[149] Os Messias no Judaísmo: uma introdução

A Estrela da Redenção
8 min readAug 10, 2021

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A tradição judaica contém uma esperança messiânica, no sentido de uma redenção final da humanidade levando o mundo a uma era de paz e justiça universais. Tradicionalmente, a Era Messiânica é associada a algumas figuras messiânicas, dentre elas o(s) Messias.

Antes de falarmos mais especificamente dessa concepção, é preciso afastar um erro básico: o de que a esperança messiânica no judaísmo seria linhas gerais a mesma do cristianismo (ao menos no que o cristianismo espera para a “segunda vinda do Cristo”), só que o Messias ainda não veio e ainda está sendo esperado. Isso é um equívoco, pois existe uma diferença bem grande entre a concepção judaica e a cristã nesse quesito (mesmo que os cristãos tentem usar os textos judaicos, i. e. a Bíblia Hebraica, vulgarmente conhecida como “Velho” Testamento”).

Na verdade é preciso entender que a questão messiânica não é objeto de uma doutrina judaica fixa a ser crida. O judaísmo é muito mais uma metodologia do que uma doutrina e muito mais uma prática do que uma crença. Não existe no judaísmo essa centralidade toda dada ao Messias como ocorre com o Cristo no cristianismo. E essa menor centralidade do Messias no judaísmo versus no cristianismo reflete na concepção judaica tradicional: não há uma única figura/pessoa que “faz tudo” no judaísmo, em contraste gritante à cristologia cristã.

Assim, chegamos no ponto central para entender a visão judaica: o seu modelo messiânico PLURAL. Não existe apenas uma figura messiânica. Como se vê na tradição rabínica, geralmente se falam de 4 figuras: o Messias filho de Davi, o Messias filho de José, o Sacerdote [messiânico] e o Profeta Elias. Além disso, o sanhedrin (o supremo tribunal dos sábios de Torá) também tem um papel importante no contexto messiânico.

Geralmente quando se fala em “o Messias” sem qualificativa, estamos falando do Messias filho de Davi. Mas, na visão tradicional judaica, o Messias filho de Davi não faz tudo sozinho. Ao contrário, o Messias filho de Davi compartilha autoridade, papéis, funções, etc. com outras figuras, seja dinásticas (o Messias filho de José, como vice-rei para as 10 tribos ‘perdidas’ do Norte), seja sacerdotais (o Sacerdote messiânico), seja proféticas (Elias), seja arbitrais/judiciais (o Sinédrio messiânico).

Por que essas 4 figuras? O motivo é que elas correspondem a funções que, na Torá, são ocupadas por pessoas diferentes. A função de rei é uma. A função de Sumo-Sacerdote é outra. A função de profeta que unge o rei e unge o Sumo-Sacerdote é outra. (Um Rei e um Sumo-Sacerdote podem ser também profetas, mas eles não podem ungir a si mesmos)

É comum usar a palavra “Messias” para designar a figura messiânica de caráter régio (o Rei; ou metáfora para uma liderança-cabeça do povo), mas essa palavra “Maschiach” significa “Ungido”, e pode se referir primordialmente a pessoas que foram ungidas como Rei ou Sumo-Sacerdote (e mais raramente, profetas). Então, rigorosamente falando, o Sumo-Sacerdote messiânico também é um Messias. E na Torá, os cargos sacerdotais e régios NÃO podem ser cumulados, tanto que há uma Tribo de Israel específica para os cargos sacerdotais: a de Levi.

Agora, se você prestar atenção, há duas figuras régias ali, o Messias filho de Davi (mais famoso) e o Messias filho de José. O motivo é que, historicamente, 2 das 12 tribos de Israel foram as mais importantes e proeminentes entre todas, conduzindo o povo inteiro ou uma parte dele: a tribo de Judá e a tribo de Efraim (que, junto com a tribo de Manassés, é uma tribo josefita; isto é, ambas são a tribo de José).

