[151] Os Profetas falam dos Messias? História Deuteronomista (Josué a Reis)

A Estrela da Redenção
21 min readAug 16, 2021

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Dando continuidade ao meu objetivo de analisar a questão de como a esperança messiânica se dá ou não dentro da Bíblia Hebraica, e tendo analisado a Torá no post anterior, agora irei abordar os Neviim (Profetas), mais especificamente a primeira parte dos Neviim, conhecida como Profetas Anteriores.

Antes de adentrar no tópico, é preciso observar que a Ordem Judaica dos livros da Bíblia Hebraica é diferente daquela que se encontra no “Velho” Testamento de uma Bíblia Cristã. Mesmo que no caso cristão protestante, os livros do “Velho” Testamento sejam exatamente os mesmos da Bíblia Judaica, a ordem dos livros é diferente. Isso pode parecer um detalhe menor, mas na verdade essa alteração tem um impacto significativo no entendimento. Por conta disso, aqui será usada a divisão original, i. e. judaica, dos livros da Bíblia Hebraica em 3 coletâneas: 1) Torá; 2) Neviim/Profetas; 3) Ketuvim/Escritos. Revise o post [112] se preciso.

Outro ponto preliminar é que a Bíblia Hebraica NÃO se preocupa com salvação espiritual da alma, e em verdade a própria questão da vida após a morte praticamente NÃO ocorre nela (com a grande exceção do livro mais tardio, o de Daniel, que se refere a uma ressurreição de ‘alguns’ num futuro indeterminado, sem, porém, fornecer nenhuma doutrina sistemática a respeito). Revise os posts [27]-[28] se preciso. Tudo o que esses livros se preocupam é com esta vida aqui e agora. Geralmente essa concepção existencial está no background. O destino de alguém após a morte sequer é cogitado. Nós simplesmente vemos uma sucessão de vidas e gerações. Pessoas indo e vindo numa história comunitária. A grande questão é a persistência da comunidade. O indivíduo morre, mas a comunidade permanece — e assim permanece também o seu legado para a continuação dessa história. Isso é relevante para entender porque a ideia de Messias se desenvolverá.

Feitos esses esclarecimentos, vamos examinar os chamados Profetas Anteriores dentro dos Neviim da Bíblia Hebraica. São os livros de Josué, Juízes, [1–2]Samuel e [1–2]Reis. O gênero literário é o histórico, e tais livros percorrem em ordem cronológica a “Primeira História de Israel na Terra Prometida”, onde o povo de Israel é formado dentro da terra de Canaã como uma coligação de ‘tribos’ baseada numa aliança com seu Deus, habita séculos ali, mas acaba desterrada e exilada (o Norte/Efraim sob os assírios e o Sul/Judá sob os babilônios).

Outro aspecto importante para ter em mente é que tais livros também são conhecidos como História Deuteronomista, uma vez que, apesar de baseados em diversas tradições orais e fontes escritas, o redator do livro é o Deuteronomista (ou os Deuteronomistas), um círculo de escribas responsável também pelo livro de Deuteronômio constante da Torá, como já explicado no post anterior. Então, é possível puxar o Deuteronômio junto com esses livros históricos para entender melhor o que está em jogo nela.

Quando começamos a ler a História Deuteronomista/Profetas Anteriores, a liderança do povo inteiro ou de partes deles é de caráter não-hereditário, em coalizões temporárias das 12 tribos de Israel. Por séculos, não houve um regime monárquico (i. e. liderança hereditária) e nem uma liderança central permanente ou semi-permanente.

Esquematicamente, Josué e Juízes apresentam esse regime político-militar não-hereditário, [1–2]Samuel começa ainda na liderança não-hereditária mas rapidamente mostra a transição para a monarquia hereditária e sua consolidação entre os israelitas, por fim [1–2]Reis mostra como a monarquia hereditária perdurou por séculos numa divisão entre o Norte (sob preponderância da tribo de Efraim/José) e o Sul (sob preponderância da tribo de Judá).

