum ousou ter esperança. Ele canta — canta celebrando uma iminente queda da cidade de Nínive, com a conseguinte destruição do Império Assírio! Contra os fatos que ele via — ele teve esperança.
Sua poesia começa com o fundamento dessa esperança:
“Peso de Nínive. Livro da visão de Naum, o elcosita.
O Eterno (YHVH) é Deus zeloso e vingador; o Eterno (YHVH) exerce vingança com a plenitude de sua ira; o Eterno (YHVH) faz sua vingança recair sobre os adversários que a provocam.
O Eterno (YHVH) é tardio em irar-se, mas grande em poder, e ao iníquo não absolverá; o Eterno (YHVH) tem o seu caminho na tormenta e na tempestade, e as nuvens são o pó dos seus pés.
Ele repreende ao mar, e o faz secar, e esgota todos os rios; desfalecem Basã e o Carmelo, e a flor do Líbano murcha.
Os montes tremem perante ele, e os outeiros se derretem; ante sua presença, a terra, com tudo que ela contém, funde-se em vapor.
Quem pode permanecer firme ante sua indignação, e quem persistirá diante do ardor da sua ira? A sua cólera flui como fogo, e se estilhaçam as rochas por sua causa.
O Eterno (YHVH) é bom, ele serve de fortaleza no dia da angústia, e e conhece os que confiam nele.” (Naum 1:1–7)
A esperança de Naum está no caráter divino. O Deus de Israel (YHVH) é O Libertador daqueles que estão oprimidos. Ele é paciente, e demora a se irar — pode demorar décadas ou mesmo séculos — mas sua Ira é implacável quando vier. Por isso, a esperança dos oprimidos reside na IRA DIVINA.
Sim, ira, raiva, vingança. Muitas pessoas acham que o Deus da Bíblia Hebraica seria cruel. Isso é uma caricatura totalmente distorcida — quando entendemos o quanto a Bíblia Hebraica reproduz a voz de pessoas que sofreram constantemente com opressões cruéis e ameaças violentas, vemos que é o contrário! É apenas a IRA IMPLACÁVEL de Deus que pode salvar aqueles que sofrem — por destruir aqueles que fazem sofrer.
“Eis sobre os montes os pés do que traz as boas novas, do que anuncia a paz! Celebra as tuas solenidades, ó Judá, cumpre os teus votos, porque o malévolo não mais se aproximará de ti; ele é inteiramente exterminado.” (Naum 1:15)
A ira libertadora de Deus é sua solidariedade para com o que sofre, para com o oprimido e o aflito — e o mundo é tão problemático apenas porque Ele é exageradamente paciente, esperando demais para exercer sua ira contra os opressores!
Como dizia o salmista, que exprime bem o sentimento cultivado pelo profeta Naum em seu livro:
“O justo se alegrará quando vir a vingança; lavará os seus pés no sangue do ímpio.” (Salmos 58:10; veja os posts [21]-[22] onde comento esse versículo)
Como comentei no post [21], muita gente acha que o iníquo nesse tipo de verso tem a ver com pessoas que não seguem uma religião específica propagada por certas igrejas cristãs. Mas o sentido original que a Bíblia Hebraica se preocupa com o “ímpio” é muito diferente, pois repousa na questão da prática da justiça. Isto é, lida com assuntos MUITO MAIS SÉRIOS do que gente que falta na igreja ou vai num barzinho. Está falando de gente que ativamente e persistentemente oprime, persegue, agride, mata…. (em várias ocasiões, designa soldados inimigos com toda a brutalidade que a guerra envolve)
Em grande medida o ‘Sitz im Leben’ (o cenário de vida original) relativo à emergência e desenvolvimento da Bíblia Hebraica envolve cenários nos quais ser LIBERTO DE OPRESSORES CRUÉIS era tudo o que mais os antigos fiéis israelitas ansiavam.
Coloque o seguinte princípio na sua cabeça para não esquecer mais: muito do que vemos na Bíblia Hebraica pode ser melhor entendido num contexto de resistência israelita/judaica contra opressão sociopolítica, de cunho hierárquico e/ou imperial, no entorno do Antigo Israel. (Mesmo nas primeiras páginas; veja post [113])
E o profeta Naum celebra: como Deus é vingador e zeloso, e como Ele é bom, então o Império Assírio cairá. Sua queda será espetacular. O profeta a imagina com extrema vivacidade, quase como se estivesse vendo a olho nu tudo isso acontecer:
“porque os saqueadores os despojaram, e destruíram os ramos de sua videira.
Os escudos de seus guerreiros se avermelharam [com sangue], seus soldados parecem tingidos de escarlate, suas carruagens cintilam com tochas flamejantes no dia em que é assediado; suas lanças estão envenenadas.
Os carros correrão furiosamente nas ruas, colidirão um contra o outro violentamente; parecem chamas que se deslocam e que faíscam em relâmpagos.
Ele [o rei assírio] se lembrará dos seus valentes; eles, porém, serão abatidos à medida de sua marcha; apressar-se-ão para chegar à muralha, mas a cobertura já desabou.
Os portões que dão para os rios foram escancarados, e o palácio está desmoronando.
É decretado: ela será levada cativa, conduzida para cima; e as suas servas a acompanharão, gemendo como pombas, batendo em seus peitos.
Nínive desde que existiu tem sido como um tanque de águas, porém agora fogem. Parai, parai, clamar-se-á; mas ninguém olhará para trás.
Saqueai a prata, saqueai o ouro, porque não têm fim as provisões! Não deixai sequer um vaso precioso.
