[130] Existem mesmo anjos na Bíblia Hebraica?

A Estrela da Redenção
5 min readJun 23, 2021

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A pergunta que dá título a esse texto pode soar estranha. Afinal, não é meio óbvio que, para a Bíblia Hebraica (vulgarmente conhecida como “Velho” Testamento), anjos não só existem como são citados várias vezes?

Bem, por incrível que pareça, na verdade a resposta a essa pergunta tem muito mais nuances do que se pensa à primeira vista. O motivo é que, quando hoje falamos em “anjos”, pensamos numa categoria ontológica, de ser místico/mitológico, mas tal categoria NÃO existe como tal na Bíblia Hebraica, que na verdade concebe “anjos” como uma categoria funcional, de uma função desempenhada.

O leitor talvez já tenha ouvido falar que, no original, “anjo” significa “mensageiro”. Talvez tal informação esteja no seu disco rígido, mas você nunca processou totalmente as implicações disso (ou não tenha recebido outras informações referentes ao hebraico para ligar os pontos). A questão é que não é apenas que “anjo” signifique “mensageiro”. É que, em hebraico, se fala APENAS em “mensageiro” (malakh [מַלְאָךְ‎]), deixando àquele que lê a tarefa de determinar se o mensageiro em questão é um ser humano, um ser místico/mitológico ou mesmo alguma outra coisa.

Um exemplo instrutivo é encontrado no livro de Gênesis. Observa o seguinte trecho, de quando Jacó está voltando para Canaã, mas temendo reencontrar seu irmão:

“Jacó também seguiu o seu caminho, e encontraram-no os anjos de Deus.
E Jacó disse, quando os viu: Este é o exército de Deus. E chamou aquele lugar Maanaim.
E enviou Jacó mensageiros adiante de si a Esaú, seu irmão, à terra de Seir, território de Edom.” (Gênesis 32:1–3)

Note que aqui a tradução tomou algumas escolhas por você. Jacó primeiro encontra “anjos”, e daqui a pouco envia “mensageiros”, fazendo com que entendamos que os primeiros seriam seres místicos, enquanto os segundos seriam seres humanos. O problema é que, no hebraico, você pode ler ambos os casos como se referindo ao mesmo tipo de ser, pois é exatamente o mesmo termo sendo usado. Reescrevendo com o hebraico apropriado:

“Jacó também seguiu o seu caminho, e encontraram-no os malake [מַלְאֲכֵ֥י] de Deus.
E Jacó disse, quando os viu: Este é o exército de Deus. E chamou aquele lugar Maanaim.
E enviou Jacó malakim [מַלְאָכִים֙] adiante de si a Esaú, seu irmão, à terra de Seir, território de Edom.” (Gênesis 32:1–3)

O comentarista judaico clássico Rashi entende que, aqui, ambas as referências são ao que hoje chamamos de “anjos”, isto é, a um ser místico enviado de Deus (a mesma opinião também consta do Midrash Bereishit Rabbah). A ideia seria que Jacó encontrou os anjos no caminho de volta à Canaã e aproveitou para pedir que fossem falar com seu irmão, Esaú. O motivo para entender que Jacó quis enviar anjos para Esaú?

Para o Mizrachi, Rashi simplesmente quis manter a consistência entre a primeira parte do trecho (que finaliza a parashá Vaietsê) e a segunda parte do trecho (que inicia a parashá Vayishlach), então, se a primeira parte referia a anjos, a segunda também.

Para Levush Haorá, Jacó teria um motivo plausível para fazer isso, o de intimidar Esaú, levando este a pensar: “Meu irmão é tão poderoso a ponto de ter uma hoste de anjos sob seu controle? Certamente, eu não serei capaz de superá-lo.”

Já o Likutei Sichot (vol. 5, p. 389; em Chumash-Gutnick Gênesis, p. 224–225), discutindo as posições acima a respeito da posição de Rashi, entende a razão da seguinte forma: como havia um risco de que Esaú quisesse ainda matar Jacó (o motivo que levara Jacó a passar décadas fora de Canaã), talvez Esaú pretendesse matar mesmo os próprios enviados de Jacó. Então, enviando um ser místico, não haveria risco de que um inocente morresse por conta dessa rixa entre irmãos!