Dessa forma, temos uma 1ª informação importante para a questão messiânica: quando a História Deuteronomista começa, o único cargo hereditário é o de Sacerdote, entre famílias da tribo de Levi. O cargo de rei/líder hereditário não existe. Mas já existe o cargo do profeta. Os líderes não-hereditários (os “juízes”) que conduziram Israel ou parte dele, libertando Israel de seus opressores sociopolíticos, são retratados como líderes militares e/ou civis-judiciais, e pelo menos alguns são explicitamente entendidos como profetas, inclusive agindo sob o “espírito do Eterno” em êxtase profético. Exemplos:

“E Débora, mulher profetisa, mulher de Lapidote, julgava a Israel naquele tempo.
Ela assentava-se debaixo das palmeiras de Débora, entre Ramá e Betel, nas montanhas de Efraim; e os filhos de Israel subiam a ela a juízo.” (Juízes 4:4,5)

Desceu, pois, Sansão com seu pai e com sua mãe a Timnate; e, chegando às vinhas de Timnate eis que um filho de leão, rugindo, lhe saiu ao encontro.
Então o Espírito do Senhor se apossou dele tão poderosamente que despedaçou o leão, como quem despedaça um cabrito, sem ter nada na sua mão; porém nem a seu pai nem a sua mãe deu a saber o que tinha feito.” (Juízes 14:5,6)

A referência a Débora merece um rápido parêntesis. O Cântico atribuído a essa Grande-Juíza de Israel é considerada academicamente como o estrato de tradição mais antigo de toda a Bíblia Hebraica. O Cântico de Débora foi composto por volta de 1.200–1.100 AEC, no próprio início do Israel Antigo enquanto um povo identificável. E nesse cântico a temática da redenção sociopolítica e material do povo judeu já se fazia presente, mas sem atribuir sua realização a nenhuma figura em específico, e sim a Deus e a aqueles entre seu povo que se dispuseram a resistir contra seus opressores.

“Louvai ao Senhor pela vingança de Israel, quando o povo se ofereceu voluntariamente. […] Os montes se derreteram diante do Senhor, e até Sinai diante do Senhor Deus de Israel.
Nos dias de Sangar, filho de Anate, nos dias de Jael cessaram os caminhos; e os que andavam por veredas iam por caminhos torcidos.
Cessaram as aldeias em Israel, cessaram; até que eu, Débora, me levantei, por mãe em Israel me levantei. […] Bendita seja entre as mulheres, Jael, mulher de Héber, o queneu; bendita seja entre as mulheres nas tendas.
Água pediu ele, leite lhe deu ela; em prato de nobres lhe ofereceu manteiga.
À estaca estendeu a sua mão esquerda, e ao martelo dos trabalhadores a sua direita; e matou a Sísera [opressor de Israel], e rachou-lhe a cabeça, quando lhe pregou e atravessou as fontes.
Entre os seus pés se encurvou, caiu, ficou estirado; entre os seus pés se encurvou, caiu; onde se encurvou, ali ficou abatido.
A mãe de Sísera olhava pela janela, e exclamava pela grade: Por que tarda em vir o seu carro? Por que se demoram os ruídos dos seus carros?
As mais sábias das suas damas responderam; e até ela respondia a si mesma:
Porventura não achariam e repartiriam despojos? Uma ou duas moças a cada homem? Para Sísera despojos de estofos coloridos, despojos de estofos coloridos bordados; de estofos coloridos bordados de ambos os lados como despojo para os pescoços.

Assim, ó Senhor, pereçam todos os teus inimigos! Porém os que te amam sejam como o sol quando sai na sua força.” (Juízes 5:2, 5–7, 24–31)

Esse é um indicador de como, nos próprios inícios dessa história, YHWH o Deus de Israel era visto como um Deus Libertador e Redentor, que liberta da opressão, destruindo o opressor e levantando o oprimido.

