[142] Naum + Jonas: sonhando com o fim de toda opressão
No post [139] propus que fizéssemos uma leitura conjunta entre os livros de Naum e Jonas como um caso de estudo bem interessante da Profecia Israelita Clássica, em relação à maneira como os Profetas Literários fazem questionamentos existenciais e críticas sociopolíticas de maneira bem impactante. Dediquei o post [140] para falar de Naum sozinho e o post [141] para falar de Jonas sozinho. Agora é o momento de fazer a leitura conjunta proposta entre Naum e Jonas.
O interessante dessa dobradinha é que tanto Naum e Jonas abordam um período bem crucial para o povo judeu em geral, na qual havia muitos motivos para perder toda a esperança na sobrevivência israelita. O motivo era a ameaça do Império Assírio, com uma política de expansionismo imperial altamente agressiva, incluindo crueldade na guerra (com tortura de prisioneiros) e deslocamentos forçados de populações para diferentes regiões (exílios).
Então, por trás da poesia de Naum e da prosa/parábola de Jonas, estão sentimentos humanos muito vivos: indignação, medo, raiva, (des)esperança, dúvida, ansiedade, etc. Além disso, também estão em jogos realidades sociopolíticas muito presentes na história das civilizações: a guerra, a opressão social, o exílio, a violência, a resistência à opressão e ao imperialismo, as relações internacionais, violações do que hoje entendemos como “direitos humanos” e sua reparação etc.
Mas a proposta desses livros é diferente: pois o profeta Naum imagina o Império Assírio sendo destruído numa cacofonia espetacular de armas e ataques, enquanto o autor de Jonas imagina o Império Assírio “se convertendo do seu mau caminho” e por isso sendo poupado da destruição da qual Naum falara.
Naum foca na expectativa de que o opressor feroz haverá de ser derrotado e destruído. A opressão não vai durar para sempre — porque o império da vez que a promove desaparecerá. Com isso elabora um modelo de esperança e resistência: se os opressores passarão inevitavelmente NO FUTURO, então é possível alegrar-se mesmo quando a opressão está no seu pico, por mais paradoxal que isso seja, e daí tirar forças para resistir-lhe NO PRESENTE.
Então vemos em Naum mais uma vez o papel do pensamento de longuíssimo prazo em prol das gerações futuras como o caráter mais distintivo do pensamento profético. A solidariedade intergeracional é crucial para que isso funcione, e daí o grande peso até hoje conferido pelo judaísmo à continuidade histórica de suas comunidades sanguíneas.
Se vivermos apenas para nós mesmos, é fácil se desesperar, pois a vida humana é um sopro. Mas quando vivemos também em favor de outros, inclusive para outros que existirão muitas gerações depois em um elo contínuo, é possível transcender os limites de uma vida individual, para vivê-la “de geração em geração”, “na eternidade”. Eternidade esta não como uma qualidade metafísica ou mitológica da pessoa individualmente considerada, mas sim como participação histórica e sociopolítica em um projeto transindividual de redenção humana (com a libertação de toda opressão).
Isso não se trata de uma anulação do indivíduo, entretanto. A tradição judaica oral posterior aos Profetas vai enfatizar a relevância do indivíduo sob o símbolo do “mundo vindouro”. Existencialmente falando, cada um terá sua porção no mundo vindouro na medida de suas contribuições — i. e. a colaboração individual para esse Grande Projeto conta, o indivíduo não se perde no Todo. Mas a recompensa (o “descontar” dessa porção) é transindividual, a recompensa de uma pessoa é dada não somente na sua vida, mas na vida de outras também, até que venha a redenção final, construída por incontáveis atos de resistência e de justiça, como prescritos pela Torá.
Então, em face da libertação tão ansiada, Naum pode se alegrar mesmo que, racionalmente falando, fosse mais fácil perder toda a esperança. Sua esperança está na Ira Divina contra aqueles que cometem injustiça e opressão contra os outros. A ira libertadora de Deus é sua solidariedade para com o que sofre, para com o oprimido e o aflito.
Esse é o gancho com que podemos ir para o livro de Jonas. Aqui o escritor de Jonas (que não foi o próprio profeta, mas outra pessoa que fez uma parábola sobre Jonas) retrata o profeta Jonas como ansiando também pela ira libertadora de Deus. E a mensagem que Jonas carrega até Nínive a capital do Império Assírio é uma mensagem de Ira, de destruição daquela cidade como Naum celebrara.
