[119] O Erotismo na Narrativa do Jardim do Éden
Aproveitando a deixa que no post anterior falei sobre Kaballah, a qual é repleta de metáforas eróticas, queria neste post destacar que, mesmo sem precisarmos ir para o nível mais místico-simbólico da Kaballah, é possível encontrar várias camadas eróticas na narrativa do Jardim do Éden e do Fruto Proibido (Gênesis 2–3). O objetivo desse post é discutir esse erotismo presente nas entrelinhas dessa narrativa, como explorado pelos comentaristas judaicos clássicos.
Antes de começar, é preciso descartar uma concepção errônea sobre como o erotismo se faria presente aqui. Algumas pessoas afirmam que o “fruto proibido” seria uma metáfora para o sexo, e que, assim, o sexo seria o pecado que levou à expulsão do jardim. Mas essa posição é incorreta.
Primeiro, a mistvá (preceito) de não comer do fruto proibido era uma mistvá comparável às mitzvot alimentares e agrícolas da Torá dada ao povo judeu. Já expliquei no post [114] qual o sentido por detrás de uma mistvá desse tipo ser estabelecida na narrativa do Éden. Segundo, o sexo não é um pecado na narrativa do Éden, ao contrário! Antes mesmo da mistvá negativa de não comer do fruto proibido ser dada (Gênesis 2:17), já havia sido dada a mistvá positiva de (fazer sexo e) se reproduzir, o famoso “crescei e multiplicai-vos” (Gênesis 1:28). Portanto, essa concepção negativa em relação ao sexo na verdade é uma chave interpretativa equivocada.
De que modo o erotismo presente nessa narrativa pode ser devidamente extraído? Primeiro, você precisa pensar quais são os possíveis elementos eróticos aqui. Talvez isso envolva certo esforço, uma vez que, no Ocidente, a Bíblia (Hebraica) foi associada com “não fazer sexo” ou “anti-erotismo”. Isso é surpreendente considerando que a Bíblia Hebraica tem inúmeras instâncias de poesia e prosa com elementos eróticos. Para exemplos onde isso fica muito claro, basta pegar o livro do Profeta Oséias ou do Profeta Ezequiel, e, claro, o Cântico dos Cânticos, que é INTEIRAMENTE POESIA ERÓTICA (e também o Lugar Santíssimo das Escrituras, segundo rav Akiva; Mishnah Yadayim 3:5).
E quando falo “erótico”, não me refiro a certo erotismo místico “casto”, mas sim erotismo real muito concreto, de pessoas que conhecem o prazer sexual físico. A Bíblia Hebraica é uma coletânea muito carnal nesse sentido. (Outro dia posso fazer um post desenvolvendo isso para cada livro bíblico)
Agora esse erotismo bíblico pode passar facilmente despercebido pelo leitor desavisado porque, enquanto bastante erótica, a Bíblia Hebraica é nada pornográfica. Não encontramos na literatura bíblica termos “vulgares” ou muito explícitos. Muito é deixado à imaginação do leitor. Na história do Éden, isso também é o caso.
Então, que elementos eróticos estariam presentes em Gênesis 2–3? Bem, vamos listá-los:
- Um homem e uma mulher completamente nus em um jardim;
- Esse casal não tem risco de ser avistado por nenhum outro ser humano, pois são os únicos presentes (e de fato os únicos existentes);
- Deus ordena que o casal faça sexo e, com isso, gere muitos filhos;
- O casal é “uma só carne”, o homem “apega-se” à sua mulher (e vice-versa);
- Antes de comer do fruto proibido, eles andam nus na frente um do outro e não se envergonham disso, inclusive andam nus na presença de Deus;
- Apesar de Adão e Eva estarem sozinhos, uma cobra (nua) conversa com Eva (nua) e a seduz (por que?);
- Após comer o fruto proibido, eles passam a ter vergonha de estarem nus na frente um do outro o tempo inteiro, inclusive vergonha de estarem nus na presença de Deus;
- Uma das maldições (?) sobre Eva diz respeito ao desejo dela pelo seu companheiro.
