[131] Pode um vírus ser um anjo?
Como comentei no post anterior, o “anjo” na Bíblia não é uma categoria ontológica de ser místico, mas sim uma categoria funcional relativa a uma função/tarefa, que é aplicada a qualquer que seja o ser que cumpra a função/tarefa em questão.
O motivo é que, em hebraico, existe apenas o termo “malakh” (mensageiro), que qualifica aquele que envia uma mensagem ou é enviado por alguém. O termo é puramente mundano, relativo a uma profissão que existia na região do Crescente Fértil. Esses eram os anjos, geralmente a serviço de chefes militares, reis e outras figuras de liderança. Aí por extensão dizia-se que o Deus de Israel também tinha seus mensageiros/anjos, que poderiam ser desde seres humanos a seres místicos, e mesmo… vírus/bactérias ocasionadoras de doenças?
Observe o seguinte relato repetido em 3 livros bíblicos diferentes:
“Então saiu o anjo do Senhor, e feriu no arraial dos assírios a cento e oitenta e cinco mil deles; e, quando se levantaram pela manhã cedo, eis que todos estes eram corpos mortos.
Assim Senaqueribe, rei da Assíria, se retirou, e se foi, e voltou, e habitou em Nínive.
E sucedeu que, estando ele prostrado na casa de Nisroque, seu deus, Adrameleque e Sarezer, seus filhos, o feriram à espada; escaparam para a terra de Ararate; e Esar-Hadom, seu filho, reinou em seu lugar. (Isaías 37:36–38; veja também 2 Reis 19:35–37 e 2 Crônicas 32:21)
Esse trecho diz respeito à invasão do Reino do Sul de Judá pelo Império Assírio (que acabara de destruir o Reino do Norte de Israel/Efraim, outro reino israelita), com o cerco da cidade de Jerusalém, a qual, no entanto, o rei assírio Senaqueribe falhou em capturar. É um evento bem atestado tanto pelas fontes bíblicas quanto por fontes assírias.
No caso bíblico, esse acontecimento é celebrado como uma das grandes vitórias do povo de Deus, sendo libertados de um opressor terrível que, durante o cerco à Jerusalém, enviara uma terrível mensagem para amedrontar os moradores da capital de Judá com as consequências de um cerco prolongado:
“Então Eliaquim, Sebna e Joá [oficiais judaítas] disseram ao comandante [assírio enviado por Senaqueribe]: Por favor, fala com os seus servos em aramaico, pois entendemos essa língua. Não fales em hebraico, pois assim o povo que está sobre os muros entenderá.
O comandante, porém, respondeu: Pensam que o meu senhor mandou-me dizer estas coisas só a vocês e ao seu senhor [rei Ezequias de Judá], e não aos homens que estão sentados no muro? Pois, como vocês, eles terão que comer as próprias fezes e beber a própria urina!” (Isaías 36:11-12; a mensagem na íntegra ocupa o inteiro capítulo 36 de Isaías, também transcrita no capítulo 18 de 2Reis e abreviada no capítulo 32 de 2Crônicas)
Agora note que o relato bíblico afirma que a salvação de Jerusalém veio de um grande número de mortes não-violentas ocorridas em um acampamento militar, o que fortemente induz a pensar que se está falando de uma ‘praga’, ou, na nossa linguagem, de uma doença que atingiu o acampamento assírio, forçando seu exército a desfazer o cerco de Jerusalém.
Já na antiguidade o historiador grego Heródoto afirmara que a campanha da Assíria contra o Egito (do qual fazia parte a campanha da Assíria contra Judá) havia sido frustrada por algum tipo de doença relacionada a ratos acometendo o exército assírio.
Um fundamentalista religioso atualmente afirmaria que o objetivo do relato bíblico seria dizer que havia um ser místico que entrou no acampamento militar assírio e causou neles essa doença (ou outra doença). Mas tal leitura sobrenaturalista é desnecessária com base no próprio texto.
O que o texto está dizendo é simplesmente que uma doença matou milhares de soldados assírios. Sim, o texto fala que “o anjo do Senhor fez isso”, mas essa é a forma do texto expressar que uma epidemia ocorreu naquela ocasião. Basicamente, trata-se de uma figura de linguagem.
E tal figura de linguagem faz sentido com a própria natureza do “anjo” enquanto um tipo de função/tarefa, não um tipo de ser: a doença em questão É o “anjo”, pois satisfaz a função de ser um anjo (isto é, um mensageiro cumprindo uma tarefa). Ou, com uma linguagem mais atual, o causador da doença, seja a bactéria ou o vírus, é que exerce o papel de anjo nesse caso.
Note que atribuir o papel de “anjo” a uma bactéria ou vírus ocasionadores de doenças não ocorre apenas nesse caso de Isaías/Reis/Crônicas. O mesmo linguajar é utilizado, por exemplo, no livro de Êxodo, com a praga da morte dos primogênitos egípcios (Êxodo 12:21–31), e no livro de [2]Samuel, com um episódio explicitamente referido como ‘uma peste’ e, em seguida, como obra angelical:
“Então enviou o Senhor a peste a Israel, desde a manhã até ao tempo determinado; e desde Dã até Berseba, morreram setenta mil homens do povo.
Estendendo, pois, o anjo a sua mão sobre Jerusalém, para a destruir, o Senhor se arrependeu daquele mal; e disse ao anjo que fazia a destruição entre o povo: Basta, agora retira a tua mão.” (2 Samuel 24:15,16)
Dessa forma, podemos concluir que, por vezes, mesmo seres completamente desprovidos de consciência, como bactérias e vírus, podem ser ‘anjos’, não porque se tornem seres místicos, mas porque realizam a função angelical.
Mas certamente essa discussão toda sobre bactérias, vírus e doenças pode deixar o leitor com a pulga atrás da orelha, afinal, estamos vivendo uma pandemia atualmente, a da Covid-19. Como poderíamos relacionar a pandemia ao que eu disse aqui? É possível fazer tal conexão? Esse será o objeto do próximo post.
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