[124] Um darwinista pode falar em Jardim do Éden, Adão e Eva?
Sou darwinista de carteirinha.
Concordo que os organismos vivos hoje existentes no planeta Terra advém de um ancestral comum. Concordo que as semelhanças genotípicas e fenotípicas entre os mais diferentes animais refletem uma genealogia compartilhada (a árvore da vida biológica). Concordo que os seres humanos são um exemplar de primata antropoide tal como orangotangos, chimpanzés e gorilas. Concordo que a linhagem do Homo Sapiens é uma entre outras linhagens de hominínios que existiram nas últimas centenas de milhares de anos, ramificando entre o gênero Australophitecus e o gênero Homo.
Não somente concordo com a teoria da evolução enquanto a explicação para a origem de nossa espécie na “história biológica”, mas também como fornecendo a explicação (em termos de causas remotas) de nosso comportamento e cognição no presente.
Assim, endosso as ciências evolucionistas do comportamento humano (ecologia comportamental humana, psicologia evolucionista, novo evolucionismo cultural) e as disciplinas a elas acessórias (genética comportamental, antropologia física, antropologia ecológica, etologia humana, etc.).
Essa interseção entre ciências humanas e biológicas também faz parte do meu campo de interesses de pesquisa acadêmica (veja por exemplo esses meus artigos e minha dissertação de mestrado, e minha participação em um debate a respeito do tema; também em breve poderão checar minha tese de doutorado) e já tive no passado um blog chamado “Tabula (não) Rasa” onde escrevi vários textos a respeito. Tenho até mesmo um exemplar do “Sociobiology” edição original de 1975 de Edward O. Wilson!
Portanto, penso que o comportamento e a própria mente dos seres humanos podem ser explicados de forma inteiramente naturalista, como é o que penso a respeito de basicamente todo fenômeno encontrado no universo, como já deixei bem claro no post [108].
E no caso humano, para além de uma explicação naturalista, trata-se de uma explicação darwinista, com base na seleção natural daqueles traços cognitivos e comportamentais que maximizam o sucesso reprodutivo (enquanto eu também aceite explicações sociológicas, culturais, etc. como explicarei melhor no próximo post).
Portanto, sou totalmente contra o assim chamado “criacionismo científico” que trata o relato de Gênesis 1–2 como uma descrição da origem da Terra e de suas espécies. E também rejeito o “evolucionismo teísta”, segundo o qual o processo evolutivo seria dirigido por Deus. A evolução é um processo inteiramente naturalista, sem nenhum tipo de causação sobrenatural. Ou seja, simplesmente como é entendida na ciência biológica, assim é que entendo a evolução por seleção natural.
Então, alguns leitores podem estar intrigados: como alguém com credenciais darwinistas tão explícitas pôde fazer já 10 posts a respeito do Jardim do Éden, de Adão e Eva, da serpente e do fruto proibido???
Mas eu pergunto de volta: por que não?
Todos os ensinamentos que essa história dos primeiros capítulos do livro de Gênesis nos trazem, da maneira como os elaborei nos posts precedentes (e que poderia continuar a fazê-lo em muitos posts ainda mais!), NÃO PRESSUPÕEM absolutamente nada que contradiga a teoria da evolução por seleção natural como explicação para o surgimento das várias espécies de organismos vivos e para a ocorrência de comportamento e cognição funcionalmente complexos entre tais organismos (sendo o caso mais complexo conhecido disso o humano, uma das espécies de Grandes Primatas).
Se quiser poder reler tudo o que eu escrevi, e você perceberá que nada do que eu escrevi é tornado falso pelo darwinismo ser verdadeiro. Da mesma forma, também não seria tornado verdadeiro se o criacionismo fosse verdadeiro! Simplesmente o que temos a aprender dos primeiros capítulos do Gênesis, lições profundas sobre a condição existencial humana, que envolvem inclusive o anseio pela plena realização da justiça social em uma terra livre de toda opressão, não é afetado de forma alguma nem pela verdade nem pela falsidade do darwinismo, e nem pela verdade nem pela falsidade do criacionismo.
E entrando no próprio estilo literário da narrativa em questão, já era bem explícito para os judeus (o povo cuja cultura produziu tais textos) vivendo há milhares de anos atrás que tal narrativa está recheada de metáforas, e que no mínimo nem tudo ali poderia ser tomado literalmente. Comentei um pouco disso nos posts [116]-[117]-[118]-[120]-[123].
Talvez a estupefação do leitor advenha do fato de que em alguns posts eu perguntei pela localização do Jardim do Éden ou se a serpente do Éden realmente falava. Mas qual o problema? Nós engajamos nesse tipo de discurso o tempo todo. Você ficaria assustado se eu perguntasse qual a localização da casa de Sherlock Holmes? Talvez você estivesse mesmo com a resposta na ponta da língua: Baker Street, 221B, Londres, Inglaterra!
