[150] A Torá fala dos Messias? (Gênesis a Deuteronômio)
Como afirmei no post anterior, a concepção judaica rabínica sobre a noção de Messias deu continuidade orgânica às diversas vozes dentro da Bíblia Hebraica que falam da esperança numa redenção final de toda opressão, em favor do povo de Israel e de toda a humanidade. Contudo, é útil analisarmos cada parte das Escrituras Hebraicas para investigar se ou não a esperança messiânica aparece ali, e até que ponto. Assim, ficará claro quais foram os blocos de construção que depois, na tradição oral judaica, conduziram à ideia dos Messias de Israel. (No plural, como explicado no post anterior)
Antes de adentrar no tópico, é preciso observar que a Ordem Judaica dos livros da Bíblia Hebraica é diferente daquela que se encontra no “Velho” Testamento de uma Bíblia Cristã. Mesmo que no caso cristão protestante, os livros do “Velho” Testamento sejam exatamente os mesmos da Bíblia Judaica, a ordem dos livros é diferente. Isso pode parecer um detalhe menor, mas na verdade essa alteração tem um impacto significativo no entendimento. Por conta disso, aqui será usada a divisão original, i. e. judaica, dos livros da Bíblia Hebraica em 3 coletâneas: 1) Torá; 2) Neviim/Profetas; 3) Ketuvim/Escritos. Revise o post [112] se preciso.
Outro ponto preliminar é que a Bíblia Hebraica NÃO se preocupa com salvação espiritual da alma, e em verdade a própria questão da vida após a morte praticamente NÃO ocorre nela (com a grande exceção do livro mais tardio, o de Daniel, que se refere a uma ressurreição de ‘alguns’ num futuro indeterminado, sem, porém, fornecer nenhuma doutrina sistemática a respeito). Revise os posts [27]-[28] se preciso. Tudo o que esses livros se preocupam é com esta vida aqui e agora. Geralmente essa concepção existencial está no background. O destino de alguém após a morte sequer é cogitado. Nós simplesmente vemos uma sucessão de vidas e gerações. Pessoas indo e vindo numa história comunitária. A grande questão é a persistência da comunidade. O indivíduo morre, mas a comunidade permanece — e assim permanece também o seu legado para a continuação dessa história. Isso é relevante para entender porque a ideia de Messias se desenvolverá.
A Torá fala sobre os Messias? A resposta simples — e que pode assustar muita gente — é “não”. Os primeiros 5 livros da Bíblia Hebraica — cujo papel é o de livros da Aliança entre Israel e seu Deus, contendo a Instrução (Torá) da Aliança— não trazem ainda uma esperança messiânica. Isso não impede que, sob níveis interpretativos menos diretos, possamos conectar pontos da Torá com a esperança messiânica. Mas a esperança ela mesma não aparece originalmente ali.
Esse ponto pode assustar algumas pessoas porque muitas foram ensinadas que a esperança messiânica apareceria logo nos primeiros capítulos do Gênesis, na maldição da serpente. Entretanto, isso é incorreto. Já fiz um post sobre isso (o [127]) e remeto o leitor para a exposição mais aprofundada feita ali. Aqui apenas saliento que a maldição a respeito da serpente ser pisada na cabeça é diretamente sobre quaisquer seres humanos e quaisquer serpentes, simplesmente uma declaração de que as serpentes, se arrastando pela terra, seriam suscetíveis a serem pisadas pelos seres humanos. Num sentido mais indireto, isso pode remeter a uma experiência de redenção, mas não à messiânica, e sim à que aparece na própria Torá: a Libertação da escravidão no Egito, na qual o povo de Deus (sob a liderança dos levitas: Moisés, Arão e Miriã à frente) derrota o Faraó do Egito.
Apesar desse diagnóstico negativo, sem a Torá é difícil entender a esperança messiânica que depois será acrescentada gradativamente dentro da Bíblia Hebraica. A Torá apresenta elementos sobre os quais a esperança messiânica vai trabalhar. Vamos analisar isso a seguir.