Dessa forma, historicamente houve também uma divisão política entre Judá, ao Sul, e Efraim (José), ao Norte, congregando diferentes porções do povo de Israel sob diferentes dinastias régias durante o período monárquico antigo da história judaica.

Em Judá reinava a dinastia de Davi, na cidade de Jerusalém (Sião), onde foi erguido o Templo Sagrado para fixar o Santuário Portátil que continha a Arca da Aliança na capital do Reino dos Reis filhos de Davi. (Note que a expressão “filho de” aqui designa todos os seus descendentes, mesmo que distantes) Já em Efraim, não houve apenas uma dinastia ali reinando, mas várias, tendo uma história política mais caótica. A primeira dessas dinastias foi a de Jeroboão. E havia santuários rivais ao de Jerusalém naquela região.

Essas duas metades do povo de Israel sofreram destinos muito diferentes. Efraim foi quem primeiro sofreu o exílio, nas mãos dos assírios, e desse exílio nunca houve retorno. Os samaritanos são os herdeiros dos israelitas nortistas, mas não por serem retornados do exílio, e sim por seus ancestrais serem israelitas nortistas que ainda permaneceram na região, sem irem para o exílio (e cuja população teve um processo de amálgama com populações de exilados de outros lugares trazidos pelos assírios). Já Judá sofreu o exílio depois, nas mãos dos babilônios, e desse exílio houve um retorno. Por conta disso, os judeus tem como ancestrais os israelitas sulistas, tanto os retornados como os que permaneceram na região mesmo quando do exílio.

Essa diferença entre quem retornou do exílio e quem não retornou do exílio naquela ocasião significa que, para que Israel seja restaurado à sua forma completa, o retorno dos filhos de José que foram exilados precisaria acontecer. Daí a necessidade de um líder para essa metade do povo de Israel: e aí entra o Messias filho de José.

Portanto, a dialética entre Messias filho de Davi e Messias filho de José é a história da unificação de um povo que se dividiu e, por desventuras históricas, nunca mais conseguiu se unificar por completo. A tradição judaica refletiu isso na necessidade de duas figuras régias (de liderança comunitária): a da dinastia davídica em Jerusalém, e a restauração de uma dinastia efraimita.

O Messias filho de Davi e o Messias filho de José trabalharão juntos, o primeiro sendo o Rei do Israel Unificado e Rei de Judá, e o segundo sendo o Vice-Rei do Israel Unificado e Rei de Efraim. Nesse trabalho conjunto é representada essa reconciliação entre as Duas Grandes Tribos de Israel (que representam as demais).

Note que os Messias não são governantes mundiais. Em termos globais, o que se verá é o Reino de Deus, que é manifestado justamente pela harmonia global entre todos os seres humanos e mesmo todos os outros seres vivos.

É quando toda opressão for terminada, que Deus finalmente REINARÁ, uma vez que, quando a humanidade for redimida de toda opressão, Deus também estará sendo redimido:

“O Eterno [YHWH] será Rei sobre toda a terra; e neste dia o Eterno [YHVH] será UM, e seu nome UM.” (Zacarias 14:9; trecho rezado nas Sinagogas como parte do Aleynu)

A concepção judaica reflete muito mais organicamente o mosaico de vozes encontradas na Bíblia Hebraica sobre esse tipo de tópico. Nela não existe um “roteiro unificado” onde uma mesma pessoa teria de fazer — e ser — tudo.

Um exemplo bom disso encontra-se num trecho do Talmude, comparando as seguintes passagens:

“e eis que vinha nas nuvens do céu um como o filho do homem” (Daniel 7:13)

“[Eis que o seu rei vem a você, justo e vitorioso,] humilde e montado num jumento.” (Zacarias 9:9)

O Talmude em Sanhedrin 98a traz o dito de Rabi Alexandri dizendo que Rabi Yehoshua ben Levi levantou uma contradição entre esses versos. Afinal, se aplicados à mesma pessoa, contradizem a maneira como essa pessoa surgiria: no primeiro verso, a pessoa surge de uma forma gloriosa; no segundo verso, de uma forma humilde. Na opinião desse Rabi, a explicação é que, se o povo judeu tiver grandes méritos na época da redenção, o Messias surgiria de uma forma milagrosa; mas se o povo judeu não tiver tais méritos na época da redenção, ele ainda seria redimido de qualquer forma, mas o Messias surgiria de uma forma mais humilde.