O exemplo de Sherlock Holmes é ainda mais interessante em termos de Filosofia da Arte e Filosofia da Ficção porque ele nos permite ver inclusive como podemos aprender sobre o mundo real diretamente a partir de “verdades ficcionais” ou “verdades artísticas/literárias”. Se eu quisesse encontrar você em Londres, poderia dar a você como ponto de referência a casa do Sherlock Holmes, e isso poderia ajudá-lo a se localizar NO MUNDO REAL.
Para entender melhor esse zigue-zague entre verdades dentro da arte/ficção e verdades no mundo real, recomendo a brilhante obra “Mimesis as Make -Believe: On the Foundations of the Representational Arts” por Kendall Walton.
O nosso mundo humano, informo ao leitor, é um mundo profundamente literário, artístico, poético, metafórico. Apenas uma formação intelectual muito enviesada em termos de um empirismo científico exclusivo voltado a fenômenos naturais (a questão das “Two Cultures”) que faria alguém tratar grandes obras literárias como simplesmente “mentira”. Provavelmente tal sujeito não entenderá nem mesmo as próprias ciências dada a enorme dimensão teórica e mesmo metafísica (em sentido técnico) delas!
Além disso, como já expliquei no post [108], é inteiramente possível falar mesmo de Deus sob uma visão de mundo inteiramente naturalista. Então se for isso que incomodou o leitor, basta ler o argumento que expus naquele post a respeito da consistência entre Deus, linguagem religiosa e visão de mundo naturalista.
Curiosamente o fato de hoje termos uma explicação científica acurada para o surgimento das mais diversas formas de vida em nosso planeta, numa genealogia na qual o humano está em parentesco mais próximo ou mais distante a cada uma das demais, pode mesmo nos ajudar a apreciar melhor certos aspectos já presentes na narrativa do Éden, por exemplo, que antes do (comer do fruto do) “conhecimento do bem e do mal”, a diferença entre humano e animal era muito mais tênue, como expliquei no post [119]. À luz disso mesmo a estranha ideia de uma serpente falar com seres humanos tem mais sentido do que de outra forma (veja post [116]). Aqui vemos, mesmo que apenas em seus rudimentos e sem nenhuma pretensão de exatidão científica, a ideia de que a transição do animal não-humano ao animal humano foi um processo gradativo a partir de uma origem comum (como muitas outras culturas, muitas delas nativas-indígenas, já entreviam).
Para finalizar, caso o leitor tenha dúvidas a respeito das evidências da evolução, ou de que a seleção natural possa ser uma explicação para o comportamento e mente humanos, recomendo os seguintes livros e/ou artigos:
“Evolução”, Mark Ridley.
“O Maior Espetáculo da Terra”, Richard Dawkins.
“Os Humanos Antes da Humanidade: uma perspectiva evolucionista”, Robert Foley.
“Comportamento Animal: uma abordagem evolutiva”, John Alcock.
“Os Fundamentos da Etologia”, Konrad Lorenz.
“Evolutionary accounts of human behavioural diversity”, Gillian R. Brown, Thomas E. Dickins, Rebecca Sear, Kevin N. Laland.
“Three Styles in the Evolutionary Analysis of Human Behavior”, Eric Alden Smith.
“Sociobiology”, Edward O. Wilson.
“Human behavioral ecology: current research and future prospects”, Daniel Nettle, Mhairi A. Gibson, David W. Lawson, Rebecca Sear.
“Analyzing Adaptive Strategies: Human Behavioral Ecology at Twenty-Five”, Bruce Winterhalder, Eric Alden Smith.
“Evolutionary Psychology: The New Science of the Mind”, David Buss.
“Genética do Comportamento”, Robert Plomin, John DeFries, Gerald E. McClearn, Peter McGuffin.
“Adaptabilidade humana: uma introdução à antropologia ecológica”, Emílio F. Moran.
“Not By Genes Alone: How Culture Transformed Human Evolution”, Peter Richerson, Robert Boyd.
“An Evidence-Based Study of the Evolutionary Behavioral Sciences”, Edouard Machery, Kara Cohen.
“Hunter-Gatherers: Archaeological and evolutionary theory”, Robert L. Bettinger, Raven Garvey, Shannon Tushingham.
“The Lifeways of Hunter-Gatherers: The Foraging Spectrum”, Robert Kelly.
“1. Introduction to Human Behavioral Biology”, Robert Sapolsky.
“Sixteen common misconceptions about the evolution of cooperation in humans”, Stuart A.West, Claire El Mouden, Andy Gardner.
“The Philosophy of Social Evolution”, Jonathan Birch
“A Critical Overview of Biological Functions”, Justin Garson.
“The Biological Foundations of Action”, Derek M. Jones.
E novamente, nada do que está em todos esses livros e artigos de forma alguma me impede de escrever nada do que já escrevi ou escreverei nesse blog!
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