É preciso aqui ler nas entrelinhas da Torá. Para isso, é preciso distinguir entre os 4 primeiros livros (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números) e o último livro (Deuteronômio).
Em relação aos 4 primeiros livros (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números), vemos ali 2 tradições concorrentes a respeito da liderança do povo de Israel no sentido civil. Uma dessas tradições favorece a figura de José e a tribo de Efraim (um dos filhos de José). Já a outra favorece a figura de Judá e a tribo respectiva de Judá. Ainda temos uma terceira tradição que foca nos levitas (a 13ª tribo de Israel, que não entra na contagem com as 12 tribos de Israel por não ter herança na terra). Se você quiser, pode pensar isso em termos das fontes da Hipótese Documentária a respeito da composição da Torá: o Javista é a tradição que favorece Judá, o Eloísta é a tradição que favorece José/Efraim, e a Fonte Sacerdotal a tradição que favorece os levitas. (Mas não é necessário aceitar a hipótese documentária para reconhecer essa distinção que estou trazendo)
No caso dos levitas, era inegável para todas essas tradições que os levitas desempenharam um papel fundamental tanto no Êxodo quanto nas Leis da Aliança, dada a figura de Moisés como líder inicial do povo naquela época. Além disso, era dos levitas que vinham os Sacerdotes que ministravam no Santuário, portanto, era natural ver levitas e sacerdotes como líderes religiosos por excelência. Tanto que a tradição que favorece os levitas nada mais é do que uma tradição que disciplina o santuário, as oferendas, etc.
Já no caso de Judá e Efraim, a tensão entre as tradições que favoreciam cada um desses respectivamente era mais séria. Israel teve 12 tribos territoriais (a dos levitas é excluída nessa contagem, por não ser territorial) e era possível discutir qual dessas tribos deveria ser a “Cabeça” das demais, conduzindo o povo como um todo (seja quando fosse preciso, seja de modo mais permanente).
Historicamente falando, 2 dessas tribos foram as que mais se sobressaíram sobre as demais no sentido de formarem lideranças político-militares que conduziriam as demais tribos: a de Judá, ao sul da terra de Israel/Canaã, e Efraim, ao norte da terra de Israel/Canaã. A tribo de Efraim tem a peculiaridade de ser a maior entre as 2 tribos ‘josefitas’: Efraim e Manassés, 2 tribos, são “José” (filhos de José), algo que entenderemos melhor abaixo.
Ok, apesar de eu ter explicado isso, na verdade a maneira como isso aparece na Torá é BEM mais sutil, por isso é fácil passar batido. Vou mostrar resumidamente como isso aparece ali.
No livro de Gênesis, as narrativas dos Patriarcas (Abraão, Isaque e Jacó) tentam elaborar como os ancestrais do povo de Israel e de outros povos aparentados ao redor de Canaã (Edom, Moab, Amon) entraram em contato inicial com o Deus de Israel, sob a promessa deste a Abraão e Sara. Pulando ao que mais nos interessa, o povo de Israel vem especificamente de Jacó, que teve 12 filhos. Dentre os 12 filhos, temos Judá, José e Levi.
Ocorre que, tecnicamente, as tradições israelitas entendiam que era Rúben o primogênito original de Jacó, com sua esposa Léia. Contudo, por motivos que não convém explicar aqui, houve uma reversão, onde Rúben perdera a primogenitura por ter agido mal para com seu pai Jacó. Note que o primogênito era visto como um “cabeça” dos irmãos, um líder: mas historicamente a tribo de Rúben não teve um destaque grande nesse quesito.
É aqui que as tradições começam a operar aquela tensão que eu havia mencionado. Existe no final do livro de Gênesis todo um arco referente a José, um dos filhos mais tardios de Jacó, mas que, contudo, era favorecido por Jacó por ser o primogênito de sua esposa Raquel (a esposa favorita; também não convém agora explicar esse “casos de família”).
