[141] Jonas: e se o opressor desfizesse a opressão?
Muitas pessoas conhecem o livro de Jonas apenas por conta de uma história no meio desse livro envolvendo Jonas ser engolido por um peixe gigante e dentro deste peixe remanescendo vivo por 3 dias até ser ‘cuspido’ para fora.
Infelizmente, isso obscurece a real mensagem desse livro, que dialoga muito (por meio de contraste) com aquela que fiz acerca do livro de Naum no post anterior (e no próximo post irei ler conjuntamente Naum e Jonas para tirar conclusões dessa comparação).
Antes de entrar no livro em si, é apenas preciso revisar uma coisa que eu já disse no post [139]. O livro de Jonas é uma exceção entre os livros dos Profetas Literários na Bíblia Hebraica, porque ele não é uma compilação das profecias/poesias elaboradas pelo próprio profeta. Então rigorosamente falando o profeta Jonas não é “literário”, pois ele não escreveu sua profecia como fizeram os outros. Ao lermos o livro de Jonas, estamos diante de uma narrativa lendária (provavelmente já concebida desde o início como parábola ou paródia) sobre um profeta que existiu vários séculos antes (durante o período dos Profetas Literários).
Essa parábola sobre Jonas se passa em um período de tempo similar ao do profeta Naum que vimos no post anterior, marcado pela ameaça do Império Assírio. O Jonas histórico provavelmente atuou por volta de 786 a 746 AEC (veja 2Reis 14:25), anteriormente ao profeta Naum, e, por conseguinte, o livro de Jonas é ambientado “livremente” durante o século 8º antes da Era Comum, talvez imaginando Jonas atuando depois de 746 AEC até 705 AEC (considerando que foi apenas nessa data que o rei Senaqueribe nomeou Níneve como a capital). O caráter lacônico do livro só nos permite dizer que esse livro pressupõe a opressão assíria já tendo iniciado contra Israel e Judá, e que tal opressão já estava sendo realizada em vários outros povos da região.
É importante recordar que o Império Assírio oprimiu os antigos israelitas (de Israel/Efraim e de Judá) de forma muito intensa. Esse Império ameaçava varrer o Reino de Israel/Efraim do Norte e o Reino de Judá do Sul da face da terra. A política assíria com os povos conquistados tinha uma marca distintiva: tentava-se deslocar os povos de uma região para outra que eles não conhecessem, de maneira que tornaria mais fácil continuar a dominá-los.
Por exemplo, ao conquistarem o Reino de Efraim (ao longo de 740–720 AEC), grande parte de sua população foi deportada e/ou dispersa, a qual acabou assimilada entre outros povos e perdendo sua identidade étnica distinta (enquanto alguns remanescentes, junto com exilados de outros lugares trazidos até lá, deram origem à identidade israelita samaritana). A Assíria quase conseguiu fazer o mesmo com o Reino de Judá durante o Reinado de Ezequias, não fosse por uma doença que acometeu o exército assírio na época. Em todo caso, Judá acabaria sendo obrigada a pagar tributos ao Império Assírio.
Além disso, o Império Assírio era conhecido por sua crueldade em guerra, em especial pela prática da tortura, num nível nunca antes visto. Cenas de tortura eram representadas em murais assírios. O rei assírio Asurbanipal (668–631 AEC) se vangloriava de sua crueldade.
Portanto, a ameaça de uma possível EXTINÇÃO do povo judeu pairava no ar — sem contar o terrível espectro da tortura assíria….
Esse é o contexto do livro de Jonas (cujo escritor, por ter vivido séculos depois, sabia tudo o que veio a acontecer por conta dos assírios, e pressupõe que os leitores saibam desses fatos).
E assim, podemos começar. Diante de um TERROR tão próximo e real, em meio a um crescendo dessa opressão imperial cruel, Deus convida Jonas a ir até Níneve:
“E veio a palavra do SENHOR [YHVH] a Jonas, filho de Amitai, dizendo:
Levanta-te, vai à grande cidade de Nínive, e clama contra ela, porque a sua malícia subiu até à minha presença.” (Jonas 1:1,2)
E o que o profeta faz? Foge de Deus!
