[106] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 53- RESUMO da série inteira com suas conclusões principais
A série “Homossexualidade e Bíblia Hebraica” finalmente chega ao fim.
Foram 39 posts para falar diretamente da Bíblia Hebraica e da chave adequada para lê-la (a discussão oral judaico-rabínica, ‘acadêmico-tradicional’, com aportes da pesquisa acadêmica moderna).
Depois se seguiram 11 posts para comentar o Novo Testamento dos cristãos, que remete à Bíblia Hebraica mas cujos escritos divergem dela em grau maior ou menor. Mostrei inclusive como analisar o Novo Testamento à luz da Bíblia Hebraica e da tradição rabínica lança muita luz sobre como o Novo Testamento lida com o tema de forma menos restritiva do que a tradição cristã posterior (a qual já era esmagadoramente helenista em termos culturais).
Por fim, vieram 2 posts para comentar temas aparentados ao da homossexualidade: intersexo e transsexualidade, à luz da Bíblia Hebraica e da tradição judaica. Não analisei ali o Novo Testamento cristão, mas mencionei que não encontro nada no Novo Testamento cristão que pudesse servir de objeção ao que apresentei nesses posts.
A que conclusões chegamos nessa série?
No primeiro post desta série, o [54], deixei a pergunta no ar: Será que realmente a Bíblia Hebraica proíbe de forma absoluta a homossexualidade e, pior ainda, estimula o ódio contra homossexuais (e pessoas LGBT de maneira geral)?
A resposta é um contundente ‘não!’.
Provavelmente quase tudo que você achava que sabia sobre a Bíblia estava errado.
A esmagadora maioria da Bíblia Hebraica literalmente não contém nenhuma proibição à questão homoerótica masculina (post [55]), com a única exceção sendo o livro de Levítico que contém uma proibição apenas e exclusivamente ao sexo anal entre dois homens (post [56]).
O livro de Levítico não proíbe atos sexuais não penetrativos entre homens. Referida proibição foi desenvolvida apenas no contexto da tradição judaica oral, como uma forma de ‘criar cercas’ para evitar a realização do ato realmente proibido em Levítico, que, como já afirmei, era única e exclusivamente o sexo anal entre dois homens. Assim, a proibição preventiva ao homoerotismo masculino não-penetrativo é de caráter rabínico, não bíblico (post [57]).
Não existe nenhuma proibição ao homoerotismo feminino em literalmente lugar nenhum da Bíblia Hebraica inteira (post [55]). Isso inclui o próprio livro de Levítico, que contém apenas uma proibição específica ao homoerotismo masculino (o sexo anal entre homens), mas nenhuma proibição referente à lesbianidade, nem direta nem indiretamente (post [58]).
Uma proibição à lesbianidade no contexto judaico não aparece nem na Bíblia Hebraica e nem no Talmude, surgindo apenas com as Codificações de Lei Judaica durante a Idade Média (após ano 1.000), mais especificamente pelo entendimento de Rambam/Maimônides, assim referida proibição é de caráter meramente rabínico, sem nenhuma conexão a nenhum ato sexual proibido da própria Torá (post [59]).
A proibição rabínica à lesbianidade surgida no Medievo não abrange todos os atos lésbicos, mas apenas aqueles que ‘imitam’/parecem com a penetração pênis-vagina (post [60]).
A a inteira linhagem de tradição judaica que começa na Bíblia Hebraica (mais especificamente, o livro de Levítico) e desagua no Talmude e nos comentaristas medievais (da Bíblia Hebraica e do Talmude) NÃO fala de homossexualidade e nem mesmo de atos homossexuais como uma categoria unificada de ‘atos sexuais com pessoas do mesmo sexo’. Em suma, a Bíblia não fala sobre a homossexualidade atual, e nem sequer usa a categoria da homossexualidade (post [61]).