Se você refletir com calma, fica claro que o erotismo está presente a cada passo dessa narrativa. O simples fato dos seus protagonistas estarem a maior parte do tempo completamente nus reforça isso. A narrativa apresenta pessoas que não cobriam absolutamente nada do seu corpo, portanto, com genitais o tempo inteiro à mostra. Tal como os animais não usam nenhum tipo de roupa para cobrir seus genitais, o casal original antes de comer do fruto proibido não usava também. Apenas após comerem que eles vão tentar se cobrir com folhas… e cobriram o que? A única certeza é a de que cobriram os genitais! (vide Hizkuni; Rashbam)
Agora pense: o que geralmente um homem e uma mulher fazem pelados num jardim? Ainda mais quando não existe perigo nenhum de ser pego em flagrante por uma terceira pessoa?
Se o leitor realmente tiver nascido há pouco tempo nesse mundo, basta conferir o Cântico dos Cânticos: ali a imagem geográfica de dois amantes intensamente atraídos sexualmente um pelo outro é localizada em um jardim. E estar no jardim juntos é uma metáfora para transar.
“Que belos são os teus amores, minha irmã, esposa minha! Quanto melhor é o teu amor do que o vinho! E o aroma dos teus ungüentos do que o de todas as especiarias! Favos de mel manam dos teus lábios, minha esposa! Mel e leite estão debaixo da tua língua, e o cheiro dos teus vestidos é como o cheiro do Líbano. Jardim fechado és tu, minha irmã, esposa minha, manancial fechado, fonte selada. Os teus renovos são um pomar de romãs, com frutos excelentes, o cipreste com o nardo. O nardo, e o açafrão, o cálamo, e a canela, com toda a sorte de árvores de incenso, a mirra e aloés, com todas as principais especiarias. És a fonte dos jardins, poço das águas vivas, que correm do Líbano!” (Cânticos 4:12–15)
“Já entrei no meu jardim, minha irmã, minha esposa; colhi a minha mirra com a minha especiaria, comi o meu favo com o meu mel, bebi o meu vinho com o meu leite” (Cânticos 5:1)
Mais claro do que isso?
Agora compare com o Gênesis:
“E plantou o Senhor Deus um jardim no Éden, do lado oriental; e pôs ali o homem que tinha formado. E o Senhor Deus fez brotar da terra toda a árvore agradável à vista, e boa para comida; e a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal. E saía um rio do Éden para regar o jardim; e dali se dividia e se tornava em quatro braços.” (Gênesis 2:8–10)
E note que estamos falando aqui de sexo ao ar livre. Não estamos falando de um “leito conjugal” dentro de uma casa com paredes e privacidade….
Além dessas evidências para o fato de que o casal fazia sexo antes de comer do fruto proibido, ainda temos a posição interpretativa segundo a qual Caim foi concebido e/ou nasceu no Jardim do Éden, antes que Adão e Eva comessem do fruto.
Talvez nesse ponto o leitor ache suspeito, afinal, a história do nascimento de Caim ocorre no capítulo 4, enquanto a de comer do fruto proibido ocorreu no capítulo 3. Contudo, “a Torá não está (inteiramente) escrita em ordem cronológica” (Rashi) é um princípio interpretativo relevante aqui.
E Rashi pontua, com base na gramática do hebraico de Gênesis 4:1, que os acontecimentos ali narrados (Adão fazer sexo com Eva, Eva engravidar e dar à luz a Caim) ocorreram antes da expulsão do jardim. No Talmude também há um midrash nesse sentido (Sanhedrin 38b) e outros comentaristas concordam com isso também (Hizkuni).
Então, sutilmente o texto indicaria que está falando de um acontecimento que ocorreu previamente, mas colocado nessa posição provavelmente porque: 1) permite contar a história de Caim e Abel completa nessa seção, de forma bem organizada; 2) coloca uma nota feliz imediatamente após a expulsão do jardim (um acontecimento triste), com a notícia de 2 nascimentos (um acontecimento feliz).
