[156] Os Escritos falam dos Messias? (Daniel)

A Estrela da Redenção
11 min readAug 18, 2021

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Dando continuidade ao propósito de fornecer aos leitores do blog o panorama geral de se e como a esperança messiânica emerge em diferentes partes da Bíblia Hebraica, analisarei aqui o livro de Daniel, como parte da terceira e última parte da Bíblia Hebraica, os Ketuvim/Escritos.

Anteriormente, analisei a Torá ([150]), a primeira parte dos Neviim, com os livros históricos dos Profetas Anteriores ([151]), o caso samaritano que aceita apenas Torá sem Neviim nem Ketuvim ([152]), a segunda parte dos Neviim, com os livros proféticos dos Profetas Literários ([153]), o quadro geral dos Ketuvim/Escritos, excetuado Salmos e Daniel ([154]), e o livro dos Salmos dentro dos Ketuvim ([155]).

Antes de adentrar no tópico, é preciso observar que a Ordem Judaica dos livros da Bíblia Hebraica é diferente daquela que se encontra no “Velho” Testamento de uma Bíblia Cristã. Mesmo que no caso cristão protestante, os livros do “Velho” Testamento sejam exatamente os mesmos da Bíblia Judaica, a ordem dos livros é diferente. Isso pode parecer um detalhe menor, mas na verdade essa alteração tem um impacto significativo no entendimento. Por conta disso, aqui será usada a divisão original, i. e. judaica, dos livros da Bíblia Hebraica em 3 coletâneas: 1) Torá; 2) Neviim/Profetas; 3) Ketuvim/Escritos. Revise o post [112] se preciso.

Em todos os posts dessa série sobre os Messias e a Bíblia Hebraica, tenho deixado claro que a questão da vida após a morte praticamente não ocorre nela, mas agora chegamos na exceção que eu sempre mencionava: o livro de Daniel, onde de fato essa questão é abordada de forma direta. Contudo, ainda vale dizer que, mesmo Daniel fazendo isso, esse livro ainda enfatiza muito a sucessão de vidas e gerações. Pessoas indo e vindo numa história comunitária. A persistência da comunidade. Mas acrescenta a isso a ressurreição de alguns no tempo do fim (voltaremos a isso mais para frente).

Entrando na questão do livro de Daniel, como parte da terceira e última parte da Bíblia Hebraica, os Ketuvim, chegamos no único exemplar de literatura apocalíptica que veio a entrar na Bíblia Hebraica.

É importante deixar isso bem claro: o livro de Daniel NÃO é um livro profético e Daniel NÃO é um profeta. Daniel é um sábio e o livro em questão é do gênero apocalíptico. A apocalíptica de fato emerge dos círculos da sabedoria mais do que da profecia propriamente dita (enquanto haja alguns paralelos nessa).

Um exemplo que deixa mais claro esse background do livro de Daniel é seu foco na decifração de sonhos e visões e em sutis análises numerológicas.

“Andante”, Rudolf Bauer, 1928.

Não vemos em Daniel o tão característico “assim diz o Eterno” dos Profetas, e nem é Daniel chamado a entregar nenhuma mensagem ao povo, ao contrário, no final do livro todas essas decifrações e numerologias são ‘seladas’ para serem lidas só no futuro.

A apocalíptica floresceu principalmente no período helenista de Israel, quando o Segundo Templo estava de pé. Esse é o contexto no qual o livro de Daniel é escrito, enquanto suas narrativas sejam ambientadas na Corte Babilônica e depois Persa. O sábio Daniel é um dos próprios exilados, levado à força para Babilônia, castrado contra a própria vontade para servir de eunuco na Corte Real de Babilônia. Desde então passou a ser um ‘saris’ por ação humana, uma pessoa nascida masculina que foi feminilizada, como comentei melhor nos posts [104]- [105]. (Nos termos de hoje, provavelmente Daniel seria um pessoa bem queer, dada a alteração hormonal induzida pela castração quando ainda muito juvenil)

Sem entrar muito nos detalhes estruturais desse livro, a grande questão que percorre suas páginas é a seguinte: Daniel uma pessoa justa estava ali tendo que servir e obedecer aos seus captores, junto com outros jovens de Judá, em terra estrangeira. Pior ainda, nas visões que Daniel interpreta nesse livro, tanto sonhos do rei Nabucodonosor da Babilônia, quanto estados alterados de consciência em transes do próprio Daniel, fica claro que o povo de Deus permaneceria durante séculos ou milênios sendo dominado por grandes e monstruosos Impérios!