Outro cântico também desse período, o Cântico de Ana, também dá voz à mesma concepção fortemente sociopolítica e material da redenção esperada das mãos do Deus de Israel ao longo da história:

O arco dos fortes é quebrado, mas os fracos são revestidos de força.
Os que tinham muito, agora trabalham por comida, mas os que estavam famintos, agora não passam fome. A que era estéril deu à luz sete filhos, mas a que tinha muitos filhos ficou sem vigor.
O Senhor é o que tira a vida e a dá; faz descer à sepultura e faz tornar a subir dela.
O Senhor empobrece e enriquece; abaixa e também exalta.
Levanta o pobre do pó, e desde o monturo exalta o necessitado, para o fazer assentar entre os príncipes, para o fazer herdar o trono de glória.” (1Samuel 2:4–8)

Retornando à temática mais geral, nos livros de Josué e Juízes a questão da preponderância relativa da tribo de Efraim para com a região norte da terra e da tribo de Judá para com a região sul da terra (que, como vimos, aparece sutilmente na Torá) ainda não é totalmente firmada. Contudo, o próprio Josué — o primeiro dos líderes não-hereditários na terra de Israel — era da tribo de Efraim. Só que nessa época a liderança global não era permanente, e o bastão circulou entre as tribos: Judá (Otniel), Benjamin (Ehud), Manassés (Gideão), Dã (Samsão), etc.

Outro ponto relevante é que não há traço da ideia de um Messias dinástico, simplesmente porque nem mesmo havia alguma dinastia estabelecida. Isso muda no livro de Samuel, quando o povo solicita um líder permanente e hereditário (para estar sempre a postos na luta contra filisteus e amalequitas), mas mesmo quando essa mudança ocorre, há uma desconfiança a respeito de se isso poderia acabar de forma ruim, dada o potencial opressivo de um Estado organizado, receio este vocalizado pelo último dos líderes tribais de Israel, o profeta Samuel (veja 1Samuel 8). Apesar disso, é Samuel quem unge os 2 primeiros Reis com pretensão de governar o inteiro Israel, primeiro, Saul (tribo de Benjamin), e depois, Davi (tribo de Judá), iniciando assim a divisão de cargos de Sacerdote, Rei e Profeta, onde o Profeta unge os Reis (e daí o termo “Ungido”, i. e. Messias ou Maschiach para quaisquer dos Reis Ungidos, para além de ser usado para os Sumo-Sacerdotes Ungidos).

No livro de Samuel, em termos de narrativa bíblica, aparecem duas tradições que mudam a história judaica para sempre. A tradição da aliança de Davi com o Deus de Israel, pela qual a família de Davi seria agraciada com um direito dinástico perpétuo. E a tradição da escolha de Sião (Jerusalém) para ser o lugar fixo para o Santuário portador da Arca Sagrada.

“[Assim diz o Eterno para Davi:] a tua casa e o teu reino serão firmados para sempre diante de ti; teu trono será firme para sempre.
Conforme a todas estas palavras, e conforme a toda esta visão, assim falou Natã a Davi.
Então entrou o rei Davi, e ficou perante o SENHOR, e disse: Quem sou eu, Senhor DEUS, e qual é a minha casa, para que me tenhas trazido até aqui?
E ainda foi isto pouco aos teus olhos, Senhor DEUS, senão que também falaste da casa de teu servo para tempos distantes; é este o procedimento dos homens, ó Senhor DEUS?
[…] E quem há como o teu povo, como Israel, gente única na terra, a quem Deus foi resgatar para seu povo, para fazer-te nome, e para fazer-vos estas grandes e terríveis coisas à tua terra, diante do teu povo, que tu resgataste do Egito, desterrando as nações e a seus deuses?” (2 Samuel 7:16–23)

Essas tradições não fazem parte da Torá, e o próprio Deuteronomista (como explicado no post anterior) teve esse cuidado na redação do livro de Deuteronômio, antes de dar início à narrativa da História Deuteronomista: apesar do livro de Deuteronômio na Torá permitir a instituição de um rei e prever a escolha de um lugar fixo para o Santuário, nem Davi nem Sião são mencionados ali como tendo tais papéis. Assim, do ponto de vista textual, a escolha de Davi e de Sião têm um aspecto contingente em relação à Torá, e nada em Josué ou Juízes faz prever tal escolha.

