[148] O Judaísmo da 1ª Teoria Messiânica Apostólica Pós-Morte de Jesus

A Estrela da Redenção
17 min readAug 6, 2021

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No post anterior expus o que penso ser a provável teoria messiânica original da comunidade apostólica judeu-cristã (de fala aramaica e localizada na Judéia/Galiléia) no período entre a morte de Jesus (~31 EC) e a destruição do Templo pelos romanos (70 EC). Ela pode ser resumida da seguinte forma:

Os romanos invadiriam Jerusalém e destruiriam o Templo. Em seguida, o Filho do Homem viria em toda a sua glória com os anjos destruindo a força armada romana e coroaria o Jesus ressuscitado como Rei Messias filho de Davi (alternativa = Jesus ao ressuscitar tornara-se o Filho do Homem no Céu e seria coroado Rei Messias filho de Davi quando aparecesse diante de todos na Terra). O direito de Jesus ao Trono Messiânico fora obtido ao custo do seu sangue: ao aceitar morrer nas mãos dos romanos, Jesus provara que tinha a coragem de morrer pelo seu povo, e, assim, se mostrava digno do cargo, passando no teste supremo de fidelidade à Aliança. A Casa Herodiana cai perante o Reino Davídico reconstituído. O Rei Messias Jesus reconstrói o Templo (milagrosamente em 3 dias) e reinstitui o sacerdócio, sem interferência romana e sem a elite saducéia. O Império Romano cai perante o Reino de Deus Triunfante e os gentios justos que já haviam aceitado Jesus como Rei Messias ao longo do Império se tornariam juízes das nações. Com isso Jesus também traz os remanescentes dispersos das 10 tribos de Israel que estavam perdidas entre todas as nações do mundo, e os 12 apóstolos se tornam os 12 cabeças das 12 tribos de Israel assim restauradas, dando fim definitivo ao exílio israelita. O Reino de Deus torna-se pleno sobre toda a terra, com a paz mundial e de todos os povos afluindo gente para ouvir Torá e rezar no Templo sob a direção do Rei Messias Jesus. Por fim, os mortos seriam ressuscitados e julgados conforme terem ou não praticado atos de justiça, nesse julgamento participando como juízes aqueles que, antes do reaparecimento de Jesus, já haviam aceito seu Reinado, tanto judeus como gentios. Israel está restaurado — o mundo inteiro está restaurado.

Se quiser entender como cheguei nessas conclusões, veja os posts [143]-[144]-[145]-[146]-[147].

Aqui meu objetivo será outro: analisar o judaísmo dessa teoria messiânica original da comunidade apostólica judeu-cristã de fala aramaica, representada por figuras como Tiago o irmão de Jesus (cabeça da comunidade em Jerusalém; o nome de Tiago na verdade é Jacó, em grego Iacobos).

Falo aqui em “judaísmo”, porque no momento e lugar sob análise ainda não havia uma cisão real entre judaísmo e cristianismo. A comunidade apostólica de Tiago irmão de Jesus era uma comunidade nitidamente judaica, com observância plena da Torá. Antes da destruição do Templo em 70 EC, não é ainda possível falar numa cisão (e a cisão só se completará totalmente com a guerra judaico-romana de 135 EC), mesmo que alguns elementos que levarão a essa cisão nas comunidades cristãs helenistas já estivessem presentes.

Assim, quero explicar como tal teoria messiânica reconstruída ainda estava completamente dentro da mentalidade judaica. Isso é relevante para entendermos a própria cisão que houve depois.

Como afirmei no post anterior, existem várias diferenças entre a visão messiânica dentro do judaísmo e a visão messiânica dentro do cristianismo (“cristologia”).

Muitas pessoas pensam erroneamente que a diferença seja apenas uma questão de que no judaísmo o Messias ainda não veio enquanto no cristianismo o Messias já veio. Mas a questão é muito mais profunda que isso.