Dito isso, temos de ir até o encontro decisivo entre Eva e a Serpente, e o que ocorre a seguir com a origem da vergonha relativa à nudez. Os comentaristas judaicos clássicos ressaltam diferentes interpretações bem interessantes para entender essa parte. No caso, estarei focando nos aspectos eróticos que eles apresentam.
Adão e Eva não tinham vergonha de estarem nus. Por que? Diferentes interpretações: 1) eles não podiam distinguir entre o bem e o mal, porque não tinham ainda o “mau impulso” e por isso a modéstia não se aplicava a eles, mas eles já tinham feito sexo (Rashi); 2) eles tinham genitais mas nunca tinham até então desejado usá-los para fazer sexo (Kimhi/Radak); 3) eles eram muito íntimos, como se fossem “uma só carne”, então da mesma forma que ninguém sente vergonha de estar nu quando está sozinho, eles não sentiam tal vergonha um com o outro tamanha a intimidade que tinham (Abravanel).
Eva se encontra sozinha com a serpente. Por que? Porque Adão estava dormindo após ela e ele terem tido relação sexual (Hizkuni; Midrash Genesis Rabbah).
A árvore do conhecimento do bem e do mal confere que tipo de “conhecimento”? Diferentes interpretações: 1) da diferença entre bom e ruim no geral (Rashi); 2) do desejo sexual (Kimhi/Radak); 3) da diferença entre bom e ruim no que diz respeito ao desejo sexual (Ibn Ezra); 4) do desejo e da “vontade” num sentido geral, isto é, ao invés de fazer tudo automaticamente da forma apropriada mas sem nenhuma emoção, agora o ser humano teria diversas escolhas entre bem e mal, e isso só é possível quando há prazer ou desprazer em fazer as coisas (Ramban/Nachmânides); 5) da habilidade de escolher algo prazeroso mesmo se ruim para si e de rejeitar algo desprazeroso mesmo se benéfico para si (Sforno).
Quando comeram do fruto proibido, porque é dito que “seus olhos se abriram” e viram que estavam nus, e sentiram vergonha?
Rashi e Ramban aqui optam por uma interpretação completamente metafórica: Adão e Eva se viram “nus” da sua “mistvá”, isto é, se desfizeram daquele preceito que os amparava (Rashi) e o “viram” diz respeito à sabedoria, não literalmente visão (Ramban).
Kimhi/Radak entende a “abertura dos olhos” não como uma mudança no que viram, mas em como passaram a entender o que viam: o desejo sexual abruptamente surgiu neles ao comerem do fruto e suas genitálias sofreram uma excitação repentina. Por isso eles se envergonharam: Adão pela ereção involuntária do pênis e Eva pela intumescência e lubrificação involuntárias da vagina.
Ibn Ezra segue um entendimento similar ao do Radak: eles cobriram sua nudez porque seu desejo sexual foi estimulado por comer do fruto proibido, comparável ao alcance da puberdade por um garoto: na mesma idade em que ele começa a ser capaz de saber o que é certo e o que é errado, ele também passa a ter desejo sexual.
Aqui cabe dar uma pausa para explicar melhor a diferença em jogo entre os comentaristas clássicos.
Todos os comentaristas concordam que o “conhecimento do bem e do mal” proporcionado pelo fruto proibido diz respeito a uma maturação completa num sentido físico e mental dos humanos envolvidos (o que inclusive reforça o paralelo que fiz do fruto proibido do Éden com o preceito posteriormente dada ao povo judeu relativo ao fruto proibido dos primeiros 3 anos de uma árvore na terra prometida, que se relaciona à maturação das árvores, explicado no post [114]). A discordância deles está em como eles interpretam referida maturidade alcançada pelo casal primordial ao comer do fruto proibido.