A narrativa de Davi no livro de Samuel (2Samuel) concluí a saga da Arca da Aliança em prol de encontrar seu lugar na terra prometida (arco narrativo começado quando do sequestro da Arca pelos filisteus em 1Samuel 4, quando houve um exílio temporário da Arca e mesmo retornando ficou sem lugar certo por um tempo) e a narrativa de seu filho Salomão no início do livro dos Reis (1Reis) concluí a fixação da Arca da Aliança nesse lugar, com a construção de um Templo de Pedra (antes o Santuário era uma tenda portátil).

Tais tradições (da dinastia davídica e de Sião) formaram o arcabouço básico da futura esperança messiânica, lançam seus germes. Como expliquei no post [149], o modelo messiânico tradicional dentro do judaísmo é plural, tendo distintas pessoas ocupando cargos dinásticos, sacerdotais e proféticos (bem como há um papel distintivo para o sanhedrin, para o povo judeu inteiro e para o próprio Deus!). É com o livro de Samuel (e aprofundado no livro dos Reis) que se forma a tríade entre o Líder Dinástico, o Sumo-Sacerdote e o Profeta da Corte.

  1. O profeta unge o Rei (enquanto isso só seja necessário para o iniciador da dinastia, ou em caso de dúvida sucessória; nos demais casos, o profeta simplesmente pressupõe que o sucessor dinástico tenha legitimidade pela unção de seu ancestral);
  2. O Sumo-Sacerdote também é ungido (e diferente do caso dinástico, todos os novos sumo-sacerdotes são ungidos);
  3. O Rei e o Sumo-Sacerdote se conectam por meio do Templo: o Santuário agora é um Templo fixo localizado na capital da Dinastia, então o Rei (e a linhagem dinástica) e o Sumo-Sacerdote (e as linhagens sacerdotais) moram na mesma cidade e têm uma relação muito próxima, onde o Rei é Patrono do Templo e, por extensão, do sacerdócio;
  4. Mas a prerrogativa profética dos tempos de outrora (sem liderança hereditária) ainda se faz sentir: os profetas (seja o Profeta da Corte seja outros profetas) se veem como legitimados a criticar os governantes e os sacerdotes se assim for a Palavra Divina.

O retrato do governo de Davi e especialmente do de Salomão é festejado amplamente pelo Deuteronomista como uma época lendária e saudosa, com tons que vão alimentar depois o imaginário messiânico.

Apesar do interesse do Deuteronomista em favorecer o Templo em Jerusalém contra templos rivais (seja na região Norte em Efraim, seja na própria região Sul fora de Sião) e seu endosso da tradição da aliança entre YHWH e Davi, a História Deuteronomista não retira completamente a legitimidade de uma dinastia ao Norte para Efraim.

Na história da Divisão de Israel após a morte de Salomão, na qual se relata a divisão permanente entre o Reino do Sul (sob preponderância da tribo de Judá e a Dinastia de Davi) e o Reino do Norte (sob preponderância da tribo de Efraim), o livro dos Reis entende que a separação das tribos do Norte sob a liderança da tribo de Efraim é legítima e justa. Inclusive o iniciador da Dinastia, Jeroboão, é validado por meio de profecia. Ou seja, também há uma tradição nortista, recebida pelo Deuteronomista, que validava a dinastia efraimita ao Norte:

“E o homem Jeroboão era forte e valente; e vendo Salomão a este jovem, que era laborioso, ele o pôs sobre todo o cargo da casa de José.
Sucedeu, pois, naquele tempo que, saindo Jeroboão de Jerusalém, o profeta Aías, o silonita, o encontrou no caminho, e ele estava vestido com uma roupa nova, e os dois estavam sós no campo.
E Aías pegou na roupa nova que tinha sobre si, e a rasgou em doze pedaços.
E disse a Jeroboão: Toma para ti os dez pedaços, porque assim diz o Senhor Deus de Israel: Eis que rasgarei o reino da mão de Salomão, e a ti darei as dez tribos.
Porém ele terá uma tribo, por amor de Davi, meu servo, e por amor de Jerusalém, a cidade que escolhi de todas as tribos de Israel.