A tradição judaica recorta o que para nós hoje seria a homossexualidade em cinco categorias diferentes, muitas das quais são mais próximas de outros atos heterossexuais do que de homossexuais: o sexo anal entre homens estava numa categoria (post [56]), o sexo não penetrativo entre homens e a masturbação numa segunda categoria (posts [57]-[74]) que intersecciona com uma terceira categoria que abrange sexo não penetrativo entre homens e sexo não penetrativo incestuoso ou adúltero (post [82]), o sexo entre lésbicas que parecesse a penetração pênis-vagina e o sexo entre uma mulher e um menino uma quarta categoria (post [60]), e outros tipos de sexo entre lésbicas ainda uma quinta categoria!
A Bíblia não fala de hipóteses que se tornaram mais marcantes socialmente apenas milênios depois de sua escrita (pois a homossexualidade como vivenciada no mundo antigo era muito diferente da do mundo moderno), e seus escritores sequer sabiam de fatos muito importantes sobre a formação da orientação sexual no desenvolvimento infantil, de forma automática e não sujeita a controle consciente. Tudo isso pode e deve ser usado para avaliar tais casos ‘novos’, como a tradição judaica sempre enfatizou ao destacar o caráter jurisprudencial da Torá, que precisa ser desenvolvida por meio de raciocínio humano (post [61]).
Por que o livro de Levítico contém uma proibição ao sexo anal entre homens? Enumerei três razões, cada uma ajudando a entender o porquê da proibição 1) ser sobre homossexualidade masculina, ao invés da feminina, e 2) ser sobre o sexo anal, ao invés de outros tipos de homoerotismo (post [62]).
A primeira razão era a de acabar com a prática da prostituição ritual como forma de culto no Antigo Israel (post [64]), o que é indicado pelo uso do termo ‘toevah’ (geralmente traduzido como ‘abominação’, mas melhor traduzido como ‘tabu’) relacionado a falhas rituais que eram práticas idólatras de povos vizinhos, não tendo uma conotação moral (post [63]).
Esse contexto relativo à prostituição ritual reforça a conclusão de que o motivo para que não haja repetição da proibição de Levítico ao sexo anal entre homens em nenhum outro lugar da Bíblia Hebraica, nem mesmo no livro de Deuteronômio que fala sobre prostituição ritual, é que os outros livros da Bíblia Hebraica NÃO pressupõem essa proibição (post [64]). Isso vale independentemente se Moisés foi ou não o autor da Torá, ou se a Torá teve um só autor (tradicionalmente visto como Moisés) ou múltiplos autores, como entende hoje a pesquisa acadêmica moderna (posts [64]-[65]).
Evitar a prostituição ritual é uma razão para a proibição de Levítico independentemente se a prostituição masculina era ou não realmente disseminada entre os vizinhos do Israel antigo, pois referida explicação depende apenas que o autor do Levitico achasse que existia tal prática em terras israelitas, ou temesse que ela existisse ou viesse a existir (post [67]).
A segunda razão para a proibição de Levítico era o o caráter humilhante atribuído ao sexo anal entre homens: em diversas culturas do mundo antigo, o ativo era visto como superior, e o passivo como inferior, de modo que o ato sexual anal envolvia uma humilhação social do passivo, inferiorizado por tal ato; nesse sentido a proibição do Levítico bania um tipo de ‘humilhação’ como entendida na época (post [68]).
Na própria Bíblia Hebraica os momentos nos quais mais se chega perto de descrever um ato sexual anal entre homens (nunca descrito nela) ocorre em 2 trechos sugerindo a ameaça do estupro de um homem contra outro, por meio de sexo anal, um deles contido na história de Sodoma e Gomorra (post [68]).
Ao contrário do que muitos dizem por aí, a história de Sodoma e Gomorra não é sobre sexo gay, mas sim sobre injustiça econômica, tendo sido entendida assim desde sempre na tradição judaica, que preservou esse entendimento até os dias de hoje, na qual um ‘sodomita’ (middat Sedom) é alguém que se recusa a ajudar um necessitado quando a generosidade não custará nada à pessoa (post [69]).