Daniel se debate com a profecia de Jeremias (que vimos dentro dos livros proféticos dos Neviim). Jeremias havia profetizado que em 70 anos os exilados judeus poderiam retornar e reconstruir Jerusalém e o Templo (o que de fato ocorreu). Mas como sabemos historicamente (e relatado em Esdras-Neemias como mostrei no post [154]), esse retorno e reconstrução não tirou Israel do jugo de grandes Impérios, permanecendo dominado por estes. Isto é, após o retorno o povo de Israel mesmo vivendo em sua terra passou a ter uma existência colonial/subordinada (com exceção do breve período da Dinastia Hasmonéia).

É por conta disso que Daniel reinterpreta a profecia dos 70 anos em uma profecia de 70 semanas de anos (490 dias = 490 anos) e ainda acrescenta números bem maiores, como as 2.300 tardes e manhãs (2.300 anos?), em uma intrincada numerologia.

Ou seja, o que Daniel viu foi: na melhor das hipóteses, séculos. Mas provavelmente MILÊNIOS de subjugação.

Daniel viu esperança também, tal como Jeremias. Exercendo também o pensamento de longuíssimo prazo, Daniel sim tinha esperança de que, após milênios, o povo judeu iria ser totalmente reerguido, “os santos do Altíssimo receberão o reino, e o possuirão para todo o sempre, e de eternidade em eternidade” (Daniel 7:18).

É nesse contexto que emerge a figura do Filho do Homem. Após ter uma visão de Quatro Animais Monstruosos equivalentes a Quatro Impérios, Daniel vê um semelhante ao Filho do Homem na Corte Celestial:

“Eu estava olhando nas minhas visões da noite, e eis que vinha nas nuvens do céu um como o filho do homem; e dirigiu-se ao ancião de dias, e o fizeram chegar até ele.
E foi-lhe dado o domínio, e a honra, e o reino, para que todos os povos, nações e línguas o servissem; o seu domínio é um domínio eterno, que não passará, e o seu reino tal, que não será destruído.” (Daniel 7:13,14)

A visão como um todo é explicada por um anjo:

“Quanto a mim, Daniel, o meu espírito foi abatido dentro do corpo, e as visões da minha cabeça me perturbaram.
Cheguei-me a um dos que estavam perto, e pedi-lhe a verdade acerca de tudo isto. E ele me disse, e fez-me saber a interpretação das coisas.
Estes grandes animais, que são quatro, são quatro reis, que se levantarão da terra.
Mas os santos do Altíssimo receberão o reino, e o possuirão para todo o sempre, e de eternidade em eternidade.” (Daniel 7:15–18)

Então claramente vemos que essa figura celestial do “semelhante a um Filho do Homem” é uma metáfora para o povo dos santos do Altíssimo (i. e. o remanescente do povo judeu, talvez incluindo os gentios justos entre as nações), tanto quanto os Quatro Animais Monstruosos não são animais literais, e sim Impérios.

Dentro da visão, esse Filho do Homem é imaginado como um ser Celestial ou Místico (como um anjo), querendo destacar que esse Reino Final dos Santos do Altíssimo será ao mesmo tempo Humano E Celestial, por ser pautado na justiça, em contraste às Quatro Bestas vistas anteriormente, caracterizadas como Bestiais por serem pautadas em dominação violenta.

Então, claramente o que o livro de Daniel almeja é uma Era Messiânica, a Redenção Final do povo judeu em relação a tais Impérios opressivos, inaugurando um período de paz e harmonia globais.

Contudo, vale a pena ressaltar que o livro de Daniel não coloca suas esperanças em algum personagem específico, ao contrário, sua atenção se centra na comunidade dos santos do Altíssimo, na inteireza do povo judeu.