Radak e Ibn Ezra seguem uma linha de raciocínio segundo a qual a árvore do conhecimento do bem e do mal diz respeito à maturação completa do ser humano num sentido físico e mental comparável ao alcance da puberdade pela maioria dos seres humanos.
Como Adão e Eva não nasceram a partir de uma gravidez, a passagem deles da infância à puberdade ocorreu por comerem do fruto do bem e do mal. Assim, tal como um menino só passa a ejacular na puberdade e uma menina só passa a menstruar na puberdade (de fato, a primeira ejaculação e a primeira menstruação são marcos iniciais da puberdade), Adão e Eva só passaram a ejacular e menstruar após comerem do fruto proibido. E assim entrando na puberdade tiveram uma explosão hormonal, com a libido adolescente padrão. Por isso, esses comentaristas entendem que Adão e Eva apenas tiveram relações sexuais após comerem do fruto proibido. Por fim, Adão e Eva obtiveram uma consciência mais madura do bem e do mal, junto à aquisição da libido púbere, tal como ocorre na puberdade padrão (enquanto esse aspecto se encaixa melhor em Ibn Ezra, uma vez que, para Radak, seria possível dizer que mesmo antes de comerem do fruto proibido Adão e Eva eram capazes de entender o bem e o mal num geral).
Dessa forma fica claro porque Radak e Ibn Ezra enfatizam o aspecto sexual da maturação. É o surgimento dessa libido púbere (com as transformações corporais associadas em termos de ejaculação, menstruação etc.) que sinaliza fisiologicamente o advento da puberdade humana. A mudança psicológica (em termos de uma consciência maior do bem e do mal no geral) seria uma consequência disso.
Rashi e Ramban seguem uma linha de raciocínio segundo a qual a árvore do conhecimento do bem e do mal diz respeito à maturação completa do ser humano num sentido físico e mental comparável à diferença entre um animal adulto (ou púbere) e um humano adulto (ou púbere). Os animais fazem sexo entre si, alcançando plena maturidade sexual, mas nunca alcançam plena maturidade intelectual, no sentido de entender o certo e o errado como os humanos conseguem. Por conta disso, ambos enfatizam o conhecimento do bem e do mal num sentido mais geral da expressão, não restrito ao campo sexual. Por isso, eles entendem que Adão e Eva já faziam sexo antes de comerem do fruto proibido.
Ou seja, no quesito sexual, Adão e Eva já tinham corpos maduros, mas sua consciência ainda não tinha a maturidade da consciência do bem e do mal que é alcançada na puberdade padrão. Antes de comer do fruto proibido, Adão e Eva eram crianças apenas no sentido de não entenderem o bem e o mal, mas eram adultos no sentido de serem plenamente capazes de fazer sexo, porque eles eram mais próximos de animais adultos (ou púberes) do que de um humano adulto (ou púbere). Assim como os animais são equiparáveis a uma criança na questão do entendimento do bem e do mal, assim eram Adão e Eva, mas eles transavam tal como os animais copulam.
Um ponto importante aqui é que no idioma hebraico, quando se fala que “alguém conheceu sua mulher” (o que é falado de Adão em relação à Eva na sequência da narrativa que estamos examinando), esse “conheceu” significa “sexualmente” (isto é, teve relações sexuais). Isso permite um paralelo com a árvore do “conhecimento do bem e do mal”, que nesse sentido pode ser entendida como adquirir “o bem e o mal de conhecer sexualmente alguém”. Então o uso do termo “conhecimento” para o fruto proibido permite essas duas interpretações, uma sexual e uma mais geral (que inclui a sexual).