Outra maneira comum de vermos essa diferença sendo explicada é que, para os judeus, é necessário que o Messias cumpra todas as profecias, inaugurando uma era de paz e tranquilidade universais, enquanto, para os cristãos, o Messias (Cristo) teve de morrer na sua primeira aparição, deixando a maior parte das profecias para serem realizadas numa segunda aparição.

Sim, essa é uma diferença real e importante. Ter conhecimento desse ponto é um passo na direção certa para entender tudo isso — mas novamente, penso que a questão é mais profunda que isso!

Na verdade é preciso entender que a questão messiânica não é objeto de uma doutrina judaica fixa a ser crida. O judaísmo é muito mais uma metodologia do que uma doutrina e muito mais uma prática do que uma crença. Não existe no judaísmo essa centralidade toda dada ao Messias como ocorre com o Cristo no cristianismo. E essa menor centralidade do Messias no judaísmo versus no cristianismo reflete na concepção judaica tradicional: não há uma única figura/pessoa que “faz tudo” no judaísmo, em contraste gritante à cristologia cristã.

Assim, chegamos na diferença mais profunda entre judeus e cristãos na questão messiânica: a visão judaica é mais plural. Não existe apenas uma figura messiânica. Como se vê na tradição rabínica, geralmente se falam de 4 figuras: o Messias filho de Davi, o Messias filho de José, o Sacerdote [messiânico] e o Profeta Elias. Além disso, o sanhedrin (o supremo tribunal dos sábios de Torá) também tem um papel importante no contexto messiânico.

Ou seja, na visão messiânica judaica tradicional, o Messias filho de Davi compartilha autoridade, papéis, funções, etc. com outras figuras, seja dinásticas (o Messias filho de José, como vice-rei para as 10 tribos ‘perdidas’ do Norte), seja sacerdotais (o Sacerdote messiânico), seja proféticas (Elias), seja arbitrais/judiciais (o Sinédrio messiânico).

A Alta Cristologia cristã simplesmente cumulou todos os cargos e funções possíveis de forma centralizada na figura de Jesus: o Messias prometido, que também seria o novo Sumo-Sacerdote, o sacrifício final que substituiria os sacrifícios do Templo, o Salvador da humanidade em relação aos seus pecados, o Filho do Homem anunciado no livro de Daniel, o grande Profeta previsto no livro de Deuteronômio, o Verbo Divino, e até mesmo o próprio Deus, uma das pessoas divinas da Trindade.

A concepção judaica reflete muito mais organicamente o mosaico de vozes encontradas na Bíblia Hebraica sobre esse tipo de tópico. Ainda farei um post explicando melhor sobre a questão de se e como há a figura do Messias na Bíblia Hebraica — basta aqui dizer que ali não existe um “roteiro unificado” onde uma mesma pessoa teria de fazer — e ser — tudo.

Agora, quando vamos analisar a teoria messiânica original da comunidade apostólica judeu-cristã de fala aramaica pré-destruição do Templo, ali vemos que ainda estávamos nos contornos da mentalidade messiânica plural judaica — e não ainda na mentalidade cristológica centralizada cristã.

E note: podemos afirmar que tal teoria messiânica apostólica original era ainda uma teoria messiânica de teor judaico MESMO QUE o Messias ali descrito não tivesse ainda realizado “tudo”.

Para essa comunidade apostólica, não havia passado nem mesmo 1 século desde que Jesus morrera (e, na visão dela, ressuscitara). Então, nem sequer ainda se pensava numa “segunda vinda”. Da perspectiva deles, Jesus tinha apenas se ocultado por um pouco de tempo — seu reaparecimento ainda estava no horizonte temporal da sua ÚNICA VINDA. Claro que isso teve de mudar depois na medida em que passaram décadas e vários dos eventos relevantes (destruição do Templo, guerra judaica contra os romanos) que marcariam a irrupção iminente do Reino de Deus. Mas aqui, num período de apenas 4 décadas (de ~30 EC quando Jesus morreu a 70 EC quando o Templo foi destruído), a trajetória de Jesus antes de sua morte ainda era muito próxima.