Primeiro, no livro de Daniel basicamente a questão da dinastia de Davi nunca é colocada em lugar algum. Esse livro não espera um restabelecimento da dinastia davídica, no mínimo sendo indiferente a essa questão. O que parece mais relevante nele é um papel de destaque para os Sábios:

“Os que forem sábios, pois, resplandecerão como o fulgor do firmamento; e os que a muitos ensinam a justiça, como as estrelas sempre e eternamente.” (Daniel 12:3)

Segundo, também não é correto dizer que, ao invés do Messias davídico, o que Daniel aguarda é a vinda do Filho do Homem como outra figura distinta. Dizer que Daniel aguarda a vinda do Filho do Homem é simplesmente dizer que ele aguarda a vinda do Reino de Deus, uma vez que “o Filho do Homem” é uma metáfora para “o Reino de Deus” tanto como “as Quatro Bestas” são metáfora para “os Quatro Impérios”.

Terceiro, mesmo que entendêssemos o Filho do Homem como um ser místico/celestial que ajudaria o povo judeu nos tempos do fim (por exemplo, identificando-o como o anjo Miguel que aparece nos capítulos finais de Daniel), o livro menciona uma única vez essa figura sob essa rubrica de Filho do Homem. Se o identificarmos com o anjo Miguel, é mencionado mais algumas vezes sob essa outra rubrica e a expressão “Filho do Homem” serviria como metáfora para Miguel. Portanto, não há uma centralização em torno de tal figura, mas no máximo um reflexo de como o livro de Daniel correlaciona acontecimentos na esfera celestial com acontecimentos na esfera terrestre (veja posts [137]-[138]).

Quarto, apesar de originalmente o Filho do Homem não ter relação com figuras messiânicas humanas, não é impossível fazer essa relação de forma indireta. Afinal, se o Filho do Homem representa o Reino dos Santos do Altíssimo, então a glória do Filho do Homem poderia ser uma metáfora para a glória de um líder davídico desse período, simplesmente porque qualquer figura messiânica que de fato ocorresse estaria representada aqui no símbolo do Filho do Homem, por esse abarcar o povo de Deus sob a Redenção Final. No post [149] comentei um dito no Talmude que discutia como essa glória messiânica do Filho do Homem dependeria da condição do povo judeu na época da Redenção, que ilustra bem a flexibilidade com que esse imaginário acabou sendo articulado.

Um elemento novo que esse livro traz em relação a todo o panorama que já analisamos anteriormente a respeito de todos os outros livros da Bíblia Hebraica é que esse livro introduz um tipo de esperança para o pós-morte individual: uma ressurreição dos mortos, por parte de alguns, nos tempos do fim.

“E naquele tempo se levantará Miguel, o grande príncipe, que se levanta a favor dos filhos do teu povo, e haverá um tempo de angústia, qual nunca houve, desde que houve nação até àquele tempo; mas naquele tempo livrar-se-á o teu povo, todo aquele que for achado escrito no livro.
E muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para vida eterna, e outros para vergonha e desprezo eterno.” (Daniel 12:1,2)

“E ele disse: Vai, Daniel, porque estas palavras estão fechadas e seladas até ao tempo do fim.
Muitos serão purificados, e embranquecidos, e provados; mas os ímpios procederão impiamente, e nenhum dos ímpios entenderá, mas os sábios entenderão.
E desde o tempo em que o sacrifício contínuo for tirado, e posta a abominação desoladora, haverá mil duzentos e noventa dias.
Bem-aventurado o que espera e chega até mil trezentos e trinta e cinco dias.
Tu, porém, vai até ao fim; porque descansarás, e te levantarás na tua herança, no fim dos dias.” (Daniel 12:9–13)

Aqui vemos o início do que vai ser a associação posterior entre as figuras messiânicas e a ressurreição dos mortos. Enquanto para os Profetas Literários e para os Salmos, podemos afirmar que ali ainda não se esperava uma ressurreição dos mortos, mas sim uma continuidade eterna do povo judeu, da dinastia davídica, da paz e da justiça etc. com as pessoas morrendo todas apenas quando estivessem bem idosas e ‘fartas de dias’. Ou seja, até então, tudo o que víamos era a esperança de um cenário no qual a longevidade, a boa saúde e a ausência de morte violenta seriam uma certeza universal. O livro de Daniel inova, ao apresentar a ideia de que as próprias vidas individuais anteriores finalizadas antes desse período poderiam retornar, sob uma ressurreição corporal.

Agora, aqui ainda vemos tal ideia de ressurreição escatológica ainda muito no início. É difícil precisar o que exatamente o escritor tem em mente.

Primeiro, ele parece pensar que muitos vão ressuscitar, mas não todos, e ainda há certo indício de que, para ele, esses muitos que iriam ressuscitar se refere primordialmente a uma grande batalha que ocorreria antes do tempo do fim (descrita em Daniel 11). Ou seja, um acontecimento especial para essas pessoas que participariam dessa última guerra.