Tudo que a Bíblia Hebraica de fato retrata na questão homossexual de maneira negativa é o ato sexual anal entre 2 homens num contexto seja de idolatria seja de estupro/humilhação, assim, nunca aborda o caso da homossexualidade afetiva nem masculina nem feminina. Mas alguns entendem que talvez haja uma sutil indicação de um homoerotismo afetivo na história da amizade entre Davi e Jônatas, mas provavelmente não envolvendo sexo anal; e, no caso lésbico afetivo, o mais próximo disso estaria na história da amizade entre Rute e sua sogra Noemi (post [70]).
A cultura judaica há três milênios é uma cultura com um ethos fortemente igualitário, em termos econômicos e sociais, especialmente entre pessoas do sexo masculino. Temos várias evidências que desde a etnogênese do antigo Israel já havia tal ethos igualitário nessa cultura, onde a subordinação social é vista como indesejável e como algo a ser eliminado ou pelo menos minorado. Tal ethos depois vai afetar mesmo questões de sexualidade se estas sinalizassem tais contextos ilegítimos de hierarquização e/ou associados a povos vistos como hierárquicos, como foi no caso do sexo anal entre homens (post [71]).
Esse aspecto da humilhação no entendimento da proibição de Levítico foi reforçado no contato da cultura judaica-nativa com a cultura helenista, greco-romana, na qual a vivência homossexual era muito diferente da moderna. Assim, os rabinos desse período passaram a entender o texto do Levítico (escrito de uma maneira geral, isto é, sem especificar um contexto) como aplicando-se a quaisquer casos de sexo anal entre 2 homens com o intuito de rejeitar 1) a desigualdade entre homens na esfera íntima e 2) o vínculo da masculinidade a uma sexualidade predatória baseada em poder, ambas associadas ao sexo anal entre 2 homens no mundo greco-romano (post [72]).
A relação entre Bíblia Hebraica e Tradição Judaica é menos a de ‘Bíblia primeiro, Tradição segunda’, mas sim de um feedback mútuo entre tradições orais e textos escritos que vai ao final resultar num texto escrito canônico estável (a Bíblia Hebraica) com um conjunto de tradição oral canônica que a interpreta e complementa (a Tradição Rabínica, que vai depois ser escrita no Talmude e no Midrash). Por coincidência uma interpretação tradicional canônica para o livro de Levítico só se tornou possível após a cultura judaica já ter entrado em contato com a cultura helenista, então a maneira como o sexo anal entre homens era vivenciada nessa cultura afetou a maneira como Levítico obteve seu primeiro significado ‘canônico’, mesmo que o texto em si tivesse sido escrito séculos antes desse contato (post [73]).
A terceira razão para a proibição de Levítico era o caráter pró-natalista da Lei Judaica desde suas origens na formação dos textos bíblicos e em sua recepção interpretativa canônica, sendo esta razão meramente acessória às outras duas já discutidas (post [74]).
Fechado esse tópico das razões para a proibição de Levítico, discuti alguns tópicos mais específicos dentro desse assunto:
- a questão da pena de morte para praticantes de sexo anal entre homens não é o que você pensa, sendo pensada processualmente de tal modo que fosse inaplicável na prática e de fato nunca sequer aplicada na prática (post [75]);
- durante a Idade Média, rabinos de renome escreviam poesia homoerótica na Espanha Islâmica (post [76]);
- a proibição de Levítico não se aplica diretamente aos não-judeus, mas se aplica a eles indiretamente via as chamadas ‘Leis de Noé’, elaboradas na tradição rabínica, se referindo única e exclusivamente ao sexo anal entre homens (post [77]);
- a Bíblia Hebraica e a tradição judaica têm uma postura positiva em relação à sexualidade recreativa, voltada ao prazer mútuo inclusive da mulher e não se restringindo apenas à penetração. Assim, a maneira como essas fontes se relacionam com a temática da homossexualidade não tem nada a ver com uma postura negativa em relação à sexualidade, nem com uma desconsideração do prazer sexual feminino, nem por uma desvalorização de atos sexuais não penetrativos (post [78]).
Discutido esses tópicos, restou falar de como os movimentos judaicos contemporâneos se relacionam com a questão da homossexualidade (post [79]).