Nesse arco, José, que acabara escravo no Egito por culpa de seus meio-irmãos (com exceção do irmão filho da mesma mãe, Benjamin, o caçula entre todos), numa reviravolta acaba se tornando vice-governador do Egito e isso o coloca como cabeça de seus irmãos no final das contas (quando Jacó e seus filhos todos tiveram de ir ao Egito por conta de uma fome generalizada).
No Egito, José havia tido 2 filhos: Manassés e Efraim. Manassés era primogênito de José. Contudo, quando Jacó, já velho e cego, quis abençoar aos filhos de José, ele, primeiro, adota ambos, e, segundo, coloca Efraim à frente de Manassés, mesmo que Efraim não fosse o primogênito:
“E Jacó disse a José: O Deus Todo-Poderoso me apareceu em Luz, na terra de Canaã, e me abençoou.
E me disse: Eis que te farei frutificar e multiplicar, e tornar-te-ei uma multidão de povos e darei esta terra à tua descendência depois de ti, em possessão perpétua.
Agora, pois, os teus dois filhos, que te nasceram na terra do Egito, antes que eu viesse a ti no Egito, são meus: Efraim e Manassés serão meus, como Rúben e Simeão;
Mas a tua geração, que gerarás depois deles, será tua; segundo o nome de seus irmãos serão chamados na sua herança.” (Gênesis 48:3–6)
“Vendo, pois, José que seu pai punha a sua mão direita sobre a cabeça de Efraim, foi mau aos seus olhos; e tomou a mão de seu pai, para a transpor de sobre a cabeça de Efraim à cabeça de Manassés.
E José disse a seu pai: Não assim, meu pai, porque este é o primogênito; põe a tua mão direita sobre a sua cabeça.
Mas seu pai recusou, e disse: Eu o sei, meu filho, eu o sei; também ele será um povo, e também ele será grande; contudo o seu irmão menor será maior que ele, e a sua descendência será uma multidão de nações.
Assim os abençoou naquele dia, dizendo: Em ti abençoará Israel, dizendo: Deus te faça como a Efraim e como a Manassés. E pôs a Efraim diante de Manassés.” (Gênesis 48:17–20)
“E eu tenho dado a ti um pedaço da terra a mais do que a teus irmãos, que tomei com a minha espada e com o meu arco, da mão dos amorreus.” (Gênesis 48:22)
Nesses poucos versos algo de muito significativo ocorre: Jacó adota Efraim e Manassés como se fossem filhos seus, substituindo a primogenitura de Rubén e colocando em seu lugar José por meio dos 2 filhos de José assim adotados. Assim, isso garantiria a José uma DUPLA PORÇÃO na herança de Jacó em Canaã, ou seja, a porção dobrada que era reservada ao primogênito nos costumes da época. Por isso, José seria contado 2 vezes entre as tribos de Israel no futuro: por meio das tribos de Efraim e de Manassés.
E mais do que isso: a primogenitura não só é revertida no caso de Rúben e José, mas também entre os próprios 2 filhos de José, Manassés e Efraim. Ao fim dessa benção de Jacó, José é tratado como primogênito diante de Rúben (que era o real primogênito da família) e Efraim é tratado como primogênito diante de Manassés (que era o real primogênito da família). Então essa tradição presente na Torá trata José, e mais especificamente Efraim, como a tribo a ter preponderância em sentido civil, político-militar sobre as demais.
Contudo, no próprio livro de Gênesis, também vemos a outra tradição que privilegiava Judá. Por exemplo, na história de Tamar que é colocada no meio do Arco de José (outra história muito interessante, mas que agora não convirá detalhar). Nessa história, se relata como Tamar conseguiu conceber filhos de Judá, fingindo-se de prostituta, mas com isso obtendo o direito que tinha por conta da Lei do Levirato a qual estava sendo negado ilegitimamente por Judá (novamente, muito interessante, mas não vou detalhar aqui).
