[117] A Serpente do Éden NÃO era Satanás

A Estrela da Redenção
5 min readMay 20, 2021

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No último post comentei sobre as opções, em termos de tradição judaica clássica, de como entender a narrativa de Gênesis 3 na qual uma serpente “falaria” com Eva. Mas talvez o leitor tenha ficado intrigado: e a opção de que Satanás possuiu a serpente e falou por meio da serpente para levar os humanos ao pecado?

De fato, eu não falei dessa opção, por uma razão muito simples: ela é completamente falsa. A ideia de que a serpente do Éden seria um anjo rebelde chamado Satanás (como entendido pelos cristãos) é completamente alienígena e estranha à Torá.

Mas entendo porque muitos leitores de formação cristã tendem a pensar que nessa narrativa apareceria um personagem chamado “Diabo” ou “Satanás”. Trata-se de um equívoco muito difundido na cultura ocidental.

Então é importante esclarecer que esse personagem Satanás NÃO aparece em nenhum lugar da Bíblia Hebraica (vulgarmente conhecida como “Velho” Testamento). O mais próximo disso na Bíblia Hebraica é a figura do Satan, um anjo OBEDIENTE e FIEL a Deus que faz “um trabalho sujo, mas que alguém tem de fazer”: o de acusar os outros de terem feito algo errado.

O termo “satan” no hebraico é um termo genérico para “acusador” ou “adversário”, sendo aplicável a seres humanos ocupando referida função ou status (militar, político ou jurídico) em relação a outra(s) pessoa(s). Aí o anjo que ocupa tal função é chamado de “satan” por conta disso.

A similaridade de nomes obviamente não é coincidência: “Satanás” foi uma derivação do “Satan”, mas que acabou mudando consideravelmente o conceito original.

Enquanto no cristianismo surgiu essa ideia de um inimigo de Deus que luta contra Deus e domina o mundo, o judaísmo e a Bíblia Hebraica (que está na Bíblia Cristã sob o nome de “Velho” Testamento) decisivamente não endossam essa visão, muito pelo contrário pois Satan (que não aparece em Gênesis, mas aparece em Jó e Zacarias) é um ALIADO de Deus!

Agora uma curiosidade que não mencionei explicitamente no post anterior é a de que existe, na tradição judaica, a ideia de que a serpente do Éden seja vista como “o Satan” (não Satanás!). Contudo, essa não é uma visão literal, e sim METAFÓRICA em relação à serpente.

Trata-se da interpretação metafórica de Sforno (1475–1550), baseada em Reish Lakish (~200-~275) no Talmude (Bava Batra 16a), segundo a qual o Satan ele mesmo é uma metáfora para o “yetzer hara”, o nosso “mau impulso”, que nada mais é do que nossos desejos e impulsos normais só que indisciplinados. (Algo similar ao “id” da psicanálise freudiana)

Segundo Reish Lakish no Talmude, Satan, o yetzer hara e o anjo da morte seriam todos a mesma coisa, mas faladas de forma diferente. É “Satan” por seduzir e logo após acusar os assim seduzidos. É “má inclinação” por ser um impulso constante operando no interior do ser humano. É “Anjo da Morte” porque o resultado de ser seduzido e acusado pelo nosso mau impulso interior é a morte. (Estou parafraseando a afirmação de Reish Lakish para facilitar o entendimento do leitor)

Com base nessa ideia de Reish Lakish, Sforno defende que a serpente é uma metáfora para o Satan que por sua vez é uma metáfora para o mau impulso humano, nesse caso o de Adão e Eva, representando o de toda a humanidade. Ou seja, não havia Adão, Eva e uma serpente, mas apenas Adão e Eva, e a capacidade imaginativa destes, passível de ser distorcida (o yetzer hara).

“Adam and Eve”, Marc Chagal (pintor judeu), 1912.