O judaísmo ortodoxo askhenazi (e a posição sefardita tradicional) mantém as regras da Halacha Clássica (Jurisprudência Judaica Tradicional) no sentido de proibir toda forma de homoerotismo, seja masculino ou feminino, mas reconhecendo que a proibição mais grave se refere ao sexo anal entre 2 homens; sendo que, no caso sefardita, historicamente houve mais leniência (na prática) do que no meio askhenazi, e, atualmente, adota-se geralmente uma política ‘don’t ask don’t tell’ em relação aos judeus homossexuais membros de comunidades ortodoxas (post [80]).
Entretanto, existem posições vanguardistas entre os ortodoxos modernos (post [81]) e sefarditas tradicionais (post [82]) que defendem tanto a legitimidade de certas formas de homoerotismo como a realização de casamento judaico ortodoxo entre parceiros do mesmo sexo de uma perspectiva de Halacha, focada na inviabilidade prática e efeitos negativos de impor abstinência aos homossexuais (post [83]).
O judaísmo conservador/masorti mantém a Halacha mas com atualizações feitas por um procedimento formal rabínico que permite a rediscussão da Halacha; a Halacha conservadora atual (post [84]) permite as relações homoafetivas exceto pela proibição bíblica do sexo anal entre homens (post [85]), e também permite o casamento homossexual judaico (post [86]), enquanto preserva a possibilidade das comunidades locais se quiserem podem optar por manter a linha mais clássica (ortodoxa).
A justificativa para essas mudanças na Halacha dentro do judaísmo conservador são dadas pelo princípio da dignidade humana tal como encontrado no Talmude, que permite derrubar permanentemente quaisquer regras rabínicas e, às vezes, suspender regras bíblicas; contudo, uma suspensão permanente de uma regra bíblica demandaria também um decreto rabínico em termos formais (post [85]).
A diferença entre ortodoxos modernos e conservadores no que diz respeito à homossexualidade refletem diferenças na maneira como se associam à chamada Teologia da Akedá, segundo a qual mandamentos bíblicos valem mesmo se contrários à moralidade. Ortodoxos modernos aceitam tal posição, mas conservadores consistentemente a rejeitam: se uma regra da Torá parece ser contrária à moralidade, nós temos de mudar nosso entendimento da própria regra em questão, pois o entendimento anterior ser contrário à moralidade é evidência de que ele é um entendimento incorreto da Torá (post [87]).
Os sábios do Talmude estariam afinados com tais posições vanguardistas (seja ortodoxa moderna ou conservadora) se vivessem hoje? Existem evidências fortes de que tais posições representam melhor o espírito que animava a discussão de precedentes e de exegese feitas pelos sábios do Talmude enquanto produziram o material-fonte da Halacha clássica, uma vez que nem mesmo é claro que os sábios do Talmude proibissem os atos homoeróticos masculinos não-penetrativos (talvez em alguma medida legitimassem sua prática, como sugere o acadêmico judeu ortodoxo Daniel Boyarin) e claramente não proibiram atos homoeróticos femininos (post [88]).
O judaísmo reformista e o judaísmo reconstrucionista dão mais peso à ética judaica do que à jurisprudência judaica tradicional no contexto contemporâneo (enquanto ainda preservam algum papel para a Halacha, seja voluntário ou ‘reconstruído’), e por isso permitem plenamente as relações homoafetivas (incluindo a prática do sexo anal entre homens) e o casamento homossexual judaico com base em considerações éticas e descobertas científicas (post [89]).
Os sábios do Talmude, e mesmo os escritores do livro de Levítico, se vivos estivessem hoje, adotariam uma posição de ética judaica em consonância com a reformista e a reconstrucionista, no que diz respeito à homossexualidade? Deve-se considerar o aspecto reformador dos rabinos talmúdicos, os quais em muitas instâncias modificaram e adaptaram normas e princípios considerando as necessidades de sua época ou como melhor fazer a vida judaica ser nas circunstâncias nas quais estavam, e a forte preocupação social com os vulneráveis dos escritores de Levítico. De posse dos fatos que conhecemos hoje, é plausível que os rabinos do Talmude e mesmo os escritores de Levítico fossem reformistas hoje na questão da homossexualidade (post [90]).