Dito isso, Ramban especificamente desenvolve um meio-termo entre as posições de Rashi e a de Radak e Ibn Ezra: para ele, o conhecimento do bem e do mal diz respeito primordialmente a um conhecimento em sentido geral, e Adão e Eva já faziam sexo, contudo, antes de comerem do fruto proibido, as ações humanas eram relativamente “automáticas”, no sentido de que o ser humano tendia a fazer certas coisas sem precisar sentir prazer ou qualquer outra emoção com isso. Era como se o ser humano agisse sob uma base instintiva similar a dos animais (mas dotado de fala e raciocínio). Quando eles comeram do fruto, eles obtiveram pela primeira vez “desejos” e “vontades” num sentido geral, obtendo prazer e desprazer de fazer as coisas, ou seja, uma camada psicológica a mais lhes foi acrescida na sua interação com o ambiente. Isso também afetou o campo sexual: agora a sexualidade humana seria diferente da animal, não mais baseada num instinto reprodutivo apenas, mas na tensão entre uma escolha deliberada e um desejo em si mesmo “incontrolável”. Antes suas genitálias eram como qualquer outra parte de seu corpo (tal como para os animais); agora, as genitálias eram um lugar especial de prazer.
Essa dicotomia entre uma interpretação mais baseada na diferença entre infância x puberdade e uma mais baseada na diferença entre animal x humano também permite explicar alguns aspectos estranhos dos comentários feitos por alguns desses rabinos.
Rashi afirma que Adão tentou ter sexo com cada um dos animais trazidos a ele (para que ele os nomeasse), mas não conseguiu satisfação disso, um entendimento que compreensivelmente gerou polêmica entre os exegetas judaicos à época (“The Reception of Rashi’s Commentary on the Torah In Spain: The Case of Adam’s Mating with the Animals,” Eric Lawee, 2007). Como precedente, essa também era a opinião do rabbi Elazar no Talmude (Yevamoth 63a), segundo o qual Adão teve relações com cada animal (fêmea) na procura de uma parceira adequada mas não se sentiu satisfeito até que encontrasse Eva!
Já Ramban comenta menos estranhamente que Adão verificou cada animal para ver se havia algum com o qual ele pudesse ter relações sexuais, contudo, não encontrou nenhum que pudesse ser um par para si. A razão disso é que Adão, criado interssexual, era um organismo duplo capaz de reprodução consigo mesmo (uma metade dele inseminaria a outra metade). Então foi necessário separar as duas “metades” para que surgisse um macho (Adão) e uma fêmea (Eva) tal como no caso de todos os animais que ele havia inspecionado.
Agora se o leitor acha tudo isso estranho, é preciso ter em mente que Rashi e Ramban operam com a premissa de que a distinção entre o humano e o animal foi desenvolvida gradativamente. Antes de Adão e Eva comerem do fruto proibido, ambos eram mais próximos aos animais do que aos humanos tal como conhecemos depois disso. E quanto mais para o caso de Adão antes de Eva.
Essa opinião sobre Adão poder (tentar) ter relações com os animais deve ser entendida literalmente? Temos comentadores que entendem que a proibição da zoofilia só veio após a criação de Eva (Divrei Dodi), enquanto outros entendem que essa tentativa de Adão em ter relações sexuais com animais seria figurativa apenas (Gur Aryeh, Maharsha, e vários outros).
Essa maior proximidade entre humanos e animais antes do fruto proibido ser comido nessa narrativa também é espelhada na ideia de que a Serpente era invejosa de Adão, e queria Eva para si, para ter Eva como sua mulher! (Rashi; Radak) E igualmente a opinião de que a serpente teria tentado ou teria tido relações com Eva (Rabbi Yohanan em Shabbat 146a; comentário de Rashi para esse trecho do Talmude).
(Mas lembre que essa opinião sobre a serpente tentar relações sexuais com Eva pode ser vista mais plausivelmente como figura de linguagem, tal como a do caso de Adão tentar relações sexuais com os animais, e essa visão figurativa é a opinião da maioria)
Nesse sentido, Bekhor Hor entende a pergunta divina ao casal “quem disse que vocês estavam nus?” (Gênesis 3:11) como partindo do seguinte raciocínio: ninguém diz que um animal está nu, porque animais não vestem roupas, então quem disse a vocês que vocês precisavam se vestir? Dito de outro modo, o que Bekhor Hor quer dizer é que “precisar se vestir” é a pré-condição para se entender a si mesmo e a outros como estando “nus”, uma vez que, sem a necessidade social de algum vestuário, não existe nudez propriamente (tal como no caso dos animais). Então mais uma vez vemos que, na necessidade de ter algum tipo de vestimenta (mesmo que mínima), os humanos se diferenciaram ainda mais dos animais, tudo isso após comer do fruto proibido.