“Porém, Jonas se levantou para fugir da presença do Senhor para Társis. E descendo a Jope, achou um navio que ia para Társis; pagou, pois, a sua passagem, e desceu para dentro dele, para ir com eles para Társis, para longe da presença do Senhor.” (Jonas 1:3)
Jonas não queria ir até Níneve. Nesse momento não sabemos o porquê. Geralmente associamos o instinto de fuga com algum medo. Mas que medo Jonas tinha? Descobriremos em breve.
É por conta dessa tentativa de fuga por via marítima que Jonas acaba eventualmente na barriga de um peixe. Toda essa parte envolvendo Jonas no barco e Jonas no peixe (que na verdade se concentra em um Salmo recitado por Jonas) é muito interessante, mas não a exporei aqui porque quero me concentrar na parte final do livro. Quando o profeta finalmente volta à terra seca, seu comportamento muda: ele vai até Níneve, após Deus falar com ele uma segunda vez.
“E veio a palavra do SENHOR [YHVH] segunda vez a Jonas, dizendo:
Levanta-te, e vai à grande cidade de Nínive, e prega contra ela a mensagem que eu te digo.
E levantou-se Jonas, e foi a Nínive, segundo a palavra do Senhor [YHVH]. Ora, Nínive era uma cidade muito grande, de três dias de caminho.
E começou Jonas a entrar pela cidade caminho de um dia, e pregava, dizendo: Ainda quarenta dias, e Nínive será subvertida.” (Jonas 3:1–4)
Então, aqui a mensagem de Jonas era simplesmente que Nínive seria destruída em 40 dias.
Como falei no post anterior, tal mensagem da Ira Divina contra Níneve era doce aos ouvidos dos oprimidos pelos assírios. O Deus de Israel (YHVH) é O Libertador daqueles que estão oprimidos. Ele é paciente, e demora a se irar — pode demorar décadas ou mesmo séculos — mas sua Ira é implacável quando vier. Por isso, a esperança dos oprimidos reside na IRA DIVINA.
Contudo, aqui, Jonas está pregando tal mensagem de Ira Divina aos próprios opressores, isto é, aos assírios. Então, aqui não se trata de uma mensagem de esperança aos oprimidos, mas de reprovação sendo entregue aos opressores. E os assírios entendem o recado, de uma forma dramática:
“E os homens de Nínive creram em Deus [baElohim]; e proclamaram um jejum, e vestiram-se de saco, desde o maior até ao menor.
Esta palavra chegou também ao rei de Nínive; e ele levantou-se do seu trono, e tirou de si as suas vestes, e cobriu-se de saco, e sentou-se sobre a cinza.
E fez uma proclamação que se divulgou em Nínive, pelo decreto do rei e dos seus grandes, dizendo: Nem homens, nem animais, nem bois, nem ovelhas provem coisa alguma, nem se lhes dê alimentos, nem bebam água;
Mas os homens e os animais sejam cobertos de sacos, e clamem fortemente a Deus, e convertam-se, cada um do seu mau caminho, e da violência que há nas suas mãos.
Quem sabe se se voltará Deus [Elohim], e se arrependerá, e se apartará do furor da sua ira, de sorte que não pereçamos?” (Jonas 3:5–9)
Diante de tal reversão de conduta, desse início de uma “Teshuvá” (arrependimento), Deus volta atrás:
“E Deus [Elohim] viu as obras deles, como se converteram do seu mau caminho; e Deus [Elohim] se arrependeu do mal que tinha anunciado lhes faria, e não o fez.” (Jonas 3:10)
Ou seja, os 40 dias passaram, e Níneve não foi destruída.
Aqui é importante perceber que a Teshuvá não é simplesmente se sentir culpado e pedir desculpas, também devendo envolver atos concretos para remediar os males feitos e compensa aqueles que foram prejudicados (e sofrer aflições e/ou penalidades a depender do caso; veja Yoma 86a). Mas como o opressor assírio aqui demonstrou ter iniciado a desfazer sua opressão contra os povos da região, Deus suspende o juízo contra Níneve.