Quem lê isso em Gênesis 38 pode até achar muito divertido e interessante, mas fica sem entender o que uma história aparentemente tão específica está fazendo ali. Mas a questão é que o Rei Davi, que será da tribo de Judá e aparecerá séculos adiante, vai traçar sua ancestralidade até essa relação entre Judá e Tamar. Ou seja, mesmo que a Torá NUNCA mencione o rei Davi, essa tradição dá destaque a Judá e Tamar e a descendência que veio disso, porque tem um olho em Davi. Inclusive o ancestral específico de Davi também é destacado em uma reversão da primogenitura, na qual o irmão gêmeo que era para sair por segundo consegue sair por primeiro:
“E aconteceu ao tempo de [Tamar] dar à luz que havia gêmeos em seu ventre;
E sucedeu que, dando ela à luz, que um pôs fora a mão, e a parteira tomou-a, e atou em sua mão um fio encarnado, dizendo: Este saiu primeiro.
Mas aconteceu que, tornando ele a recolher a sua mão, eis que saiu o seu irmão, e ela disse: Como tu tens rompido, sobre ti é a rotura. E chamaram-lhe Perez.
E depois saiu o seu irmão, em cuja mão estava o fio encarnado; e chamaram-lhe Zerá.” (Gênesis 38:27–30)
E ter um olho em Davi significa favorecer a preponderância de Judá em termos políticos-militares, uma vez que Davi e sua dinastia é quem será responsável por levar Judá a essa preponderância relativa dentro do povo de Israel.
Isso vai aparecer na bênção de Jacó aos seus filhos:
“Judá, a ti te louvarão os teus irmãos; a tua mão será sobre o pescoço de teus inimigos; os filhos de teu pai a ti se inclinarão.
Judá é um leãozinho, da presa subiste, filho meu; encurva-se, e deita-se como um leão, e como um leão velho; quem o despertará?
O cetro não se arredará de Judá, nem o legislador dentre seus pés, até que venha Siló; e a ele se congregarão os povos.
Ele amarrará o seu jumentinho à vide, e o filho da sua jumenta à cepa mais excelente; ele lavará a sua roupa no vinho, e a sua capa em sangue de uvas.
Os olhos serão vermelhos de vinho, e os dentes brancos de leite.” (Gênesis 49:8–12)
Aqui vemos que o mesmo Jacó que, antes aparecera privilegiando Efraim (José), agora privilegia Judá também. “O cetro não se arredará de Judá”, destacando que Judá seria a liderança legítima “para sempre”. Aqui vemos uma tradição que, novamente, está de olho em Davi e em seu esforço por unificar Israel sob seu manto (algo que duraria apenas até Salomão, seu sucessor direto), e de olho na dinastia de Davi que prosperará ao sul do território de Israel (enquanto o norte do território será governado por dinastias de Efraim)*.
Agora note: “O cetro não se arredará de Judá” pode ser lido como uma esperança pré-protomessiânica, na medida em que isso está na raiz da ideia do Messias filho de Davi, um descendente de Davi que trará a redenção definitiva para todo o Israel. De fato, a ideia original era muito mais despretensiosa que isso: uma esperança de (ou uma conclamação a) que a tribo de Judá sempre fosse a liderança máxima entre as tribos de Israel. Mas é desse início que virá a ideia do Messias filho de Davi como o Rei ou Cabeça do Israel Restaurado dentro da esperança messiânica tradicional.
Por outro lado, também a bênção à Efraim pode ser vista em tons pré-protomessiânicos. Além do já mencionado “o seu irmão menor será maior que ele, e a sua descendência será uma multidão de nações” para Efraim, ainda temos a bênção de Jacó a José:
“José é um ramo frutífero, ramo frutífero junto à fonte; seus ramos correm sobre o muro.
Os flecheiros lhe deram amargura, e o flecharam e odiaram.