É como se você imaginasse alguém relativamente jovem (30 anos) que se escondesse por algumas décadas e viesse a reaparecer quando idoso (com 70 anos ou mais). A nossa mente processa algo assim como parte de uma única trajetória de vida. Mas se o tempo para esse reaparecimento aumenta demais, então é inevitável que faremos uma cisão entre aqueles 30 anos e a tal futura reaparição, e faria sentido falar em “primeira vinda” e “segunda vinda” como duas trajetórias, ao invés de uma só com uma breve interrupção.

Esclarecido esse ponto, examinemos como a teoria messiânica apostólica original se encaixava na mentalidade judaica. Como é possível observar da reconstrução feita, Jesus como Messias ainda compartilhava papéis com outras pessoas, não sendo ainda visto como uma figura que centraliza tudo.

Dessa forma, vemos que havia um lugar para:

  1. o Templo e seu sacerdócio, onde Jesus NÃO eliminaria a necessidade de um Templo nem de seu sacerdócio, e Jesus não seria o Sumo-Sacerdote, sendo tal cargo ocupado por outra pessoa (que ainda viria a ser nomeada nesse sentido);
  2. os príncipes das 12 Tribos de Israel, função esta que seria ocupada pelos 12 apóstolos (com Matias substituindo Judas Iscariotes);
  3. uma dinastia familiar davídica reconstituída, onde Maria mãe de Jesus fosse a Rainha-Mãe e Tiago irmão de Jesus como um príncipe real ou até mesmo vice-rei*;
  4. um Grande Tribunal (sanhedrin) e outros tribunais menores, onde os seguidores de Jesus entre os judeus julgariam as tribos de Israel e os seguidores de Jesus entre os gentios julgariam as suas nações respectivas;
  5. o próprio Deus e seus anjos (onde talvez entre os anjos estivesse incluída a figura do Filho do Homem de Daniel, caso Jesus ainda não tivesse sido identificado como Filho do Homem), uma vez que: 1) Deus (e/ou o Filho do Homem celestial) é que coroaria o Rei Messias davídico, Jesus; 2) o Rei Messias Davídico é o Rei de Israel, mas não Rei de um governo mundial, então o Rei do mundo inteiro seria o próprio Deus, tendo por braço-direito o Rei Ungido de Israel, que seria Jesus.

Então, nesse modelo Jesus compartilharia poder com várias figuras, e não estaria toda a simbologia messiânica centralizada nele. Inclusive é bem patente aqui que outros membros da família real davídica reconstituída teriam sua relevância por uma questão carnal e sanguínea mesmo, como é de se esperar ao levar a sério a ideia de uma dinastia.

Então os familiares de Jesus são relevantes, de Maria sua mãe a Tiago seu irmão, bem como os demais irmãos e irmãs de Jesus e talvez José pai de Jesus (digo “talvez” porque aparentemente José já havia morrido quando Jesus iniciou sua pregação pública, então ele não chegou a fazer parte do movimento de Jesus).

De maneira mais geral, essa concepção messiânica original era mais “carnal”, material e sociopolítica, do que a concepção cristológica posterior que a sucederá na cristandade.

Ali havia inimigos políticos claramente identificáveis: 1) o Império Romano, como a Última Besta de Daniel a se opor ao Reino de Deus; 2) a Casa Herodiana, como um Reino Idumeu (edomita) ilegítimo sobre Israel; 3) a Elite Sacerdotal Saducéia corrupta.

O Reino de Deus, ao invés de algo apolítico, EXIGE que o Império Romano seja derrubado, bem como a Casa Herodiana e a Elite Sacerdotal Saducéia mancomunada com o sistema romano.