Porque me deixaram, e se encurvaram a Astarote, deusa dos sidônios, a Quemós, deus dos moabitas, e a Milcom, deus dos filhos de Amom; e não andaram pelos meus caminhos, para fazerem o que é reto aos meus olhos, a saber, os meus estatutos e os meus juízos, como Davi, seu pai.
Porém não tomarei nada deste reino da sua mão; mas por príncipe o ponho por todos os dias da sua vida, por amor de Davi, meu servo, a quem escolhi, o qual guardou os meus mandamentos e os meus estatutos.
Mas da mão de seu filho tomarei o reino, e darei a ti, as dez tribos dele.
E a seu filho darei uma tribo; para que Davi, meu servo, sempre tenha uma lâmpada diante de mim em Jerusalém, a cidade que escolhi para pôr ali o meu nome.
E te tomarei, e reinarás sobre tudo o que desejar a tua alma; e serás rei sobre Israel.

E há de ser que, se ouvires tudo o que eu te mandar, e andares pelos meus caminhos, e fizeres o que é reto aos meus olhos, guardando os meus estatutos e os meus mandamentos, como fez Davi, meu servo, eu serei contigo, e te edificarei uma casa firme, como edifiquei a Davi, e te darei Israel.” (1 Reis 11:28–38)

Um ponto curioso aqui é que, dentro da narrativa apresentada, uma aliança similar a feita com Davi estava sendo proposta para Jeroboão, de maneira que sua dinastia pudesse ficar para sempre à frente do Reino do Norte e das tribos ali habitando (mesmo que, no fim das contas, não tenha dado certo). Além disso, é o Reino do Norte que levará o nome do povo inteiro, sendo denominado de Reino de Israel, enquanto o Reino do Sul ficará conhecido como Reino de Judá.

Então, apesar da queixa constante do Deuteronomista contra os Reis do Norte (ao ponto que diagnostica todos os seus governantes como transgressores da Aliança; no caso do Sul, a maioria também é diagnosticada como transgressora, mas alguns são vistos como justos diante da Aliança), o Deuteronomista aceita a legitimidade da divisão do Norte em relação ao Sul, enquanto durarem as dinastias do Norte. É apenas depois da queda do Reino do Norte sob os assírios, que o Deuteronomista se permitirá sonhar brevemente com uma reunificação (já voltaremos a isso adiante).

Enquanto o texto visto acima sobre Jeroboão não mostra explicitamente que o profeta Aías tenha ungido Jeroboão como Rei, o livro dos Reis mostra o fundador da 2ª dinastia do Norte como sendo ungido Rei por um profeta, Elizeu, o sucessor de Elias. (Se você lembrar do post [149], Elias será muito relevante para o imaginário messiânico posteriormente) Sendo que Elizeu fora ungido profeta por Elias.

“E o Senhor lhe disse [a Elias]: Vai, volta pelo teu caminho para o deserto de Damasco; e, chegando lá, unge a Hazael rei sobre a Síria.
Também a Jeú, filho de Ninsi, ungirás rei de Israel; e também a Eliseu, filho de Safate de Abel-Meolá, ungirás profeta em teu lugar.” (1 Reis 19:15,16)

“Então o profeta Eliseu chamou um dos filhos dos profetas, e lhe disse: Cinge os teus lombos; e toma este vaso de azeite na tua mão, e vai a Ramote de Gileade;
E, chegando lá, vê onde está Jeú, filho de Jeosafá, filho de Ninsi; entra, e faze que ele se levante do meio de seus irmãos, e leva-o à câmara interior.
E toma o vaso de azeite, e derrama-o sobre a sua cabeça, e dize: Assim diz o Senhor: Ungi-te rei sobre Israel. Então abre a porta, foge, e não te detenhas.
Foi, pois, o moço, o jovem profeta, a Ramote de Gileade.
E, entrando ele, eis que os capitães do exército estavam assentados ali; e disse: Capitão, tenho uma palavra que te dizer. E disse Jeú: A qual de todos nós? E disse: A ti, capitão!
Então se levantou, entrou na casa, e derramou o azeite sobre a sua cabeça, e disse: Assim diz o Senhor Deus de Israel: Ungi-te rei sobre o povo do Senhor, sobre Israel.
E ferirás a casa de Acabe, teu senhor, para que eu vingue o sangue de meus servos, os profetas, e o sangue de todos os servos do SENHOR, da mão de Jezabel.” (2 Reis 9:1–7)

Os escritores Deuteronomistas são judaítas, e favorecem o Templo em Jerusalém, condenando o fato do Reino do Norte ter Templos rivais ao de Jerusalém. Contudo, para o Deuteronomista, Deus nunca abandonou o povo do Reino do Norte: se os israelitas nortistas não tinham o Templo de Jerusalém, em compensação tiveram profetas grandiosos como Elias e Elizeu, e mesmo suas duas primeiras dinastias receberam legitimidade profética.