O seu arco, porém, susteve-se no forte, e os braços de suas mãos foram fortalecidos pelas mãos do Todo-Poderoso de Jacó, o pastor do pai e dos filhos de Israel.
Pelo Deus de teu pai, o qual te ajudará, e pelo Todo-Poderoso, o qual te abençoará com bênçãos dos altos céus, com bênçãos do abismo que está embaixo, com bênçãos dos seios e da madre.
As bênçãos de teu pai excederão as bênçãos de meus pais, até à extremidade dos outeiros eternos; elas estarão sobre a cabeça de José, e sobre o alto da cabeça do que foi separado de seus irmãos.” (Gênesis 49:22–26)
Assim, essa promessa da proeminência que Efraim (José) teria, também há validação para a esperança judaica tradicional a respeito do Messias filho de José (tribo de Efraim), o qual atuaria em harmonia com o Messias filho de Davi (tribo de Judá), como vimos no post anterior. Novamente: a ideia começa muito mais despretensiosa, simplesmente uma esperança (ou conclamação) de proeminência da tribo de Efraim entre as demais.
Mais adiante na Torá, nos oráculos de Balaão (um não-israelita contratado para amaldiçoar a Israel, mas que apenas conseguiu abençoar os israelitas), encontramos mais um desses elementos pré-protomessiânicos.
“Então proferiu a sua parábola, e disse: Fala Balaão, filho de Beor, e fala o homem de olhos abertos;
Fala aquele que ouviu as palavras de Deus, e o que sabe a ciência do Altíssimo; o que viu a visão do Todo-Poderoso, que cai, e se lhe abrem os olhos.
Vê-lo-ei, mas não agora, contemplá-lo-ei, mas não de perto; uma estrela procederá de Jacó e um cetro subirá de Israel, que ferirá os termos dos moabitas, e destruirá todos os filhos de Sete.
E Edom será uma possessão, e Seir, seus inimigos, também será uma possessão; pois Israel fará proezas.
E dominará um de Jacó, e matará os que restam das cidades.” (Números 24:15–19)
Note que aqui não há menção de nenhuma tribo em específico, apenas que um “cetro”, i. e. um rei, surgiria dentro do povo de Israel e tomaria Edom por possessão. Aqui também existe a tentação para ler como uma profecia messiânica, mas, rigorosamente falando, a tradição está de olho em Davi e Salomão. De fato, basta comparar esse oráculo de Balaão com 2Samuel 8, a respeito de como Davi conseguiu derrotar os algozes edomitas e moabitas etc. que antes oprimiram Israel várias vezes.
Então, esse e o trecho anterior sobre Judá são muito corriqueiramente tratados como “messiânicos”, mas na verdade eles estão se referindo intertextualmente a Davi (que só vai aparecer por nome no livro de Samuel). Claro que Davi, como foi Ungido rei sobre Israel, pode ser chamado de um messias, um maschiach, como já expliquei no post anterior. Afinal, no original, messias/maschiach = ungido. Mas no sentido mais estrito de quando estamos falando da esperança messiânica tradicional, “O maschiach” seria um descendente de Davi que ainda vai aparecer.
Agora, entendido tudo isso, falta falar do 5º e último livro da Torá, o de Deuteronômio. Esse representa uma 4ª tradição, que, de fato, é uma reflexão sobre as tradições orais anteriores, mas que ela mesma já nasce escrita, literária. Sua localização é Jerusalém, a capital da dinastia de Davi, e a cidade na qual está localizada o Templo, e as linhagens sacerdotais-levitas mais proeminentes. Essa escola literária favorece o Templo de Jerusalém contra os Templos rivais do Norte (i. e. de Efraim) e mesmo contra outros templos em Judá mas fora de Jerusalém. Nós voltaremos a falar dessa fonte, o Deuteronomista, no próximo post quando abordarmos os livros históricos na coletânea dos Profetas, os quais também foram redatados pelos Deuteronomistas.