A redenção humana não é pensada de forma “espiritualizada”, mas sim em termos concretos, como é a maneira judaica de pensá-la: a paz mundial, o fim da opressão sociopolítica, o conforto daqueles que sofrem, a restauração de Israel, o fim do exílio judaico, o fim da fome e da pobreza, a cura das doenças, a realização da justiça no seu sentido mais pleno para todos, a destruição dos opressores, a exaltação dos oprimidos etc.

“A Sermon for Our Ancestors”, Laura James, 2006. A artista aqui representa, no estilo da Iconografia Etíope (Ortodoxa Tewahedo), as Bem-Aventuranças do Sermão do Monte de Jesus. A cada uma das bem-aventuranças (“bem-aventurados os que choram”; “bem-aventurados os que tem fome e sede de justiça”; “bem-aventurados os que sofreram perseguição por causa da justiça”. etc.) são apresentadas cenas do sofrimento dos e injustiças contra os negros escravizados no Sul dos Estados Unidos. A mensagem é clara: o objetivo das bem-aventuranças de Jesus é quebrar toda a opressão e trazer libertação aos aflitos, com Jesus se identificando ‘carnalmente’ com os oprimidos. Então, quando, por exemplo, Jesus afirmou “bem-aventurados os que choram, porque serão consolados”, isso não deve ser espiritualizado, mas sim entendido em termos bem materiais e concretos. Existem inúmeros outros exemplos de ditos de Jesus que foram indevidamente “espiritualizados” quando, lidos naturalmente, claramente falam da redenção em termos judaicos, isto é, em termos sociopolíticos e materiais/carnais.

Ou como Maria mãe de Jesus (a Rainha-Mãe Dinástica na teoria messiânica apostólica original) aparece cantando no Evangelho de Lucas:

“Com o seu braço agiu valorosamente; Dissipou os soberbos no pensamento de seus corações.
Depôs dos tronos os poderosos, E elevou os humildes.
Encheu de bens os famintos, E despediu vazios os ricos.
Auxiliou a Israel seu servo, Recordando-se da sua misericórdia;
Como falou a nossos pais, Para com Abraão e a sua posteridade, para sempre.” (Lucas 1:51–55)

Compare com o Cântico de Ana na Bíblia Hebraica, onde se vê claramente o caráter material da redenção no entendimento judaico e no qual o Cântico de Maria se inspira:

“O arco dos fortes é quebrado, mas os fracos são revestidos de força.
Os que tinham muito, agora trabalham por comida, mas os que estavam famintos, agora não passam fome. A que era estéril deu à luz sete filhos, mas a que tinha muitos filhos ficou sem vigor.
O Senhor é o que tira a vida e a dá; faz descer à sepultura e faz tornar a subir dela.
O Senhor empobrece e enriquece; abaixa e também exalta.
Levanta o pobre do pó, e desde o monturo exalta o necessitado, para o fazer assentar entre os príncipes, para o fazer herdar o trono de glória.” (1 Samuel 2:4–8)

A questão central da Bíblia Hebraica NUNCA FOI a salvação individual da alma (ou quaisquer outras ideias de salvação espiritual e metafísica), mas sim a justiça e o Reino de Deus na terra (veja post [28]). E podemos afirmar o mesmo dessa concepção apostólica original judeu-cristã de fala aramaica que estamos examinando aqui.

Note ainda que o próprio critério para o julgamento universal promovido pelo Filho do Homem NÃO tinha a ver com seguir certa religião ou ter certas crenças, inclusive NÃO tinha a ver com ter ou não “fé em Jesus”. O critério que a tradição sinótica sinaliza é muito claro: atos de justiça para com os oprimidos e aflitos (inclusive pessoas aprisionadas pelos opressores romanos).