Como eu disse no post anterior, o livro do Deuteronômio nunca especificou que os reis seriam apenas da tribo de Judá, então, para o Deuteronomista, que haja um Rei Ungido para o Norte não fere a aliança de Deus com Davi. Que os descendentes de Davi sempre teriam direito dinástico sobre Sião (onde o Templo deveria ser localizado) e mesmo sobre Israel em si é uma coisa. Mas isso não significa que apenas os descendentes de Davi tenham direito dinástico no território israelita.

E é isso que explica porque a esperança messiânica posterior vai admitir um Messias para a Casa de José (Efraim), de forma bem assentada naquilo que a História Deuteronomista apresenta. O imaginário messiânico plural do judaísmo rabínico vai admitir a continuidade do direito dinástico de Efraim em colaboração (como vice-rei) ao direito dinástico da dinastia davídica (como rei).

Agora, dentro da História Deuteronomista, não temos ainda nenhuma previsão de algo como o Messias dinástico, seja filho de Davi seja filho de José, e nem de um Messias sacerdotal, num futuro indeterminado.

Em realidade, o grande aspirante messiânico (usando o termo na retrospectiva) do Deuteronomista é o Rei Josias, da dinastia davídica. Se há um ‘Rei Prometido’ dentro da História Deuteronomista, tal rei é Josias. No próprio início da narrativa da divisão entre Norte e Sul, o Deuteronomista entende que a aparição do Rei Josias fora profetizada séculos antes, em represália à instituição de um Templo no Norte pelo Rei Jeroboão:

“E eis que, por ordem do SENHOR, veio, de Judá a Betel, um homem de Deus; e Jeroboão estava junto ao altar, para queimar incenso.
E ele clamou contra o altar por ordem do Senhor, e disse: Altar, altar! Assim diz o Senhor: Eis que um filho nascerá à casa de Davi, cujo nome será Josias, o qual sacrificará sobre ti os sacerdotes dos altos que sobre ti queimam incenso, e ossos de homens se queimarão sobre ti.” (1 Reis 13:1,2)

Então, na narrativa do Livro de Reis, é prometida a vinda de um Rei davídico zeloso pela exclusividade do Templo de Jerusalém e que, por isso, destruirá os altares concorrentes instituídos erroneamente pelo Rei Jeroboão da tribo de José. E isso ocorre muito tempo depois, com a atuação de Josias, que vai promover uma Reforma Deuteronomista durante seu Reinado, lutando pela exclusividade do culto sacerdotal para YHWH no Templo em Sião e encerrando o culto a outros deuses (justamente com a colaboração desse círculo deuteronomista responsável pela escrita do livro de Deuteronômio e da História Deuteronomista).

Em fato, quando há o reinado de Josias, o Reino do Norte já não mais existia, por ter sofrido a conquista e o exílio nas mãos do Império Assírio. Então, o Reino do Sul era o único que existia naquele momento. E isso permite a Josias promover sua Reforma Cúltica sobre toda a terra de Israel, sem precisar entrar em guerra contra o Reino do Norte (uma atitude que os Deuteronomistas condenariam, uma vez que, como já afirmei, apesar de toda sua crítica aos governantes do Norte, o Deuteronomista reconhece a legitimidade de uma dinastia diferente para o Norte, em deferência à tribo de Efraim e seu ancestral José).