Vazia, esgotada e devastada está; os corações estão esmorecidos, e tremem os joelhos, e doloridos os seus corpos, e os rostos de todos eles se enegrecem.
Onde está agora o covil dos leões, e as pastagens dos leõezinhos, onde passeava o leão velho, e o filhote do leão, sem haver ninguém que os espantasse?
O leão estraçalhava sua presa para dar alimento a suas crias, e a estrangulava para as suas leoas, e enchia de presas as suas cavernas, e os seus covis de carcaças.
Eis que eu estou contra ti, diz o Eterno [YHWH] dos Exércitos, e queimarei na fumaça os teus carros, e a espada devorará os teus leõezinhos, e arrancarei da terra a tua presa, e não se ouvirá mais a voz dos teus embaixadores.” (Naum 2:2–13)
“O cavaleiro levanta a espada flamejante, como a lança relampejante, e ali haverá uma multidão de mortos, e abundância de cadáveres, e não terão fim os defuntos; tropeçarão nos seus corpos” (Naum 3:3)
Qual a razão para tamanha destruição? A crueldade da Assíria, e a política enganadora com que seduziu as nações para a ela se sujeitarem (veja Rashi):
“Ai da cidade sanguinária! Ela está toda cheia de mentiras e de rapina; não se aparta dela o roubo.” (Naum 3:1)
“Por causa da multidão dos pecados da meretriz mui sedutora, da mestra das feitiçarias, que vendeu as nações com as suas fornicações, e as famílias pelas suas feitiçarias.” (Naum 3:4)
Por tudo isso, esse que era um grande centro comercial, por onde passavam tantas mercadorias e dinheiro, agora estará reduzido a ruínas e sua elite perderá tudo que tinha:
“Todavia foi levada cativa para o desterro; também os seus filhos foram despedaçados nas entradas de todas as ruas, e sobre os seus nobres lançaram sortes, e todos os seus grandes foram presos com grilhões.” (Naum 3:10)
“Multiplicaste os teus negociantes mais do que as estrelas do céu; como uma nuvem de gafanhotos se espalhará e voará.” (Naum 3:16)
O livro conclui com a constatação de que ninguém se enlutará por Ninivê — dada a crueldade com que esse Império machucava todos os os outros povos:
“Ninguém se comove por tua queda; são graves teus ferimentos. Ao ouvir notícias sobre ti, aplaudem todos, pois sobre quem não passou continuamente tua iniquidade?” (Naum 3:19)
Aqui não só o povo de Deus se alegrará, mas todos os povos oprimidos e triturados pela máquina de opressão e crueldade assíria. Esse Deus Libertador (YHWH) não somente é Deus dos judeus, “mas de todos os seres humanos oprimidos, violentados e empobrecidos.” (ROSSI, 2007, p. 34)
Assim, o livro de Naum atesta a experiência muito forte de alguém que se viu diante de uma opressão terrível contra todo o seu povo (metade dele exilado e disperso, metade dele sob o pesado jugo assírio) e sob o espectro da sua possível extinção completa — e por isso mesmo anseia tão fortemente para que venha a libertação, pelo menos para as gerações futuras. Esse pequeno livro dá voz à experiência judaica de seu tempo e de tantos outros nos quais tudo o que resta é aguardar:
“Os golpes cruéis, repetidos, o chuveiro de dores e de ultrajes, não puderam quebrar a elasticidade surpreendente do paciente eterno. Esmagado, ele levanta-se. Desaparecido, encontra-se. Contra o presente cruel, muito real e muito certo, ele tem por bem mais certo a quimera e o impossível. Ele espera contra a esperança” (Michelet, 1877; edição de 2001, p. 253)
E não haveria Esperança, se não houvesse Ira.
Nota: Como falei no post anterior, no qual apresentei a proposta de ler conjuntamente Naum e Jonas, temos praticamente certeza que o livro foi escrito antes de 612 AEC (antes da era comum), há mais de 2.632 anos atrás, e, por conta de eventos que o livro retrata, depois de 668 AEC (ocasião da queda de Tebas mencionada pelo Profeta). Schokel e Diaz datam esse livro por volta de 668 e 654 AEC, durante o Reino de Manassés, com base na consideração apresentada abaixo:
“se levarmos em conta os dados, podemos concretizar mais um pouco. O primeiro: Tebas recuperou o seu poderio por volta de 654; seria muito estranho que se falasse da destruição depois dessa data. Segundo: o livro dá a impressão de falar da opressão assíria que pesa duramente sobre Judá, o que não ocorre já a partir de 627, data aproximada da morte de Assurbanipal. O jugo assírio fazia-se sentir com toda a força a meados do século VII. E nessa época é quando se recordaria também o trágico destino de Tebas. Por isso não consideramos absurdo datar a obra de Naum entre os anos 668 e 654, datas que abrangem desde a destruição de Tebas até sua restauração. Em tal caso, Naum seria o único profeta conhecido durante o longo reinado de Manassés (698–643). E a sua obra a deveríamos contemplar com nova perspectiva. Não é só a condenação de Nínive o que nela encontramos, mas também crítica velada à política assiriófila deste rei.” (Schokel e Diaz, 1980; edição de 2015, p. 1105–1106)
*No caso dos judeus, o exílio que ainda seria sofrido pelo Reino de Judá nas mãos dos babilônios levará a outra experiência de exílio, na qual houve a preservação continuada da identidade mesmo em terras alheias, bem como retorno de exilados.
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