Agora, apesar dos deuteronomistas de fato favorecerem o Templo de Jerusalém sobre os demais, no livro do Deuteronômio Jerusalém nunca é citada por nome. O livro apenas se limita a afirmar que Deus irá escolher um lugar para ser o único no qual serão oferecidas as oferendas e o culto sacerdotal-levita, mas ali o lugar ainda não é selecionado, ficando em aberto.
De forma similar, o livro de Deuteronômio também fala na possibilidade de que, um dia, Israel tivesse um rei, mas não existe nenhuma restrição de tribo:
“Quando entrares na terra que te dá o Senhor teu Deus, e a possuíres, e nela habitares, e disseres: Porei sobre mim um rei, assim como têm todas as nações que estão em redor de mim;
Porás certamente sobre ti como rei aquele que escolher o Senhor teu Deus; dentre teus irmãos porás rei sobre ti; não poderás pôr homem estranho sobre ti, que não seja de teus irmãos.
Porém ele não multiplicará para si cavalos, nem fará voltar o povo ao Egito para multiplicar cavalos; pois o Senhor vos tem dito: Nunca mais voltareis por este caminho.
Tampouco para si multiplicará mulheres, para que o seu coração não se desvie; nem prata nem ouro multiplicará muito para si.
Será também que, quando se assentar sobre o trono do seu reino, então escreverá para si num livro, um traslado desta lei, do original que está diante dos sacerdotes levitas.
E o terá consigo, e nele lerá todos os dias da sua vida, para que aprenda a temer ao Senhor seu Deus, para guardar todas as palavras desta lei, e estes estatutos, para cumpri-los;
Para que o seu coração não se levante sobre os seus irmãos, e não se aparte do mandamento, nem para a direita nem para a esquerda; para que prolongue os seus dias no seu reino, ele e seus filhos no meio de Israel.” (Deuteronômio 17:14–20)
O Deuteronomista, portanto, não tenta fundamentar as dinastias ou tribos principais de Israel na bênção patriarcal de Jacó (veja também a bênção de Moisés às tribos em Deuteronômio 33), entendendo que, durante todo o período de Moisés e mais além, quem seria o Rei legítimo para Israel estaria em aberto. Será apenas nos livros históricos que se sucederão a esse (e que examinaremos no próximo post) que o Deuteronomista traçará como contingentemente, tanto Judá quando Efraim terão direitos a essa preponderância real, com a prioridade de Judá.
É apenas o livro de Deuteronômio que normatiza a possibilidade de um rei, uma vez que as tradições orais muito mais antigas presentes em Gênesis-Êxodo-Levítico-Números haviam sido elaboradas antes da monarquia e concebem o povo de Israel sob a liderança de suas tribos específicos e de seus anciãos, sem precisar um governo central. O Deuteronomista também enfatiza o papel dos anciãos, nesse caso entendidos como juízes, mas reconhece a necessidade de que, se houver um rei (como de fato acabou tendo), há regras para esse caso também.
E de forma muito interessante, o Deuteronomista não encontrou uma base na Torá para entender que a regra da própria Torá acerca do rei restringisse de qual tribo poderia surgir um rei. Assim, do ponto de vista da Torá sozinha, não há obrigação legal para que os reis venham apenas de Judá, ou apenas de Efraim, e muito menos de uma família específica seja de Judá ou de Efraim. (E como veremos mais adiante, isso será relevante para entender a controvérsia entre judeus e samaritanos, com repercussões na questão messiânica)
Note também que falo “não encontrou uma base na Torá para entender que a regra da própria Torá acerca do rei” mesmo que tenha sido o próprio Deuteronomista a formular a regra em questão. O motivo é que a Torá, no contexto judaico, NÃO é uma legislação acabada caída do céu, mas sim uma jurisprudência viva a ser construída com base no raciocínio humano. Por isso, a Torá não é apenas aquilo que está escrito nesses 5 livros (“Torá escrita”), mas é a discussão e desenvolvimento de suas regras dentro de circunstâncias concretas (“Torá oral”). Quando a Torá escrita não estava completada ainda, por óbvio esse processo jurisprudencial repercutiu para dentro do texto. Mas mesmo quando estabilizado o conteúdo da Torá escrita, esse processo continuou dentro da Torá Oral, não-escrita (que depois recebeu uma estabilização escrita na Mishná, contudo, o processo oral continuou, e depois recebeu uma estabilização escrita na Guemará/Talmude, mas ainda assim o processo continuou e novos escritos surgiram e assim vai, num interplay contínuo entre oralidade e escrita).
