[132] Seria a Pandemia de Covid um Juízo Divino?
“Como está sentada solitária aquela cidade, antes tão populosa! Tornou-se como viúva, a que era grande entre as nações” (Lamentações 1:1)
Na Bíblia Hebraica (vulgarmente conhecida como “Velho” Testamento), encontramos às vezes a ideia de que doenças afligindo toda uma comunidade ou grupo (um ‘outbreak’, surto, epidemia etc.) poderiam ser juízos divinos.
Refletindo sobre tal concepção bíblica dado o contexto atual global que estamos vivendo, rapidamente surge a seguinte questão: seria a pandemia de Covid-19 um juízo divino?
Para entendermos melhor essa questão, precisamos separar duas coisas: a visão de senso comum/fundamentalista religiosa e a visão bíblica-judaica. São coisas bem diferentes.
Esses discursos fundamentalistas religiosos que vemos por aí encarando a pandemia de Covid-19 como “juízo divino” não podem ser confundidos com a maneira como, à luz da Bíblia Hebraica, poderíamos sim conceber a pandemia de Covid-19 como juízo divino (enquanto também não precisemos assim concebê-la, como em breve explicarei). Podem usar o mesmo termo, mas com conotações totalmente diferentes.
De fato, é bem mais complexo do que parece essa ideia de “surtos de doença como juízos divinos” dentro da Bíblia Hebraica, dada a variedade de cenários e autores retratados nessa coletânea. Sei que olhando superficialmente parece algo como “pecou, aí Deus manda uma doença punindo o pecado”, mas é mais complexo do que isso.
Veja por exemplo, o trecho que falamos no post anterior, onde se diz que o “anjo do Senhor” matou milhares de soldados assírios, numa linguagem sugestiva de figura de linguagem para um surto patológico no exército assírio (revise o post anterior se quiser saber mais do motivo para entender isso como uma doença que ocorreu).
“Então saiu o anjo do Senhor, e feriu no arraial dos assírios a cento e oitenta e cinco mil deles; e, quando se levantaram pela manhã cedo, eis que todos estes eram corpos mortos.
Assim Senaqueribe, rei da Assíria, se retirou, e se foi, e voltou, e habitou em Nínive.
E sucedeu que, estando ele prostrado na casa de Nisroque, seu deus, Adrameleque e Sarezer, seus filhos, o feriram à espada; escaparam para a terra de Ararate; e Esar-Hadom, seu filho, reinou em seu lugar. (Isaías 37:36–38; veja também 2 Reis 19:35–37 e 2 Crônicas 32:21)
Esse trecho diz respeito à invasão do Reino do Sul de Judá pelo Império Assírio (que acabara de destruir o Reino do Norte de Israel/Efraim, outro reino israelita), com o cerco da cidade de Jerusalém, a qual, no entanto, o rei assírio Senaqueribe falhou em capturar. É um evento bem atestado tanto pelas fontes bíblicas quanto por fontes assírias.
No caso bíblico, esse acontecimento é celebrado como uma das grandes vitórias do povo de Deus, sendo libertados de um opressor terrível que, durante o cerco à Jerusalém, enviara uma terrível mensagem para amedrontar os moradores da capital de Judá com as consequências de um cerco prolongado:
“Então Eliaquim, Sebna e Joá [oficiais judaítas] disseram ao comandante [assírio enviado por Senaqueribe]: Por favor, fala com os seus servos em aramaico, pois entendemos essa língua. Não fales em hebraico, pois assim o povo que está sobre os muros entenderá.
O comandante, porém, respondeu: Pensam que o meu senhor mandou-me dizer estas coisas só a vocês e ao seu senhor [rei Ezequias de Judá], e não aos homens que estão sentados no muro? Pois, como vocês, eles terão que comer as próprias fezes e beber a própria urina!” (Isaías 36:11–12; a mensagem na íntegra ocupa o inteiro capítulo 36 de Isaías, também transcrita no capítulo 18 de 2Reis e abreviada no capítulo 32 de 2Crônicas)
Então, aqui, vemos a ideia de um surto epidêmico ocorrendo entre cruéis conquistadores imperiais como um juízo divino: porque salvou o povo de Deus da cruel expectativa a que estavam sendo submetidos por um exército hostil.