Vale a pena conferir o que motivou Josias de forma tão forte assim:

“Então disse o sumo sacerdote Hilquias ao escrivão Safã: Achei o livro da lei na casa do Senhor. E Hilquias deu o livro a Safã, e ele o leu.
Então o escrivão Safã veio ter com o rei e, dando-lhe conta, disse: Teus servos ajuntaram o dinheiro que se achou na casa, e o entregaram na mão dos que têm cargo da obra, que estão encarregados da casa do Senhor.
Também Safã, o escrivão, fez saber ao rei, dizendo: O sacerdote Hilquias me deu um livro. E Safã o leu diante do rei.
Sucedeu, pois, que, ouvindo o rei as palavras do livro da lei, rasgou as suas vestes.

E o rei mandou a Hilquias, o sacerdote, a Aicão, filho de Safã, a Acbor, filho de Micaías, a Safã o escrivão e a Asaías, o servo do rei, dizendo:
Ide, e consultai o Senhor por mim, pelo povo e por todo o Judá, acerca das palavras deste livro que se achou; porque grande é o furor do Senhor, que se acendeu contra nós; porquanto nossos pais não deram ouvidos às palavras deste livro, para fazerem conforme tudo quanto acerca de nós está escrito.

Então foi o sacerdote Hilquias, e Aicão, Acbor, Safã e Asaías à profetisa Hulda, mulher de Salum, filho de Ticvá, o filho de Harás, o guarda das vestiduras (e ela habitava em Jerusalém, na segunda parte), e lhe falaram.
E ela lhes disse: Assim diz o Senhor Deus de Israel: Dizei ao homem que vos enviou a mim:
Assim diz o Senhor: Eis que trarei mal sobre este lugar, e sobre os seus moradores, a saber: todas as palavras do livro que leu o rei de Judá.
Porquanto me deixaram, e queimaram incenso a outros deuses, para me provocarem à ira por todas as obras das suas mãos, o meu furor se acendeu contra este lugar, e não se apagará.
Porém ao rei de Judá, que vos enviou a consultar o Senhor, assim lhe direis: Assim diz o Senhor Deus de Israel, acerca das palavras, que ouviste:
Porquanto o teu coração se enterneceu, e te humilhaste perante o Senhor, quando ouviste o que falei contra este lugar, e contra os seus moradores, que seria para assolação e para maldição, e que rasgaste as tuas vestes, e choraste perante mim, também eu te ouvi, diz o Senhor.
Por isso eis que eu te recolherei a teus pais, e tu serás recolhido em paz à tua sepultura, e os teus olhos não verão todo o mal que hei de trazer sobre este lugar
. Então tornaram a trazer ao rei a resposta.
Então o rei ordenou, e todos os anciãos de Judá e de Jerusalém se reuniram a ele.
O rei subiu à casa do Senhor, e com ele todos os homens de Judá, e todos os moradores de Jerusalém, os sacerdotes, os profetas e todo o povo, desde o menor até ao maior; e leu aos ouvidos deles todas as palavras do livro da aliança, que se achou na casa do Senhor.
E o rei se pôs em pé junto à coluna, e fez a aliança perante o Senhor, para seguirem o Senhor, e guardarem os seus mandamentos, os seus testemunhos e os seus estatutos, com todo o coração e com toda a alma, confirmando as palavras desta aliança, que estavam escritas naquele livro; e todo o povo apoiou esta aliança.
” (2 Reis 22:8–20; 23:1–3)

Note aqui a tríade entre um Rei, um Sumo-Sacerdote e uma Profetiza.

Contudo, apesar das altas esperanças, o Deuteronomista relata uma esperança protomessiânica em Josias que não conseguiu reverter o quadro geral. Os Deuteronomistas escrevem já no exílio, e justamente tentam refletir nos percalços desse caminho. Por isso, quando elogiam Josias no mais alto tom, destacando que sua fidelidade foi a maior entre todos os reis davídicos (apenas Ezequias seu avô sendo a ele comparável; veja 2 Reis 18:5,6), ainda deixam a nota lúgubre de que fora tarde demais para Judá e Sião (e para o Templo!):