Agora, o Deuteronomista acrescentou um elemento pré-protomessiânico a mais: a possibilidade de profetas que sucederiam Moisés.
“O Senhor teu Deus te levantará um profeta do meio de ti, de teus irmãos, como eu; a ele ouvireis;
Conforme a tudo o que pediste ao Senhor teu Deus em Horebe, no dia da assembléia, dizendo: Não ouvirei mais a voz do Senhor teu Deus, nem mais verei este grande fogo, para que não morra.
Então o Senhor me disse: Falaram bem naquilo que disseram.
Eis lhes suscitarei um profeta do meio de seus irmãos, como tu, e porei as minhas palavras na sua boca, e ele lhes falará tudo o que eu lhe ordenar.” (Deuteronômio 18:15–18)
No sentido mais prosaico possível, esse trecho se refere, mais simplesmente, à emergência de profetas nas gerações que se seguiriam à morte de Moisés, sendo que, mais imediatamente, também está de olho em Josué, o sucessor imediato de Moisés como líder tribal do povo inteiro, e que era da tribo de Efraim. Veremos no próximo post como também é possível ler esse trecho do Deuteronômio como tendo um olho no profeta Elias, o qual será um importante profeta do reino de Efraim, e que chegará a ungir um Rei desse reino. (Ou antes disso, um olho no profeta Samuel, que ungiu Davi como Rei)
A questão é que, em si mesmo, esse trecho não é messiânico, pois está falando potencialmente de diversos profetas que poderiam aparecer nas gerações seguintes, e não há aqui uma preocupação em que surja um Profeta “Definitivo” para ungir o Rei e o Sacerdote “definitivos” (como irá aparecer depois na tradição judaica, como vimos no post anterior). O Deuteronomista redige sua obra já sob influência do próprio profetismo israelita clássico (que veremos no post acerca dos livros proféticos da coletânea dos Profetas), e daí a relevância em discutir a profecia legítima versus a ilegítima.
Contudo, esse trecho é o mais próximo de trazer uma figura messiânica na Torá, por falar na vinda de profetas. Nem Rei nem Sacerdote vindouros, mas profetas vindouros para guiar o povo como fez Moisés. Disso para pensar em um Profeta Vindouro não é tão difícil (e veremos em breve como isso também influi na controvérsia entre judeus e samaritanos). Afinal, seria a esperança pela restauração daquela liderança profética ao estilo mosaico que Israel muitos séculos atrás tivera sob os auspícios de Moisés. E note que o trecho deixa em aberto a tribo de proveniência desses profetas para que os profetas surjam de quaisquer tribos de Israel, não precisando ser um levita como Moisés.
Por fim, outro aspecto distintivo do Deuteronomista é sua preocupação com o exílio judaico, que aparece apenas de forma muito sutil nos livros anteriores (onde o foco estava no exílio israelita passado no Egito, não em um exílio futuro).