“E quando o Filho do homem vier em sua glória, e todos os santos anjos com ele, então se assentará no trono da sua glória;
E todas as nações serão reunidas diante dele, e apartará uns dos outros, como o pastor aparta dos bodes as ovelhas;
E porá as ovelhas à sua direita, mas os bodes à esquerda.
Então dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo;
Porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me;
Estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e foste me ver.

Então os justos lhe responderão, dizendo: Senhor, quando te vimos com fome, e te demos de comer? ou com sede, e te demos de beber?
E quando te vimos estrangeiro, e te hospedamos? ou nu, e te vestimos?
E quando te vimos enfermo, ou na prisão, e fomos ver-te?

E, respondendo o Rei, lhes dirá: Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.
Então dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos;
Porque tive fome, e não me destes de comer; tive sede, e não me destes de beber;
Sendo estrangeiro, não me recolhestes; estando nu, não me vestistes; e enfermo, e na prisão, não me visitastes.

Então eles também lhe responderão, dizendo: Senhor, quando te vimos com fome, ou com sede, ou estrangeiro, ou nu, ou enfermo, ou na prisão, e não te servimos?
Então lhes responderá, dizendo: Em verdade vos digo que, quando a um destes pequeninos o não fizestes, não o fizestes a mim.” (Mateus 25:31–45; sobre a questão do ‘fogo eterno’, não confunda com a doutrina posterior do inferno eterno, veja post [102] para entender)

Ou dentro da tradição de Tiago irmão de Jesus como refletida na Epístola de Tiago do Novo Testamento, invocando as obrigações da Torá:

“A religião pura e imaculada para com Deus e Pai, é esta: Visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações, e guardar-se da corrupção do mundo.” (Tiago 1:27)

“Porventura não escolheu Deus aos pobres deste mundo para serem ricos na fé, e herdeiros do reino que prometeu aos que o amam?
Mas vós desonrastes o pobre. Porventura não vos oprimem os ricos, e não vos arrastam aos tribunais?
Porventura não blasfemam eles o bom nome que sobre vós foi invocado?
Todavia, se cumprirdes, conforme a Escritura, a lei real: Amarás a teu próximo como a ti mesmo, bem fazeis.
Mas, se fazeis acepção de pessoas, cometeis pecado, e sois redargüidos pela lei como transgressores. […]

Assim falai, e assim procedei, como devendo ser julgados pela lei da liberdade.
Porque o juízo será sem misericórdia sobre aquele que não fez misericórdia; e a misericórdia triunfa do juízo.”
(Tiago 2:5–9, 11–13)

“Eia, pois, agora vós, ricos, chorai e pranteai, por vossas misérias, que sobre vós hão de vir. As vossas riquezas estão apodrecidas, e as vossas vestes estão comidas de traça. […]
Eis que o jornal dos trabalhadores que ceifaram as vossas terras, e que por vós foi diminuído, clama; e os clamores dos que ceifaram entraram nos ouvidos do Senhor dos exércitos.” (Tiago 5:1–2, 4)

Note como todos esses textos falam de situações bem concretas vividas na Judéia e na Galiléia daquela época, sob a opressão romana e de uma elite intrajudaica conivente. Fala-se de estar empobrecido, reduzido à miséria, jogado numa prisão, ter o salário diminuído ou não pago, ser processado por alguém mais poderoso etc. E é contra tudo isso que virá o Reino de Deus.

A própria terminologia do “Reino de Deus” contrasta com os “reinos deste mundo” e, portanto, com o maior dos reinos desse mundo, o Império Romano.

“Então Jesus, chamando-os para junto de si, disse: Bem sabeis que pelos príncipes dos gentios são estes dominados, e que os grandes exercem autoridade sobre eles.
Não será assim entre vós; mas todo aquele que quiser entre vós fazer-se grande seja vosso serviçal;
E, qualquer que entre vós quiser ser o primeiro, seja vosso servo;
Bem como o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir, e para dar a sua vida em resgate de muitos.” (Mateus 20:25–28)

E aqui chegamos em um tema que ainda pode gerar perplexidade. Por que Jesus teve que morrer nessa visão apostólica original? A resposta tradicional é aquela que imputa o motivo do “perdão dos pecados de todos os seres humanos em todos os tempos e lugares” como presente desde o início entre os Apóstolos. A meu ver, essa resposta tradicional NÃO é convincente.

