[107] Judaísmo é uma metodologia, não uma doutrina
Um engano relativamente comum quando se pensa no ‘judaísmo’ enquanto um fenômeno religioso é a de entendê-lo como uma doutrina, à semelhança do cristianismo ou mesmo do Islã (agrupados sob um rótulo genérico de ‘religião abraâmica’). O objetivo desse texto é esclarecer que o judaísmo é uma METODOLOGIA, não uma doutrina.
Esse equívoco afeta mesmo sites ou artigos de divulgação que pretendem introduzir o judaísmo, mas que via de regra não foram escritos por judeus. Se você pesquisar no google provavelmente achará algum site ‘resumindo’ o judaísmo por tentar esclarecer o que seria Deus, salvação, vida após a morte, inspiração divina, criação do mundo, natureza da alma, o Messias etc. para essa tradição religiosa.
O problema é que isso pressupõe que o judaísmo é uma doutrina que pode ser sumarizada a partir de suas crenças ou dogmas ou doutrinas fundamentais. E ainda mais longe: que pode ser adequadamente descrito por comparação aos dogmas da fé cristã.
O cristianismo de fato é uma Doutrina, podendo ser caracterizado por crenças tais como a Trindade, a inspiração bíblica incluindo “Velho” e Novo Testamento, a morte e ressurreição de Jesus como eventos salvíficos, o destino eterno pós-morte decidido pela graça divina, a messianidade de Jesus etc.
Aí dentro do tipo de exposição equivocada que estou criticando, o judaísmo seria essa doutrina cristã sem o ‘Novo’ Testamento e sem Jesus: os judeus não creem que Jesus é o Messias e ainda esperam pelo Messias, Deus é Uma só Pessoa (contra a Trindade), eles vivem sob a Lei antiga ao invés da nova aliança, eles têm só o “Velho” Testamento etc. Ou seja, a doutrina judaica seria entendida por negação aos dogmas cristãos e por manter apenas ‘uma parte’ da Bíblia cristã….
Mas isso ainda vai mais fundo: mesmo que se tente evitar essa definição de judaísmo como ‘negação ao cristianismo’ ou ‘fé numa Bíblia incompleta’, e para isso se use um conteúdo tecnicamente correto (digamos, os 13 princípios de fé de Rambam/Maimônides, aos quais voltarei abaixo), a FORMA de expor o judaísmo está equivocada, porque não captura adequadamente o que é central para essa tradição.
O que é central para o judaísmo não são doutrinas, mas sim uma Metodologia. Grosso modo, podemos dizer que o judaísmo se define pela metodologia rabínica de estudo da Torá, tanto no quesito de aplicação prática/derivação normativa da Torá quanto no quesito de exposição narrativa/ampliação literária da Torá. O primeiro quesito é tradicionalmente entendido como Halacha, ou Jurisprudência Judaica, amplamente exposta na Mishná e Guemará do Talmude, enquanto o segundo quesito é tradicionalmente entendido como Agadá, ou Narrativa Judaica, amplamente exposta nos Midrashim.
Essa metodologia se funda numa Torá dupla, que possui tanto um componente escrito quanto um componente oral.
A Torá Escrita corresponde, em sentido estrito, à primeira parte da Bíblia Hebraica chamada de ‘Torá’ (Gênesis/Bereshit, Êxodo/Shemot, Levítico/Vaycrá, Números/Bamidbar, Deuteronômio/Devarim*).
Já em sentido amplo, a Torá Escrita corresponde à Bíblia Hebraica como um todo, chamada de Tanakh, uma coletânea composta por Torá (Instrução), Neviim (Profetas) e Ketuvim (Escritos).
A Torá Oral corresponde, em sentido estrito, à tradição judaica oral como discutida pelos sábios dos períodos zugotico, tanaítico e amoraico (um intervalo que vai de 200 AEC até 500 da nossa era), que foi compilada na Mishná (obra dos Tanaim) e Guemará comentando a Mishná (obra dos Amoraim) formando assim o Talmude (duas versões: Talmude da Babilônia e Talmude de Jerusalém, tendo o primeiro maior destaque). Paralelamente à compilação talmúdica, temos também os Midrashim, expansões narrativas de textos bíblicos.