É no Livro de Deuteronômio que primeiro vemos claramente articulada a esperança pelo retorno de um futuro exílio, esperança esta que depois se tornará a pedra fundamental da esperança messiânica. Isso transparece no último cântico de Moisés, o Cântico de Haazinu:
“Porque o Senhor fará justiça ao seu povo, e se compadecerá de seus servos; quando vir que o poder deles se foi, e não há preso nem desamparado.” (Deuteronômio 32:36)
“Jubilai, ó nações, o seu povo, porque Ele vingará o sangue dos seus servos, e sobre os seus adversários retribuirá a vingança, e terá misericórdia da sua terra e do seu povo.” (Deuteronômio 32:43)
Também vemos isso muito bem destacado após a lista das bênçãos e maldições da Aliança:
“E será que, sobrevindo-te todas estas coisas, a bênção ou a maldição, que tenho posto diante de ti, e te recordares delas entre todas as nações, para onde te lançar o SENHOR teu Deus,
E te converteres ao Senhor teu Deus, e deres ouvidos à sua voz, conforme a tudo o que eu te ordeno hoje, tu e teus filhos, com todo o teu coração, e com toda a tua alma,
Então o Senhor teu Deus te fará voltar do teu cativeiro, e se compadecerá de ti, e tornará a ajuntar-te dentre todas as nações entre as quais te espalhou o Senhor teu Deus.
Ainda que os teus desterrados estejam na extremidade do céu, desde ali te ajuntará o Senhor teu Deus, e te tomará dali;
E o Senhor teu Deus te trará à terra que teus pais possuíram, e a possuirás; e te fará bem, e te multiplicará mais do que a teus pais.” (Deuteronômio 30:1–5)
Mas note que essa esperança pela redenção do exílio é uma esperança por um ato de Deus Ele mesmo, não sendo ligada a nenhuma pessoa específica, seja rei, sacerdote ou profeta.
Assim, vemos que a Torá em si mesma não traz uma esperança messiânica, se preocupando basicamente com o cotidiano do povo de Deus, nos ciclos históricos de bênção e maldição. De fato, a Torá nem sequer pressupõe uma forma de governo monárquica para o povo de Deus (como aquela que vai inspirar a ideia messiânica central baseada no Rei Messias).
Contudo, a Torá lança alguns dos elementos que depois virão alimentar o imaginário messiânico: 1) a preponderância relativa de Judá e Efraim sobre as demais tribos; 2) o sacerdócio como distinto da liderança civil-político-militar do povo; 3) o surgimento de profetas dentre o povo; 4) o sistema de juízes como a instância mais básica do auto-governo judaico; 5) a temática do exílio e do retorno. E tudo isso sob o fio condutor de que Deus é o Redentor de Israel — não algum humano em específico.
Além disso, a redenção e a libertação divinas sempre são entendidas na Torá inteira de modo material, terreno, sociopolítico, ‘carnal’, ‘corporificado’. O centro nuclear da Torá é uma revolução sociopolítica pela qual escravos foram libertados daqueles que os oprimiam.
“No Êxodo 1–24, uma revolta religiosa e outra social vão claramente de mãos dadas. Um povo decide não mais aceitar passivamente sua difícil condição social porque ouviu dizer que um Deus, anteriormente desconhecido para ele (ao menos pelo seu verdadeiro nome), quer, em breve tempo, mudar a posição social desse povo. […] diante de nós, no Êxodo 1–24, temos um relato (embora muito deteriorado) da primeira revolução sociopolítica da história do mundo com base em ideologia.” (DUS, 1975, p. 28)
Veremos como todos esses elementos serão desenvolvidos nas próximas coletâneas da Bíblia Hebraica: os Profetas e os Escritos.
*Um exemplo muito interessante e sutil de como essa proeminência de Judá e de Efraim entre as tribos é articulada na Torá é que, na história dos 12 espias em Números, apenas 2 dos espias são favoráveis a entrar na terra prometida desde logo, enquanto os demais tentam convencer o povo a desistir de tentar viver na terra prometida. Como recompensa pela fidelidade demonstrada, esses 2 espias serão os únicos da geração acima de 20 anos que saiu do Egito a entrarem na terra prometida após os 40 anos no deserto. Seus nomes: Josué e Calebe. Adivinha as tribos? Efraim e Judá, respectivamente.
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