Dentro dessa mesma interpretação, alguns mesmo vão ao ponto de discutir como teria sido esse envio de seres místicos feitos por Jacó a Esaú. O Maguid de Mezritch afirma que Jacó enviou o ‘mamash’ dos anjos, os corpos angelicais, mas manteve as ‘almas’ angelicais consigo. O Likutei Sichot (vol. 5, p. 392; vol. 10, p. 101; em Chumash-Gutnick Gênesis, p. 225) entende que o ponto do Maguid de Mezritch não seria que Jacó literalmente dividiu o corpo da ‘alma’ de cada anjo, mas sim uma metáfora para o fato de que os anjos eram totalmente leais a Jacó (que, nesse sentido, ‘retinha’ suas almas).

“Promenade d’Élisabeth” [Passeio de Elizabeth], Endre Rozsda, 1946.

Outros comentaristas judaicos (Ibz Ezra, Abravanel) já entendem da maneira como a tradução para o português entendeu, distinguindo entre os primeiros mensageiros como sendo seres místicos, e os últimos mensageiros como humanos.

Gersonides levanta a hipótese de que os primeiros mensageiros fossem sim humanos tanto quanto os mensageiros enviados por Jacó a Esaú. Os “mensageiros de Deus” seriam profetas daquela época. Para esse comentarista judaico, seria essa hipótese a mais plausível considerando que o texto não informa que Jacó estivesse no meio de uma visão profética.

Essa posição de Gersonides faz eco ao fato de que, no livro de [1]Crônicas, os profetas são chamados de mensageiros de Deus:

“E o Senhor Deus de seus pais, falou-lhes constantemente por intermédio dos mensageiros [malacav (מַלְאָכָ֖יו)], porque se compadeceu do seu povo e da sua habitação.
Eles, porém, zombaram dos mensageiros [bemalcav (בְּמַלְאֲכֵ֣י)] de Deus, e desprezaram as suas palavras, e mofaram dos seus profetas; até que o furor do Senhor tanto subiu contra o seu povo, que mais nenhum remédio houve.” (2 Crônicas 36:15,16)

O próprio Rashi, em seu comentário para Números 20:16, menciona esse trecho de Crônicas para destacar que os profetas podem ser entendidos como “anjos”, mensageiros de Deus.

Ou seja, nesse trecho de Crônicas, nós muito bem podemos ler a palavra “anjo” em todos os momentos. E ainda assim os tais “anjos” são tão humanos quanto eu e você.

Portanto, o que podemos concluir desse exemplo ilustrativo é que, no hebraico, não há diferença substancial entre chamar um ser místico de “anjo/mensageiro” e chamar um ser humano de “anjo/mensageiro”. Isso porque “malakh” designa uma FUNÇÃO EXERCIDA, não a natureza do ser em questão. A função do anjo é a de alguém que envia mensagens, geralmente as mensagens de um líder ou rei. Um líder humano tem “anjos” a seu dispor, isto é, outros seres humanos incumbidos de enviar uma mensagem. Deus também tem “anjos” a seu dispor, mas podem ou não ser humanos exercendo tal cargo no caso das mensagens divinas. Se escrevêssemos a Bíblia hoje em dia, é como se os anjos fossem os carteiros daquela época. E obviamente não é essencial para ser um carteiro que se seja alguma criatura mística ou mitológica!

Assim, na Bíblia Hebraica, QUALQUER COISA pode ser um anjo desde que satisfaça a função angelical, isto é, esteja apto a entregar uma mensagem divina ou realizar alguma tarefa proveniente “de cima”. Não precisamos necessariamente pensar que se trate de um ser místico, enquanto também seja possível pensar dessa forma. E no próximo post irei abordar como, em certas circunstâncias específicas, mesmo seres sem nenhuma consciência podem satisfazer a função ‘angelical’ de que as Escrituras Judaicas falam.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

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