A principal diferença entre a posição reformista/reconstrucionista e a posição dos conservadores e de parte da Ortodoxia Moderna (daqueles ortodoxos que oficiam casamento homoafetivo) reside no conceito usado para decidir sobre a homossexualidade com base na Torá. Os ortodoxos modernos e os conservadores insistem em usar as categorias fragmentárias da Halacha para discutir a homossexualidade, enquanto os reformistas e reconstrucionistas ‘viram o jogo’: se nós adotamos hoje uma definição moderna de orientação sexual que está solidamente fundamentada numa série de evidências e fatos empíricos, então nós precisamos refletir sobre a consequência de adotar diretamente esse framework conceitual ao pensar esses casos em termos de Torá (post [91]).
Antes de passar para a discussão do Novo Testamento cristão, foi necessário esclarecer que, da perspectiva da Bíblia Hebraica e do judaísmo, a questão de se homossexuais vão para o inferno não faz sentido, porque nenhum desses aceita a ideia de inferno (post [92]).
Passando para a discussão do Novo Testamento cristão e de como ele se relaciona ao que vimos sobre a Bíblia Hebraica, o primeiro ponto a destacar é que, mesmo se a pessoa for cristã, a questão do que a Bíblia Hebraica afirma não é questão de fé ou crença. Mesmo um cristão precisa aceitar o que já mostrei nesta série, no que diz respeito à Bíblia Hebraica, dado o peso da evidência apresentada; e a concepção cristã majoritária é diferente da judaica por conta de um problema linguístico e cultural que tornou a Bíblia Hebraica no original inacessível por mais de 1 milênio à maioria dos cristãos (post [93]).
Já quanto ao Novo Testamento cristão, vemos que grande parte dos seus escritos não pressupõem uma proibição ou condenação à questão homossexual, com exceção de 3 trechos encontrados em 3 cartas de Paulo (post [94]). Comparando preliminarmente Paulo (no Novo Testamento cristão) e o livro de Levítico (na Bíblia Hebraica), percebemos que Paulo traz um ar mais moral e metafísico à questão do que o livro de Levítico, que era mais mundano e jurídico-ritual (post [95]).
Analisados os 3 trechos encontrados em epístolas de Paulo, chegamos às seguintes conclusões:
- O termo ‘Malakoi’ em 1Coríntios não tem nenhuma relação com a questão homossexual, não sendo referência sequer a algo sexual. Mas caso tivesse alguma relação com a questão homossexual (apenas a masculina, como todos nesse debate concordam), não há evidência de que iria além da proibição de Levítico na Bíblia Hebraica, que proibira apenas e exclusivamente o sexo anal entre homens (post [96]);
- O termo ‘Arsenokoitai’ em 1Coríntios e em 1Timóteo faz referência a algo sexual, provavelmente de teor homoerótico, mas talvez não necessariamente homoerótico, e parece envolver algum tipo de exploração de prostitutos ou subordinados. Também aqui não há evidência de que iria além da proibição de Levítico na Bíblia Hebraica, que proibira apenas e exclusivamente o sexo anal entre homens (post [97]);
- A referência em Romanos às mulheres que abandonaram o ‘uso natural’ provavelmente não é homoerótica mas sim heterossexual, então considero que Paulo não faz nenhuma referência à lesbianidade em suas cartas, mas seu linguajar acabou abrindo a brecha para uma interpretação posterior nesse sentido (post [98]);
- A referência em Romanos às relações sexuais entre homens como consequência da idolatria não indica se no escopo dessas relações se estaria pensando algo além do sexo anal entre homens. Paulo tem uma linguagem muito vaga e sua tendência anti-sexual mais genérica (seja por influência estóica ou de sua visão apocalíptica da iminência do fim) também não ajuda aqui. Mas certamente a maneira que Paulo conceitualiza a homossexualidade masculina é em termos de como ela era vivenciada na cultura helenista, não abordando o caso da homossexualidade masculina tal como vivenciada na cultura moderna (post [98]);
- Talvez essas referências de Romanos sejam parte de uma interpolação e não estivessem na carta original de Paulo, mas isso não é confirmado (post [98]).