Na concepção judaica tradicional, Deus não precisa que alguém morra para que haja perdão de pecados. Os próprios sacrifícios animais da Torá em geral não expiam pecados cometidos voluntariamente, mas sim os feitos “sem querer”, involuntariamente. O perdão está disponível simplesmente por fazer Teshuvá (arrependimento/retorno), voltando-se do mau caminho e consertando o mal feito. As próprias aflições da vida, e o seu término com a morte, também podem servir de expiação em casos mais graves. Então, os judeus daquela época não aguardavam uma forma de obter perdão de pecados.

O que me parece ser o ponto original dessa questão da morte de Jesus na comunidade apostólica de fala aramaica é que, ao aceitar morrer de uma forma tão terrível nas mãos do opressor romano, Jesus teria se tornado digno do Trono Messiânico. Pouca gente estaria disposta a morrer daquele jeito voluntariamente — mas Jesus esteve. Assim ele pagou um alto preço, tendo sua fidelidade testada pela tortura da crucificação até a morte, e com isso provou-se digno de ser o Messias que traria o fim do domínio romano — e de trazer dos mortos todos aqueles que, tal como o próprio Jesus, também sofreram duras penas de tortura e morte sob mãos romanas. Eis o que seria a doutrina apostólica original.

O texto de Mateus parece ainda transparecer essa ideia, quando Jesus questiona se 2 de seus discípulos, que queriam estar à direita e à esquerda de Jesus no Reino, teriam disposição de tomar o cálice (i. e. a tortura e morte sob a crucificação) que Jesus tomaria:

“Então se aproximou dele a mãe dos filhos de Zebedeu, com seus filhos, e prostrando-se, fez um pedido.
E ele diz-lhe: Que queres? Ela respondeu: Dize que estes meus dois filhos se assentem, um à tua direita e outro à tua esquerda, no teu reino.
Jesus, porém, respondendo, disse: Não sabeis o que pedis. Podeis vós beber o cálice que eu hei de beber, e ser batizados com o batismo com que eu sou batizado? Dizem-lhe eles: Podemos.
E diz-lhes ele: Na verdade bebereis o meu cálice e sereis batizados com o batismo com que eu sou batizado, mas o assentar-se à minha direita ou à minha esquerda não me pertence dá-lo, mas é para aqueles para quem meu Pai o tem preparado.” (Mateus 20:20–23)

Se a questão da expiação de pecados pela morte de Jesus realmente já apareceu nessa tradição mais antiga (i. e. a da comunidade apostólica judeu-cristã de fala aramaica entre 30 e 70 EC), em todo caso seria uma ideia muito mais limitada em escopo, tal como às vezes ocorre na própria tradição judaica rabínica.

Na tradição judaica, existe a ideia de que a morte de certas pessoas pode servir para “expiar” os pecados de outras. Como se por aquela pessoa morrer, alguma catástrofe ou destruição fosse interrompida (se já em curso) ou fosse evitada (se ainda não tivesse acontecido). De fato essa ideia existe, mas note: não é uma noção espiritualizada, mas sim material, ligada a juízos concretos em circunstâncias materiais, especialmente quando israelitas são mortos “pelas nações do mundo”.