Já em sentido amplo, a Torá Oral corresponde à série cumulativa de comentários tanto à Torá Escrita quanto às primeiras camadas da Torá Oral (Talmude e Midrashim) pelos rabinos das gerações posteriores (períodos dos Savoraim, Geonim, Rishonim e Acharonim, este último sendo o atual).
Como se pode observar, o que se chama de ‘judaísmo’ na verdade é comentário do comentário do comentário… Um processo cumulativo no qual cada geração, a partir do trabalho das anteriores, adiciona mais e maiores entendimentos sobre os mais diversos aspectos da Torá. É similar à instituição da ciência acadêmica que opera por intermédio de conhecimento cumulativo composto por inúmeras contribuições difusas por cientistas individuais que são submetidas à revisão por pares.
Nesse sentido, a metodologia rabínica é uma metodologia ‘acadêmica-tradicional’ que, atualmente, também pode recorrer à pesquisa acadêmica moderna (especialmente no caso de judeus não-ortodoxos e de ortodoxos modernos) nessa contínua jornada para entender absolutamente tudo da Torá, cada vírgula e ponto.
Assim, o judaísmo se define mais pelo processo pelo qual se chega numa resposta do que pela resposta alcançada, e por isso não é uma doutrina nem mesmo um misto de metodologia + doutrina, mas sim uma Metodologia como tal.
Por isso mesmo as grandes controvérsias da história judaica foram discussões eminentemente metodológicas.
No caso dos samaritanos (ou israelitas samaritanos), estes aceitavam apenas a Torá Escrita no seu sentido estrito (numa variante textual samaritana), rejeitando o restante da Bíblia Hebraica, ou seja, rejeitando Neviim e Ketuvim (e por óbvio rejeitando a Torá Oral, uma vez que esta remete aos Neviim e Ketuvim).
No caso dos judeus karaitas, estes aceitavam apenas a Torá Escrita em sentido amplo, mas rejeitavam a Torá Oral rabínica (enquanto também possuem um corpo de tradição própria, chamado de Sevel HaYerushah, o ‘Jugo da Herança’).
No caso dos cristãos proto-ortodoxos dos primeiros séculos (visto a partir de dentro do judaísmo), estes aceitavam uma metodologia alegórica para entender a Bíblia Hebraica, pela qual esta era lida à luz de uma Doutrina Apostólica externa (a mensagem dos Apóstolos passada de geração em geração pelos bispos em sucessão apostólica). A isso se acrescia o fato de lerem o texto bíblico por meio de uma tradução para o grego e o acréscimo gradativo de escritos apostólicos em grego (o Novo Testamento).
No caso do Islã (visto a partir de dentro do judaísmo), que não se originou diretamente do judaísmo mas bebeu tanto nele quanto no cristianismo (especialmente o nestoriano), os islâmicos substituíram a Bíblia Hebraica por uma versão revisada e modificada do seu conteúdo constando do Corão.
No caso dos diferentes movimentos judaicos da atualidade, dos ortodoxos aos não-ortodoxos, todos estes dentro do judaísmo rabínico, a discussão centra-se no papel que a Halacha constante dos Códigos de Lei Judaica Medievais deve desempenhar na vida judaica contemporânea.
Ou seja, tanto na discussão entre judaísmo rabínico (geralmente o que temos em mente ao falarmos em ‘judaísmo’) e outros braços de judaísmo dissidentes (como os samaritanos, os karaitas, etc.), quanto na discussão interna ao próprio judaísmo rabínico (entre ortodoxos e não-ortodoxos, ou mesmo nas grandes divisões étnicas entre askhenazi e sefarditas etc.), e mesmo na discussão com outras religiões que ‘saíram’ do ou beberam no judaísmo (como cristãos e islâmicos) vista de uma perspectiva judaica, TODOS esses debates dizem respeito à metodologia, não diretamente às doutrinas. As diferenças doutrinárias quando ocorrem se seguem às diferenças metodológicas, são consequências das divergências em metodologia.