Mas não acaba por aí, pois Jonas reage em intenso protesto contra a postura divina de não trazer a destruição contra esse até então cruel opressor:
“Mas isso desagradou extremamente a Jonas, e ele ficou irado.
E orou ao Senhor, e disse: Ah! Senhor! [YHVH!] Não foi esta minha palavra, estando ainda na minha terra? Por isso é que me preveni, fugindo para Társis, pois sabia que és Deus [El] compassivo e misericordioso, longânimo e grande em benignidade, e que te arrependes do mal.
Peço-te, pois, ó Senhor [YHVH], tira-me a vida, porque melhor me é morrer do que viver.” (Jonas 4:1–3)
Ou seja, aqui Jonas desabafa: ele havia tentado fugir de vir até Níneve, porque sabia que Deus era MISERICORDIOSO EM EXCESSO. Então, se Jonas viesse e os assírios fizessem Teshuvá, eles não sofreriam toda a destruição que era devida. E conseguimos empatizar com Jonas aqui, afinal, Jonas era parte de um desses povos oprimidos pelos assírios, e o que mais queria era que chegasse o tempo da desforra. Mas com a Teshuvá assíria a opressão sofrida pelos israelitas iria acabar voluntariamente pelos assírios, sem que estes precisassem ser destruídos. E Jonas queria que também viesse a destruição completa deles, em consideração a tudo que já acontecera. Sem o sentimento de que a justiça ainda seria feita, Jonas diz que prefere morrer logo.
Como expliquei no post [132], os juízos divinos contra governos e nações na Bíblia Hebraica, por intermédio de males e catástrofes coletivos, na maioria das vezes não são exatamente “castigos”, mas sim “medidas para fazer parar algo errado”. Algo está sendo feito errado por um longo tempo sem que nada aconteça, aí vem tal surto para tentar fazer parar “à força” tal erro (fazendo as pessoas “acordarem” para a realidade e consertar o que está errado). Mas, uma vez parado o erro, não precisa mais continuar a ‘catástrofe’.
Um exemplo jurídico para facilitar. Ser preso por ter cometido um crime em algum momento no passado é uma punição. Já uma multa diária de tantos reais por não pagar pensão alimentícia para o filho menor não é uma punição, mas uma forma de coagir o devedor ao cumprimento de sua obrigação para com seus filhos. A maior parte desses juízos divinos coletivos como a Bíblia Hebraica os interpreta é mais paralela ao caso da multa diária até que se pague a pensão do que ao caso de ser preso por um crime passado.
Agora, explicado tudo isso, qual foi a reação de Deus à queixa de Jonas?
“E disse o Senhor [YHVH]: Fazes bem que assim te ires?” (Jonas 4:4)
Jonas está irritado, com Níneve e com Deus. Prefere até morrer do que viver, e pede que Deus o mate. Mas Deus simplesmente questiona se tal ira é realmente algo bom.
Jonas não responde, e aqui alguns fatos curiosos acontecem, fechando o livro:
“Então Jonas saiu da cidade, e sentou-se ao oriente dela; e ali fez uma cabana, e sentou-se debaixo dela, à sombra, até ver o que aconteceria à cidade.
E fez o Senhor Deus [YHVH Elohim] nascer uma aboboreira, e ela subiu por cima de Jonas, para que fizesse sombra sobre a sua cabeça, a fim de o livrar do seu enfado; e Jonas se alegrou em extremo por causa da aboboreira.
Mas Deus [Elohim] enviou um verme, no dia seguinte ao subir da alva, o qual feriu a aboboreira, e esta se secou.
E aconteceu que, aparecendo o sol, Deus [Elohim] mandou um vento calmoso oriental, e o sol feriu a cabeça de Jonas; e ele desmaiou, e desejou com toda a sua alma morrer, dizendo: Melhor me é morrer do que viver.
Então disse Deus [Elohim] a Jonas: Fazes bem que assim te ires por causa da aboboreira? E ele disse: Faço bem que me revolte até à morte.