Então, em termos judaicos, poderia fazer sentido para a comunidade apostólica judeu-cristã de fala aramaica pensar que a morte de Jesus servira para evitar que a destruição que os romanos trariam (a qual fora prevista por Jesus) chegasse muito rapidamente. O sangue derramado por ele “em combate” contra os inimigos de Deus ( = opressores romanos), sofrendo aquilo que o povo inteiro sofreria no caso de uma invasão romana, não evitaria que a destruição viesse posteriormente, mas a retardaria o suficiente para que muita gente (entre judeus e gentios) pudesse se preparar e fazer Teshuvá (o que talvez pudesse afastar a destruição assim prevista ou amenizá-la). Em todo caso, um tempo estava sendo dado — exatamente aquele entre a morte de Jesus e seu reaparecimento — para que mais pessoas fossem informadas do que estava para acontecer e mudassem suas vidas de acordo, aderindo ao caminho do Reino de Deus.

Desse modo, vemos que, mesmo se a teoria apostólica original falasse também em expiação de pecados, ainda estaria dentro de uma mentalidade judaica, porque a eficácia expiatória da morte de Jesus seria: 1) concreta, ligada às circunstâncias específicas da ocupação romana na Galiléia e Judéia; 2) não-exclusiva, sendo compartilhada com as mortes de quaisquer outros judeus inocentes mortos sob a regra romana, as quais teriam a MESMA eficácia expiatória (qualitativamente falando, mesmo que quantitativamente a de Jesus pudesse ser considerada maior na proporção de seu zechut/‘créditos’). Nesse sentido, os martírios de seguidores de Jesus (e não só destes, mas de outros mártires judeus) contribuiriam para tal expiação também, IGUALMENTE como o martírio do próprio Jesus, naquele contexto específico.

Então, mesmo que tal noção talvez já tenha sido pensada ali, entendo que ela não seria a principal nem a mais importante originalmente. A explicação mais importante para a morte de Jesus seria que, ao tomar desse cálice, Jesus conquistou o pleno direito ao Trono Messiânico. Apenas alguém disposto a voluntariamente se entregar a tal horrível destino e ainda assim se manter fiel até o fim, tudo isso em prol do povo judeu, poderia ter a honra de ocupar o mais alto posto no Reino de Deus, qual seja, o de Rei de Israel.

Além disso, por morrer sob a tortura da cruz, Jesus ainda se mostrava, como futuro Rei de seu povo, solidário ao sofrimento de todos os judeus inocentes (e mesmo gentios justos) sob a regra romana, especialmente daqueles mais marginalizados ou mais rebeldes que foram vitimados pelos Romanos. Então há um caráter fortemente político e material envolvido nessa teoria messiânica original acerca de Jesus**.

Dessa forma, podemos concluir que a teoria messiânica original da comunidade apostólica judeu-cristã de fala aramaica era de fato ainda uma teoria messiânica de caráter judaico, e não era ainda uma teoria cristológica (i. e. messiânica-cristã). Como e porque (e onde!) isso mudou é tema para textos futuros.

*E quanto à Maria Madalena, que parece ter sido a seguidora mulher de Jesus mais íntima dele e, se assim podemos dizer, uma melhor amiga? Imagino que também ela teria um lugar de destaque no reino messiânico, mas não é possível afirmar qual exatamente seria. Talvez destinada a ser a maior entre as Sábias ou Rabinas, numa analogia com Débora? Também seria natural vê-la como uma consorte real, mas há um dito nos Sinóticos afirmando que, após a ressurreição, não haveria mais casamentos, parecendo excluir essa possibilidade. Em todo caso, é muito provável que tal amizade íntima entre Jesus e Maria Madalena se transladasse em um papel importante para Maria Madalena no estabelecimento do Reino de Deus (e considerações similares valem também para as outras mulheres seguidoras de Jesus retratadas nos Evangelhos, dada a demonstração de intensa fidelidade a Jesus mesmo quando este fora crucificado e morto).

**Compare aqui com o caso do Profeta Jeremias, na Biblia Hebraica, o qual testemunhou todo o caos e horror do exílio babilônico e da destruição do Primeiro Templo, sendo chamado a participar dos sofrimentos do povo de Deus naquela ocasião.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

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