Em outros casos, o surto de uma doença ocorre contra o próprio povo de Israel, e é interpretado como um juízo divino direcionado a violações da aliança entre Deus e os judeus, especialmente certas práticas correntes de opressão social ou de violência (que é o caso relevante para a humanidade como um todo, uma vez que, quando se fala de outros povos, é apenas esse o critério utilizado para juízos divinos*).
Mas quando a Bíblia Hebraica afirma esse tipo de coisa, ela não está “condenando” as pessoas assim vindo a falecer. Tais mortos DEVEM ser lamentados, e geralmente é ruim que coisas assim aconteçam (falo ‘geralmente’ porque se celebra quando isso providencialmente/por coincidência salva o povo de um opressor feroz como o caso de Senaqueribe).
Não é como se o escritor bíblico quisesse dizer “morreu porque mereceu” ou qualquer coisa assim. É que os ditos juízos são acontecimentos trágicos de caráter coletivo, atingindo toda uma comunidade ou grupo, que serviria seja para tal coletividade reorganizar sua vida social em torno de maior justiça e solidariedade, seja para diretamente salvar os oprimidos daqueles que os oprimem.
Vamos nos concentrar nesse ponto aqui: “serviria seja para tal coletividade reorganizar sua vida social em torno de maior justiça e solidariedade”. Os juízos divinos na Bíblia Hebraica não são primariamente de caráter retributivo, mas sim pedagógico.
Coisas ruins acontecem no mundo, e temos como reagir a isso de várias formas. A ideia é que, durante ou após essas tragédias coletivas que de tempos em tempos ocorrem, o laço comunitário e a retidão individual se fortaleçam, com maior união e cooperação do que antes. Isso pode ou não ocorrer: depende de nossas atitudes e atos. Mais do que uma teoria a respeito do castigo, trata-se de uma prática sobre como lidar com “tempos de Ira”, tempos em que parece que a existência mostra sua face mais negativa para nós.
Talvez você fique incrédulo por achar que nunca ouviu falar disso antes. Mas é que muitos daqueles que falam por aí da Bíblia Hebraica simplesmente a leem de forma muito superficial e mesmo com premissas muito distorcidas. Não deveria ser difícil chegar nas conclusões que estou chegando.
Então, nessa questão do caráter pedagógico, não é coincidência que os relatos bíblicos sugiram que o surto de doença interpretado como juízo divino pare logo após o erro cometido ter sido sanado ou interrompido. Por exemplo, no caso dos assírios, indo de volta para a Assíria e deixando de cercar Jerusalém, a doença parou.
Ou seja: na Bíblia Hebraica, os tais juízos divinos por meio de surtos de doenças (ou outras catástrofes coletivas) na maioria das vezes não são exatamente “castigos”, mas sim “medidas para fazer parar algo errado”. Algo está sendo feito errado por um longo tempo sem que nada aconteça, aí vem tal surto para tentar fazer parar “à força” tal erro (fazendo as pessoas “acordarem” para a realidade e consertar o que está errado). Mas, uma vez parado o erro, não precisa mais continuar o surto.
Um exemplo jurídico para facilitar. Ser preso por ter cometido um crime em algum momento no passado é uma punição. Já uma multa diária de tantos reais por não pagar pensão alimentícia para o filho menor não é uma punição, mas uma forma de coagir o devedor ao cumprimento de sua obrigação para com seus filhos. A maior parte desses juízos divinos coletivos como a Bíblia Hebraica os interpreta é mais paralela ao caso da multa diária até que se pague a pensão do que ao caso de ser preso por um crime passado.
Por outro lado, também não somos exatamente obrigados pela Bíblia Hebraica a considerar quaisquer surtos de doenças como juízos divinos. O motivo é que muitos dos relatos bíblicos desse tipo dizem respeito ao povo de Israel vivendo na terra prometida (ou indo em direção dela) quando havia o santuário ou Templo. Como o relato bíblico entende que a presença divina era muito mais forte e clara entre os judeus nesse período, a cobrança seria maior. Então há uma mudança contextual bem importante nesse sentido que precisa ser levada em consideração e abre margem para uma variedade de posições (de aplicação ou não desse conceito bíblico) a respeito de casos mais distantes desse contexto.