E disse o Senhor [YHVH]: Tiveste tu compaixão da aboboreira, na qual não trabalhaste, nem a fizeste crescer, que numa noite nasceu, e numa noite pereceu;
E não hei de eu ter compaixão da grande cidade de Nínive, em que estão mais de cento e vinte mil homens que não sabem discernir entre a sua mão direita e a sua mão esquerda, e também muitos animais?” (Jonas 4:5–11)
Assim, o livro conclui com Deus explicando sua postura para Jonas. Jonas teve compaixão de uma aboboreira que lhe deu sombra, mesmo que a aboboreira tivesse tido uma estadia tão curta na vida de Jonas. Mas dentro de Níneve residem uma quantidade bem grande de pessoas e animais, todos os quais Deus acompanhou desde o berço, bem como aos ancestrais dessas pessoas e animais. Então, Deus tem um apego por suas criaturas, mesmo quando estas se desviam do caminho reto da justiça, e por isso Ele reluta em trazer seus juízos.
Aqui vemos a antropopatia divina, os sentimentos de Deus, sendo explorados. Na concepção do existencialista judaico R. Heschel, em seu clássico “The Prophets” (1962), os profetas eram convidados a participar da antropopatia divina. O profeta Jonas conseguira empatizar com a Ira de Deus contra os opressores e a favor dos oprimidos, mas agora estava sendo convidado a empatizar com a Bondade de Deus, mesmo para com os opressores quando estes desfazem a opressão e tomam passos para compensar e reparar todo o mal feito aos oprimidos (incluindo punições legais a indivíduos responsáveis também).
Assim, a parábola sobre Jonas é um argumento (não uma revelação!) sobre um princípio bíblico bem difícil de entender e aceitar, o qual foi bem enunciado pelo Profeta Ezequiel:
“Mas se o ímpio se converter de todos os pecados que cometeu, e guardar todos os meus estatutos, e proceder com retidão e justiça, certamente viverá; não morrerá.
De todas as transgressões que cometeu não haverá lembrança contra ele; pela justiça que praticou viverá.
Desejaria eu, de qualquer maneira, a morte do ímpio? diz o Senhor DEUS [YHVH]; Não desejo antes que se converta dos seus caminhos, e viva?” (Ezequiel 18:21–23)
“Dize-lhes: Vivo eu, diz o Senhor DEUS [YHVH], que não tenho prazer na morte do ímpio, mas em que o ímpio se converta do seu caminho, e viva.” (Ezequiel 33:11)
“Quando eu também disser ao ímpio: Certamente morrerás; se ele se converter do seu pecado, e praticar juízo e justiça,
Restituindo esse ímpio o penhor, indenizando o que furtou, andando nos estatutos da vida, e não praticando iniqüidade, certamente viverá, não morrerá.
De todos os seus pecados que cometeu não se terá memória contra ele; juízo e justiça fez, certamente viverá.” (Ezequiel 33:14–16)
Deus não tem prazer em destruir os ímpios. Ele de fato o fará, por prazer em salvar e compensar as vítimas dos ímpios, mas não é o que Ele gostaria de fazer. Sua preferência é que o ímpio viva, para que voluntariamente desfaça o mal feito anteriormente e faça agora o bem para com todos. Por isso a paciência e a demora em irar-se para dar a chance de Teshuvá (‘retorno’).
O livro do Profeta Jonas leva esse ditame às últimas consequências lógicas: mesmo um cruel opressor do povo de Deus e de tantos outros povos, poderia ser poupado da destruição caso voltasse do seu mau caminho e desfizesse por si mesmo a opressão, buscando agora repará-la e praticar a justiça.
Daí a escolha em retratar o Império Assírio aqui: pode parecer absurdo, mas… MESMO um inimigo feroz de Israel e de tantos outros povos, que representava tudo o que Deus mais rejeita, poderia ter uma chance no final das contas. O mal da opressão não precisa ser desfeito necessariamente pela destruição do opressor, pois é possível ao opressor desfazer voluntariamente o que anteriormente fez e agir para consertar isso.
Eis o argumento que esse livro tenta fazer, por meio dessa parábola intrigante.
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