Seu argumento é o seguinte. É comum na Bíblia nomear um fenômeno de acordo com outro fenômeno bem conhecido, por exemplo, quando se chama um “rei” de “leão” pretendendo salientar a força e destemor de um rei, como a de um leão. Assim, o mau impulso é comparado a uma serpente porque a serpente, antes de dar o bote, faz-se tão invisível quanto possível, se camuflando no ambiente, e acaba causando mais dano do que obstáculos mais visíveis. Além disso, serpentes são um animal cujo potencial dano para o ser humano é enorme, enquanto seu potencial benefício é mínimo. De forma similar o mau impulso é insidioso, nos fazendo imaginar que algo seja desejável ou inofensivo enquanto na verdade nos leva à ruína.

Ou seja, não necessariamente seria equivocado considerar que a serpente no Éden fosse o Satan. Mas isso é uma interpretação NÃO LITERAL para a serpente, entendendo também o Satan NÃO LITERALMENTE, como uma metáfora para o impulso desmedido de nossos desejos.

E mesmo se um anjo entendido literalmente, seja o Satan ou outro, tivesse feito a serpente falar com Eva (uma das opções interpretativas que revisamos no post anterior), referida tentação teria por objetivo um TESTE para o ser humano autorizado por Deus, não uma rebelião contra Deus!

Na tradição judaica quando Satan “tenta” alguém, é para testá-lo a pedido do (ou pelo menos com a anuência do) próprio Deus, então Deus e Satan são ALIADOS. Isso é verdade mesmo que, para nós humanos, Satan seja um adversário, pois seu trabalho, apesar de necessário, resulta em males para nós. Ou seja, o trabalho de Satan é um “mal necessário” ou “um trabalho sujo que alguém tem que fazer” na visão judaica. Satan é nosso Promotor Público basicamente.

A ideia de que a serpente no Éden seria Satanás vem do livro de Apocalipse no Novo Testamento cristão, o qual afirma:

“E foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente, chamada o Diabo, e Satanás, que engana todo o mundo; ele foi precipitado na terra, e os seus anjos foram lançados com ele.” (Apocalipse 12:9)

Como já expliquei no post [101], as referências do Novo Testamento a anjos rebeldes (em 1Pedro, 2Pedro, Judas e Apocalipse) se originam na literatura judaico-apocalíptica de 1Enoque, a qual não foi recepcionada pela tradição judaica oral (que mesmo aceitando que anjos podem pecar e que alguns pecaram em alguns casos, não ligam isso a uma rebelião). O livro do Apocalipse no Novo Testamento é um exemplo de literatura apocalíptica judaico-cristã que bebeu nessa ideia de 1Enoque (nem toda literatura apocalíptica judaica o fez; o livro de Daniel, que faz parte da Bíblia Hebraica, não apresenta essa ideia).

Contudo, deve-se destacar que mesmo essa referência explícita à Satanás como a serpente no Novo Testamento cristão talvez seja uma metáfora. Os escritos apocalípticos são intensamente metafóricos, e é fácil confundir aquilo que é metafórico neles como sendo uma afirmação literal. Então talvez o Apocalipse do Novo Testamento empregasse uma ideia similar a de Sforno ao chamar a serpente de ‘Satanás’ (talvez tendo em mente um meio-termo entre o Satan judaico clássico e o Satanás da visão cristã posterior), entendendo Satanás e a serpente como metáforas para o mau impulso humano (talvez com uma contraparte angelical na esteira de 1Enoque).

Independente de quando essa ideia da serpente ser Satanás surgiu no cristianismo (se já no livro de Apocalipse ou apenas na tradição cristã posterior ‘literalizando’ indevidamente essa afirmação do Apocalipse), o fato é que Gênesis 3 é interpretado de forma totalmente errada sob essa chave.

Se você ler Gênesis 3 sem essa ideia de Satanás, e ler a Bíblia Hebraica inteira sem essa ideia de Satanás, garanto a você que tudo fará mais sentido. Acrescentar esse conceito alienígena à Torá resulta em muitas distorções de entendimento. Esse mito de que a serpente fosse Satanás deve ser rejeitado de uma vez por todas.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

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