E note: essa solução identifica uma mesma pessoa que pode cumprir uma coisa se a condição X ocorrer, ou cumprir a outra coisa se a condição Y ocorrer. Também seria possível pensar no caso de serem pessoas diferentes (ou que um dos versos seja apenas uma metáfora). Não importa aqui discutir tais soluções.

O importante a ter em mente agora é que, na tradição judaica de milênios, não é necessário que uma pessoa cumpra tudo. E ainda mais forte: não é necessário que todos os textos bíblicos que possam estar aludindo à redenção sejam cumpridos da forma como estão escritos. Alguns podem ficar tranquilamente sem serem “cumpridos”. O motivo é que, na Bíblia Hebraica, a profecia no mais das vezes têm um caráter condicional, se dando mais no ‘condicional’ estabelecido no que no seu consequente. Existe uma flexibilidade nos textos bíblicos originais que a tradição judaica conseguiu preservar.

Outro ponto em que a tradição judaica deu continuidade bem organicamente à Bíblia Hebraica é no fato de que sua esperança messiânica é altamente “carnal”, material e sociopolítica.

A redenção humana não é pensada de forma “espiritualizada”, mas sim em termos concretos: a paz mundial, o fim da opressão sociopolítica, o conforto daqueles que sofrem, a restauração de Israel, o fim do exílio judaico, o fim da fome e da pobreza, a cura das doenças, a realização da justiça no seu sentido mais pleno para todos, a destruição dos opressores, a exaltação dos oprimidos etc.

Ilustração para “Der Jüdische Mai” (Maio Judaico), E.M. Lilien, in: Morris Rosenfeld’s Lieder des Ghetto, 1902. Aqui mostra-se muito bem como a esperança messiânica no contexto judaico é acima de tudo uma esperança por redenção sociopolítica, das cadeias de opressão que hoje nos limitam e constrangem.

A questão central da Bíblia Hebraica NUNCA FOI a salvação individual da alma (ou quaisquer outras ideias de salvação espiritual e metafísica), mas sim a justiça e o Reino de Deus na terra, trazendo libertação da opressão e bem-estar terreno (veja post [28]).

A redenção messiânica nesse sentido não é qualitativamente diferente das tantas libertações que já ocorreram com o povo judeu e com outros povos ao longo da história, nem das que ainda ocorrerão ou estão ocorrendo. O diferencial da redenção messiânica é ser o completamento de todas essas redenções já acontecidas antes dela, a libertação DERRADEIRA. Dessa forma, é uma esperança terrena, material, ‘carnal’, sociopolítica, ‘corporificada’.

E mesmo quando pensada de forma mais espiritual como ocorre nos mistérios da Kaballah, isso é feito de forma FIRMEMENTE ALICERÇADA nesse sentido ‘material’, e não por oposição ou em negação a ele. Por exemplo, as centelhas divinas estarem em um exílio reflete a experiência sociopolítica de exílio do povo judeu por milênios a fio (provocado pelos romanos no segundo século).

A esperança messiânica dentro do judaísmo reflete, portanto, experiências sociopolíticas milenares vividas pelos judeus e judias ao longo de toda a sua história.

Nos próximos posts que se seguem, irei mostrar com detalhes — em cada porção da Bíblia Hebraica (dividida em Torá, Profetas e Escritos) — como a esperança (proto)messiânica foi ou não pensada naqueles textos. Ficará muito claro como é impossível entender a ideia dos Messias judaicos sem entender a experiência histórica e social da comunidade judaica ao longo de sua história — e especialmente naqueles momentos formativos dessa civilização, decisivos para que ela sobrevivesse e prosperasse até os dias de hoje, mesmo sendo a civilização de um povo muito menor e mais fraco que os outros da região.

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Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.