A posição de Paulo não deve ser considerada equivalente à posição do Novo Testamento cristão, uma vez que: 1) existem tensões no Novo Testamento entre os escritos mais judaico-nativos e os escritos mais judaico-helenistas, entre os quais encontram-se as cartas de Paulo; 2) não existe uma prioridade dos escritos de Paulo sobre os demais escritos; 3) Paulo apresenta explicitamente ênfases e opiniões próprias em suas cartas. Assim, a omissão dos outros escritos do escritos acerca da questão homossexual deve ser entendida como tendo tanto peso e sendo tão significativa quanto a opinião mais explícita feita por Paulo nessas três cartas. Se Paulo dava muita importância à essa questão, até por em geral ter um tom mais negativo em relação à sexualidade, isso não significa que o resto do Novo Testamento concorde com essa postura ou que um cristão seja obrigado a seguir Paulo em tudo (post [99]).
Em todos os Quatro Evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João) encontrados no Novo Testamento cristão, Jesus nunca fala nada sobre o homoerotismo. Logo, literalmente não encontramos nenhum dito de Jesus condenando qualquer tipo de relação homoerótica, ou estabelecendo regras nesse âmbito. o silêncio de Jesus faz sentido à luz da perspectiva judaica, uma vez que Jesus era um rabino que discutia em termos da tradição judaica oral, e, assim, tudo o que eu falei anteriormente sobre a Bíblia Hebraica e sobre a tradição judaica rabínica aplica-se ao rabino Jesus de Nazaré (post [100]).
A carta de Judas faz uma referência à história de Sodoma e Gomorra entendendo que houve um pecado sexual por detrás de sua destruição, mas o referido pecado ‘de ir após outra carne’ nessa carta não se refere a sexo gay, e sim a sexo com anjos, seguindo a interpretação de 1Enoque, um escrito judaico ‘apócrifo’ segundo a qual certos anjos rebeldes foram aprisionados no Tártaro por terem tido relações sexuais com humanas, o que seria paralelo à tentativa dos habitantes de Sodoma de estuprar anjos visitando a cidade (post [101]).
Em termos de Novo Testamento, a questão não é se homossexuais vão para o inferno sofrer eternamente, mas sim se eles estão condenados à morte eterna, que era entendida como uma aniquilação final (post [102]).
A concepção de ‘sodomia’ que ainda persiste no mundo ocidental dentro das igrejas teologicamente conservadoras não é encontrada no Novo Testamento, sendo fruto da tradição cristã posterior medieval, já totalmente helenizada e muito afastada da raiz judaica. Tal concepção conflita com a concepção moderna de orientação sexual, e sua persistência nas igrejas cristãs é fruto de mera inércia ideológica, provavelmente por razões demográficas, apesar de toda a inconsistência e incoerência de manter tal posicionamento nos dias de hoje (post [103]).
Para terminar a série, resolvi abordar dois tópicos paralelos, o das pessoas interssexuais (intersexo) e o das pessoas trans (transsexualidade) sob a perspectiva da Bíblia Hebraica e da tradição judaica.
Enquanto nenhuma dessas fontes discuta diretamente esses fenômenos tal como os entendemos hoje, mostrei como essas fontes aceitavam categorias sexuais para além das de macho/homem e fêmea/mulher, que hoje classificaríamos como envolvendo pessoas interssexuais (post [104]), e que ambas também admitiam a possibilidade de transição de sexo/gênero, que hoje classificaríamos como envolvendo pessoas trans (post [105]).
Assim, não há nem na Bíblia Hebraica nem na tradição judaica nenhuma condenação às pessoas interssexuais nem às pessoas trans, e o mesmo se estende ao Novo Testamento cristão (posts [104]-[105]).
Conclusão: na Bíblia não existe uma condenação absoluta à homossexualidade, ao contrário do que divulgam por aí. A evidência compilada nesses 52 posts comprova isso.
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