Mas o escritor desse livro quis virar o jogo aqui, tentando imaginar o que aconteceria se os assírios voltassem atrás de sua opressão e injustiça, e se humilhassem perante o Deus que vindica os oprimidos. O livro de Jonas propõe que, caso isso acontecesse, haveria uma chance dos assírios serem poupados da destruição que trouxeram sobre si mesmos ao afligirem tantos povos.
E ali o profeta Jonas é retratado como protestando contra tal misericórdia divina. Afinal, os assírios oprimiram tanto os israelitas como outros povos da região, então que venha a Ira! Mas a Ira é afastada pelo opressor parando sua opressão, e buscando ativamente desfazê-la.
Então, em contraponto a Naum, o livro de Jonas apresenta outra alternativa: a opressão pode parar não só pela destruição final do opressor, mas pelo opressor deixar de sê-lo, “destruindo” suas obras más (e a parte de si mesmo que se entregou à injustiça) e ajudando na reconstrução de um mundo ao qual ele mesmo ajudou a destruir.
Dessa maneira, tanto Naum como Jonas sonham com o fim de toda a opressão — mas o livro de Jonas propõe provocativamente que esse fim da opressão pode não ser como esperaríamos com base em nossa justa indignação. Se ao menos o forte pudesse abdicar de prejudicar o mais fraco, assim conseguiríamos promover a reconciliação universal que evitaria os grandes males da presente condição humana, em grande parte causada pelo abuso de poder contra os mais vulneráveis.
Por isso o livro de Jonas chama atenção ao mecanismo humano da Teshuvá (arrependimento/retorno ao bom caminho): não é simplesmente se sentir culpado e pedir desculpas, mas também deve envolver atos concretos para remediar os males feitos e compensar aqueles que foram prejudicados (e sofrer aflições e/ou penalidades a depender do caso; veja Yoma 86a). A Teshuvá é um remédio que permite resgatar o injusto de sua própria injustiça, que o prende a um ciclo vicioso de mau comportamento — e no processo resgata também às vítimas e aos injustiçados.
Como a tradição judaica oral fez questão de salientar, o erro que um ser humano comete contra outro precisa ser resolvido entre os próprios seres humanos. Não há um perdão divino que magicamente ‘apaga’ a culpa, mas sim um esforço humano para remediar o mal cometido e tentar cicatrizar as feridas. Como o protesto indignado de Jonas mostra, isso não é fácil e talvez nem sempre seja possível — mas no mínimo do mínimo previne que novas feridas sejam abertas.
Assim, é curioso ver como as propostas de Naum e de Jonas apresentam distintos caminhos para sonhar com o fim da opressão, ambas partindo de uma apreciação bem similar a respeito do caráter divino (i. e. de como encarar a vida da perspectiva da eternidade):
“O Senhor é Deus zeloso e vingador; o Senhor é vingador e cheio de furor; o Senhor toma vingança contra os seus adversários, e guarda a ira contra os seus inimigos.
O Senhor é tardio em irar-se, mas grande em poder, e ao culpado não tem por inocente; […]
O Senhor é bom, ele serve de fortaleza no dia da angústia, e conhece os que confiam nele.” (Naum 1:2–3, 7)
“sabia que és Deus compassivo e misericordioso, longânimo e grande em benignidade, e que te arrependes do mal.” (Jonas 4:2)
Deus é tardio em ira e se arrepende do mal — é o que permite a Teshuvá, a chance de se voltar de um caminho torto e resolver as coisas ‘por bem’. Mas Deus se ira — é o que permite a libertação dos oprimidos, com a destruição dos opressores ‘endurecidos’ em sua má disposição.
A opressão deve findar — por bem ou por mal.
Em todo caso, Deus sempre está com os oprimidos, seja sofrendo junto a eles seja erguendo-os do pó — porque sua disposição fundamental é chesed, bondade. Eis como os profetas conheceram a Deus, a partir de uma experiência existencial e sociopolítica concreta bem intensa e mesmo surreal. Identificar-se completamente com Deus nada mais é do que uma identificação completa com os seres humanos (e outros seres vivos) que precisam de justiça e restauração.
“não hei de eu ter compaixão […] [de] mais de cento e vinte mil homens que não sabem discernir entre a sua mão direita e a sua mão esquerda, e também muitos animais?” (Jonas 4:11)
“Mas agora quebrarei o seu jugo de sobre ti, e romperei os teus laços. […]
Eis sobre os montes os pés do que traz as boas novas, do que anuncia a paz […] porque o ímpio não tornará mais a passar por ti!” (Naum 1:13,15)
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