Para finalizar, ainda precisamos analisar o seguinte verso:
“E à mulher disse: Multiplicarei grandemente a tua dor na gravidez; com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará.” (Gênesis 3:16)
Essa passagem é famosa por muitos entenderem que aqui a Bíblia defenderia uma submissão completa da esposa ao marido, mas a questão na verdade é mais complexa.
Rashi afirma que a referência ao desejo aqui diz respeito a um forte desejo sexual nas mulheres, contudo, os homens terão mais auto-confiança e desinibição de expressar seus desejos do que as mulheres.
Ramban afirma que a referência ao desejo aqui diz respeito ao desejo sexual feminino torná-la atraída pelo seu marido ao ponto que ela não temerá nem mesmo a dor da gravidez e do parto. Isso acabaria levando também a mulher a querer ficar junto de seu marido mesmo quando este a trata mal. Mas note que essa submissão é uma consequência possível apenas.
Bekhor Hor entende a referência ao desejo no sentido de que, apesar das dores da gravidez e do parto, o desejo sexual feminino não permitirá que se ignore a mistvá da reprodução.*
Abravanel entende que é como se Deus dissesse para Eva: “você só pode ter feito isso por uma de três razões, 1) sexo, 2) filhos, 3) conseguir o homem que você ama”. Então a punição corresponderia a todos esses três aspectos ligados. Parafraseando, a ideia seria que o desejo mais primário por sexo leva ao desejo de conseguir o seu amado e ter filhos com ele, e disso resultará a gravidez. Mesmo que dolorosa a gravidez e o parto, passar por essa dor será aceito — e mesmo desejado — por ser vinculado a esses 3 objetos de desejo: sexo, filhos e o homem amado.
Ibn Ezra apenas que entende a referência ao desejo de uma maneira não-sexual, como dizendo respeito a uma obediência geral da esposa ao marido. Mas note que, para entender dessa maneira, Ibn Ezra é obrigado a interpretar não literalmente o vocábulo usado.
Dessa forma, vemos que na verdade — como para todas as maldições bíblicas — há uma bênção oculta por detrás. No caso da punição para o homem, referente ao trabalho mais difícil em obter o fruto da terra, já falei no post [114] qual seria essa bênção.
No caso da mulher, curiosamente, parece que a bênção oculta está numa maior intensidade (ao menos em potencial) da atração erótica e do prazer sexual por parte das mulheres, para assim compensar a dor da gravidez e do parto (sendo a adequada estimulação do prazer feminino indispensável no ato sexual praticado de forma adequada, como determinado pela própria Jurisprudência Judaica). Pense que o clitóris tem como função exclusiva dar prazer para a mulher no ato sexual, não sendo necessário para que a mulher consiga reproduzir…
Assim, nesse pequeno passeio pela parte inicial da história bíblica, vemos o quão saturadas de alusões, metáforas, conotações, e referências ao sexo e ao erotismo estão essas páginas — aparentemente inocentes — do Jardim do Éden e do Fruto Proibido.
*Sobre a interpretação da “punição” dada à Eva, é importante esclarecer que, para a Halacha (Jurisprudência Judaica), essa mistvá da reprodução seria obrigatória apenas para os homens, então a ideia é que o desejo sexual feminino vem estimular as mulheres a colaborarem ao cumprimento dessa mistvá voluntariamente. Ou seja, sendo a dor da gravidez e do parto um desincentivo a cumprir essa mitsvá, o desejo sexual feminino com o concomitante prazer feminino no sexo (orgásmico ou não) serviria de incentivo para aceitar referida experiência dolorosa necessária ao cumprimento da mistvá da reprodução.
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