E como já expliquei nesse blog em outras ocasiões (posts [108]-[124]-[125]), não acho que tal discurso a respeito dos juízos divinos implique em alguma causalidade sobrenatural. Dizer que algo é um juízo divino é uma forma de interpretar um acontecimento e informar nossa prática em resposta a tal acontecimento. Não se trata de uma explicação causal para o dito acontecimento. Veja essa discussão bem ilustrativa pelo Rabino Jacques Cukierkorn.
Então, quando pensamos se ou não a pandemia de Covid-19 é um juízo divino, precisamos ter em mente que, se optarmos por ver a pandemia dessa maneira (numa perspectiva de Bíblia Hebraica), o que devemos extrair disso não é uma condenação aos nossos semelhantes (seja por terem uma orientação sexual diferente ou uma religião diferente etc.) nem um julgamento a respeito dos que morreram (ao contrário, pois devemos nos enlutar por eles e ver suas perdas como tragédias).
O que realmente deveríamos extrair disso é o que nós, enquanto humanidade e países específicos e pessoas individuais, podemos fazer melhor para evitar que esse cenário se repita ou para estarmos melhor preparados quando esse tipo de coisa vier a acontecer. Inclusive no que diz respeito à estrutura socioeconômica de nossas sociedades, e mesmo de padrões comportamentais/culturais que aumentem riscos difusos, como o do desenvolvimento de super-doenças. E nessa tarefa devemos usar o melhor da nossa ciência, tanto da natural e da médica quanto da social e da psicológica.
De fato, a grande singularidade dos Profetas Bíblicos (que fez da Bíblia Hebraica uma coletânea tão única) é justamente como eles conseguiram fazer o povo de Israel persistir mesmo diante da ameaça de sua extinção em circunstâncias sociopolíticas extremamente desfavoráveis (veja o post [26]). Conseguiram tal façanha por promoverem um pensamento de longuíssimo prazo (veja posts [24]-[25]). É o tipo de pensamento de que precisamos agora diante do desafio a nós impostos por uma pandemia com essa proporção, dos surtos pandêmicos/epidêmicos que a antecederam no passado recente (HIV-AIDS, ebola, etc.) e dos surtos que ainda haverão de vir….
Infelizmente, no caso do Brasil, principalmente por conta do nosso presidente atual, estamos falhando severamente na reação ao cenário atual e no preparo para o futuro. Estamos sendo severamente julgados por termos colocado um radical de direita em um cargo tão importante, uma vez que, fosse qualquer outro naquela cadeira (da direita à esquerda), o combate à pandemia teria sido muito mais efetivo.
Por fim, o leitor ainda pode estar em dúvida: e aquela ideia de que uma pandemia dessas poderia ser um sinal do fim do mundo? Bem, a Bíblia Hebraica não lida com esse conceito. Um surto pandêmico não pode ser um “sinal do fim do mundo” simplesmente porque, para a Bíblia Hebraica, não há tal “fim do mundo”. O problema é que as pessoas introjetam na Bíblia Hebraica as noções apocalípticas que influenciaram sobremaneira o Novo Testamento cristão.
Os juízos divinos na Bíblia Hebraica ocorrem no curso da história humana e têm uma conotação completamente mundana. Mesmo o único exemplar de literatura apocalíptica que consta da Bíblia Hebraica, o livro de Daniel, também não fala em sinais do fim do mundo, ao contrário, fala de juízos históricos contra as grandes potências imperiais que afligiriam Israel — todas elas passarão enquanto o povo de Deus permanecerá para sempre.
*Note que, no caso dos judeus, a Bíblia Hebraica às vezes afirma que certos juízos vieram contra o povo de Israel por conta da prática de idolatria (uma transgressão cultual/religiosa). Mas ela não cobra essa conta dos demais povos, assumindo que eles têm permissão ou leniência para praticarem culto a outros deuses em algum grau, mesmo que este não fosse o ideal. Então, quando os Profetas Literários (em 15 livros bíblicos) discutem outros povos em termos de tais juízos divinos, eles sempre focam em opressão social e injustiças contra pessoas inocentes ou vulneráveis, um foco que também é usado para o povo judeu. Portanto, a pandemia de Covid-19 NÃO pode ser encarada como um juízo divino ligado a não seguirmos a religião X ou Y.
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