E antes dele [Josias] não houve rei semelhante, que se convertesse ao Senhor com todo o seu coração, com toda a sua alma e com todas as suas forças, conforme toda a lei de Moisés; e depois dele nunca se levantou outro tal.
Todavia o Senhor não se demoveu do ardor da sua grande ira,
com que ardia contra Judá, por todas as provocações com que Manassés o tinha provocado.
E disse o Senhor: Também a Judá hei de tirar de diante da minha face, como tirei a Israel, e rejeitarei esta cidade de Jerusalém que escolhi, como também a casa de que disse: Estará ali o meu nome.” (2 Reis 23:25–27)

O próprio Josias acaba morto em batalha:

“Nos seus dias subiu Faraó Neco, rei do Egito, contra o rei da Assíria, ao rio Eufrates; e o rei Josias lhe foi ao encontro; e, vendo-o ele, o matou em Megido.
E seus servos, num carro, o levaram morto, de Megido, e o trouxeram a Jerusalém, e o sepultaram na sua sepultura” (2 Reis 23:29,30)

O Ungido, o Messias, foi morto pelos opressores de Israel!

Sem Título, Auguste Herbin, 1931.

Também essa morte de um rei justo repercutirá na esperança messiânica posterior dentro da tradição judaica oral, a respeito da possível morte em batalha do Messias filho de José.*

Após isso, o Deuteronomista narra como o Império Babilônio conquista Judá e, por fim, destrói o Templo (em 597 AEC). A História Deuteronomista como um todo termina assim, com os judeus exilados, Sião destruída, tudo parecendo perdido, pois nem mesmo o aparecimento de reis do calibre de Ezequias e Josias adiantou para apaziguar a ira divina. Mas, curiosamente, o livro termina dando um raio de esperança, de forma bem sutil:

“Depois disto sucedeu que, no ano trinta e sete do cativeiro de Joaquim, rei de Judá, no mês duodécimo, aos vinte e sete do mês, Evil-Merodaque, rei de babilônia, no ano em que reinou, levantou a cabeça de Joaquim, rei de Judá, tirando-o da casa da prisão.
E lhe falou benignamente; e pôs o seu trono acima do trono dos reis que estavam com ele em babilônia.
E lhe mudou as roupas de prisão, e de contínuo comeu pão na sua presença todos os dias da sua vida.
E, quanto à sua subsistência, pelo rei lhe foi dada subsistência contínua, a porção de cada dia no seu dia, todos os dias da sua vida.
” (2 Reis 25:27–30)

Talvez seja na hora mais dura do exílio que a redenção começará a florescer. É isso que o final da História Deuteronomista se esforça por processar.

Nota = no post anterior, comentei que o livro de Deuteronômio traz a ideia de profetas vindouros. Dentro da narrativa da História Deuteronomista como um todo, fica claro que tal promessa se refere aos diversos profetas descritos em Josué, Juízes, Samuel e Reis. Contudo, sob uma leitura mais estrita esperando Grandes Profetas de calibre similar ao de Moisés, é possível hipotetizar que o Deuteronomista encontrasse no profeta Samuel (que unge Davi) e no profeta Elias (que desaparece numa carruagem de fogo em direção ao céu, sem experimentar a morte) os exemplos que satisfizessem à risca a esperança no surgimento de profetas desse nível. Outro dia posso fazer um post explicando melhor isso. Contudo, isso é muito curioso porque Samuel é mais ligado à tradição sulista (judaíta), enquanto Elias é mais ligado à tradição nortista (efraimita). Elias e seu sucessor Elizeu atuaram a vida inteira no Reino do Norte e NUNCA os vemos ter nenhuma relação com o Templo em Jerusalém. Então, mesmo no quesito de uma esperança protomessiânica em um Profeta Vindouro (que já surgiu, ao invés de ser ainda esperado, como na esperança messiânica posterior), me parece que os Deuteronomistas mostraram sua mesma deferência à legitimidade da divisão territorial da terra de Israel, falando em dois grandes profetas pós-Moisés, um mais ligado à Judá e outro mais ligado à Efraim.

*E note: não é coincidência que o nome ‘Megido’ ali se pareça com o nome ‘armagedom’ que aparece no livro do Apocalipse do Novo Testamento Cristão, livro este escrito por um judeu-cristão e que ainda reflete uma concepção mais judaica da esperança messiânica, em contraste à da cristologia do cristianismo posterior.

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A Estrela da Redenção
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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.