Por isso eu não introduziria o judaísmo por meio dos 13 Princípios de Fé de Rambam/Maimônides, por mais que muitos judeus ou rabinos aceitem esse resumo, e inclusive não o faria mesmo se absolutamente todos os judeus aceitassem esse resumo.
O motivo é que os 13 Princípios de Fé de Rambam são CONSEQUÊNCIA de algo muito mais PROFUNDO, a saber, a questão de METODOLOGIA que comentei acima. Na sua própria época, esse resumo sofreu oposição por nomes como R. Joseph Albo e R. Hasdai Crescas, e demorou séculos até ser mais difundido entre o povo judeu como um todo. E a motivação para produzir tal declaração de princípios foi a pressão cristã e islâmica no sentido de uma apologética contra o judaísmo, obrigando a uma reação defensiva no meio rabínico. O judaísmo viveu milênios antes sem precisar de nada similar a um credo, e poderia continuar assim não fosse a apologética das religiões proselitistas já citadas.
A meu ver, o mais correto é introduzir o judaísmo por meio de distinções como a de Halacha e Agadá (como faz o existencialista judaico R. Heschel em vários de seus livros, como em “God in Search of Man: a Philosophy of Judaism”) ou a de Torá Escrita e Torá Oral (por exemplo, em “The Perfect Torah” pelo acadêmico Jacob Neusner) ou exposições panorâmicas das discussões rabínicas clássicas (como em “Heavenly Torah: As Refracted through the Generation”, também de R. Heschel, ou “Making God’s Word Work: A Guide to the Mishnah”, também de Neusner).
Os fundamentos do judaísmo são metodológicos, justificando essa abordagem. Tal como se alguém quisesse aprender ciência acadêmica de fato, melhor seria começar pelos métodos (por exemplo, a diferença entre métodos quantitativo e qualitativo, ou os fundamentos do método experimental, ou o que é revisão por pares e assim por diante) do que pelas ‘doutrinas’ (por exemplo, a teoria da relatividade).
Curiosamente essa questão impacta os cursos para conversão judaica (e os livros utilizados). Uma pessoa de formação cristã (como é o mais comum em nosso país) esperaria que a ementa de um curso para conversão ao judaísmo elaborasse as várias doutrinas judaicas e como justificá-las na Bíblia. Mas, ao contrário, o candidato à conversão é convidado a uma imersão cultural profunda nos modos de raciocínio e especialmente na PRÁTICA de uma comunidade judaica.
A maior parte de conversão judaica fala sobre: calendário judaico, festas judaicas, o Shabat, leis alimentares, tzedaká (contribuição financeira para os necessitados), rituais de ciclo de vida e rezas. O restante geralmente se ocupa do estudo da Torá e da história judaica. Isso sem contar o próprio aprendizado do hebraico. Então como era de se esperar considerando a centralidade metodológica (e prático-comunitária) do judaísmo, a conversão judaica não enfatiza doutrinas e crenças.
De fato, isso pode surpreender muita gente, mas, dentro do judaísmo, a Bíblia não é um livro sobre crenças ou doutrinas para serem cridas. Por conta disso, o objetivo do estudo da Torá NÃO é comprovar um conjunto de doutrinas. Ao contrário, a Torá é estudada como que ‘por ela mesma’, no sentido de uma elucidação textual e literária.
Ao invés de chegar com questões mais gerais sobre a natureza de Deus ou do Messias e encontrar porções na Escritura que amparassem doutrinas específicas sobre essas questões, a metodologia rabínica faz perguntas muito concretas a textos concretos das Escrituras, com o intuito de extrair as várias formas nas quais cada linha das Escrituras (ou da Tradição Oral) pode ser entendida. Isso pode ir desde aspectos gramaticais do hebraico utilizado, até discussões sobre as motivações dos personagens bíblicos, passando pela análise de uma série de intertextualidades, e assim por diante.
Conclusão: judaísmo é METODOLOGIA, não doutrina.
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