Segundo, não há nada que garante vida eterna após essa ressurreição. No caso dos ímpios ressuscitados, é certo que eles seriam aniquilados, pois não ressuscitam para ter vida, e sim desgraça. Contudo, mesmo no caso dos justos ressuscitados, apesar de na tradução vermos o termo “vida eterna”, isso pode significar simplesmente uma vida muito longa, não literalmente eterna. Talvez possa ser eterna mesmo, mas o texto não se interessou tanto por isso quanto outros textos da própria apocalíptica judaica ou da cristã irão se interessar.

E o fato de que essa questão aparece no final do livro ajuda a lembrar que o foco real desse livro é muito mais similar ao do restante da Bíblia Hebraica: o destino do povo judeu ao longo da história, depositando esperança na redenção em gerações futuras, com sua libertação definitiva em relação à dominação por Impérios opressivos. A ressurreição individual parece entrar em Daniel mais como um plus. Em todo caso, é aqui que nasce a ideia de ter “uma porção no mundo vindouro” da tradição judaica oral.

Para finalizar, temos apenas de alertar o leitor a respeito de um mal entendido comum. Algumas pessoas acham que existe uma referência a morte do Messias em Daniel, quando, na verdade, o trecho em questão se refere a morte de um ungido, nesse caso, se referindo a um Sumo-Sacerdote do Templo que seria morto. O trecho em questão:

“Setenta semanas estão determinadas sobre o teu povo, e sobre a tua santa cidade, para cessar a transgressão, e para dar fim aos pecados, e para expiar a iniqüidade, e trazer a justiça eterna, e selar a visão e a profecia, e para ungir o Santíssimo.
Sabe e entende: desde a saída da ordem para restaurar, e para edificar a Jerusalém, até que seja ungido um príncipe, haverá sete semanas, e sessenta e duas semanas; as ruas e o muro se reedificarão, mas em tempos angustiosos.
E depois das sessenta e duas semanas será cortado um Ungido, e não haverá outro; e o povo do príncipe, que há de vir, destruirá a cidade e o santuário, e o seu fim será com uma inundação; e até ao fim haverá guerra; estão determinadas as assolações.
E ele firmará aliança com muitos por uma semana; e na metade da semana fará cessar o sacrifício e a oblação; e sobre a asa das abominações virá o assolador, e isso até à consumação; e o que está determinado será derramado sobre o assolador.” (Daniel 9:24–27)

Aqui é importante observar que o livro de Daniel é deliberadamente elíptico na forma de se expressar, então há certa margem interpretativa, especialmente se consideremos que o período ao final seja ou da profanação do Templo por Antíoco Epifânio (com a dinastia hasmonéia subsequente) ou o da destruição do Templo pelos romanos (com o exílio subsequente).

Mas feita essa ressalva, podemos informar o seguinte: o primeiro ungido referido, um príncipe ungido, se refere ao Rei Persa Ciro, que permite o retorno dos judeus do exílio babilônico. Dependendo da tradução para o português, você pode ver o tradutor usando as palavras de tal maneira que dê a entender que esse Ungido seria um Ungido que viria após as 62 Semanas referidas, para identificá-lo com o Ungido ‘que será cortado’ após 62 Semanas. Contudo, esse primeiro Ungido na verdade está ANTES das 62 Semanas.

Já quanto ao Ungido que aparece APÓS 62 Semanas, as referências primordiais ao Templo e à interrupção de seu sacrifício favorecem um Ungido Sacerdotal aqui. E de fato, na época da profanação do (Segundo) Templo por Antiôco Epifânio houve o assassinato do Sumo-Sacerdote Onias III, enquanto na época da destruição do (Segundo) Templo pelos romanos, houve a extinção do próprio Sumo-Sacerdócio, e morte de um Sumo-Sacerdote emérito.

Caso se favoreça uma interpretação de que o segundo Ungido seria dinástico, temos a sugestão de Rashi de que isso se refere a Agripa II, o Rei da Judéia morto pelos romanos por ocasião da destruição do Templo.

Dessa forma, podemos observar como o livro de Daniel em nenhum momento se refere ao destino da dinastia davídica — em flagrante contraste aos Profetas Literários e aos Salmos.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

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