[152] Samaritanos: sem Messias, apenas Torá

A Estrela da Redenção
8 min readAug 17, 2021

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Nos últimos posts tenho abordado a questão de se e como a esperança messiânica emerge em diferentes partes da Bíblia Hebraica. Ainda estamos no começo, tendo analisado por enquanto a Torá ([150]) e a primeira parte dos Neviim, com os livros históricos dos Profetas Anteriores ([151]).

Um resultado que emergiu desses 2 posts é que a Torá em si mesma não contém esperança propriamente messiânica (apesar de obviamente falar de redenções históricas do povo judeu). Os livros de Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio não falam dos Messias, especialmente porque tais livros não pressupõem a necessidade de uma dinastia política para governar o povo judeu (como a de Davi).

São os livros históricos dos Neviim — a História Deuteronomista — que introduzem as tradições protomessiânicas propriamente ditas, pois, após os livros de Josué e Juízes (ainda bem similares à Torá nesse ponto), é apenas no livro de [1–2]Samuel que somos introduzidos à aliança entre Deus e Davi, pela qual a dinastia deste sempre estaria à frente de Jerusalém e que Sião (Jerusalém) seria a cidade escolhida para ali ter o Templo de forma fixa, a ser construída por um dos filhos de Davi (Salomão).

Já no livro de [1–2]Reis, vemos tanto a construção do Templo em Jerusalém substituindo o Santuário portátil dos tempos de outrora, bem como a divisão política do povo de Israel em 2 diferentes reinos: o do Sul, sob preponderância da tribo de Judá e da dinastia davídica (Reino de Judá) e o do Norte, sob preponderância da tribo de Efraim (José) com diferentes dinastias em momentos diferentes (Reino de Israel).

Para os Deuteronomistas escrevendo o livro dos Reis, havia sim um Ungido, um Messias prometido, na história que recontam, mas esse Messias já veio e foi o Rei Josias, o mais fiel cumpridor da Aliança entre todos os Reis de Judá e de Israel. Um descendente de Davi que governa no Reino do Sul, após o Reino do Norte já ter evaporado sob o domínio assírio no passado. Contudo, os Deuteronomistas testemunham também o aparente fracasso de Josias, morto em combate pelo exército egípcio e incapaz de evitar que o Império Babilônio destrua o Reino de Judá nos anos que se seguiram à sua morte. O Deuteronomista conclui sua Saga de Israel no exílio do povo judeu, com o Templo de Sião destruído, mas a esperança não é totalmente perdida: a dinastia de Davi, exilada, ainda existe.

Nesse post gostaria de trazer uma evidência que reforça o ponto acima: os Samaritanos aceitam exclusivamente a Torá (sob uma variante textual, a Torá Samaritana), rejeitando todos os livros dos Neviim/Profetas e dos Ketuvim/Escritos aceitos pelos judeus, e também rejeitam a ideia de Messias. Isso não é coincidência! Os samaritanos há milênios rejeitam a vinda de algum rei messiânico justamente porque os samaritanos não aceitam os Neviim (e nem os Ketuvim), mantendo apenas a Torá.

Antes de examinar mais a fundo essa questão, temos de definir brevemente quem são os samaritanos. Notei acima que o Reino do Norte (Israel/Efraim) caiu antes que o Reino do Sul (Judá). Os israelitas samaritanos são herdeiros desse Reino do Norte, enquanto os israelitas judeus são herdeiros do Reino do Sul.

A diferença entre samaritanos e judeus decorreu, para além dessa própria divisão histórica em 2 grandes regiões israelitas, das diferentes políticas externas dos Impérios que destruíram os Reinos israelitas anteriormente existentes nas respectivas regiões, bem como do grau de ‘preparo’ das populações dessas regiões para manter sua comunidade distintiva mesmo em condições exílicas. Vamos explicar isso com calma…

O Reino do Norte caiu sob os assírios, enquanto o Reino do Sul caiu sob os babilônios. A política assíria com os povos conquistados tinha uma marca distintiva: tentava-se deslocar os povos de uma região para outra que eles não conhecessem, de maneira que tornaria mais fácil continuar a dominá-los. Ao conquistarem o Reino de Efraim, grande parte de sua população foi deportada e/ou dispersa, a qual acabou assimilada entre outros povos e perdendo sua identidade étnica distinta. Por outro lado, exilados de outros povos do Levante foram levados para lá, se integrando e misturando ao remanescente da população local das 10 tribos que havia permanecido. Desses acontecimentos emergiu a comunidade etnorreligiosa samaritana.

Note que aqui estou me atendo ao que mais provável aconteceu historicamente. Nos textos judaicos, mais especificamente no próprio Livro dos Reis, os samaritanos (ou seus ancestrais, já que o Deuteronomista ainda não conhecia a divisão judeu versus samaritano como cristalizada no período do 2º Templo) são entendidos como estrangeiros não-israelitas exilados para o Norte da terra israelita, que adotaram o culto de YHWH o Deus de Israel (veja 2 Reis 17:24–41), uma explicação que também é defendida pelo Talmude. Já os textos samaritanos entendem que os samaritanos são simplesmente os israelitas do Norte, em continuidade ininterrupta desde a origem do povo de Israel. A pesquisa historiográfica (e genética) tende para um meio-termo: os samaritanos se originam tanto dos israelitas do Norte que permaneceram na região, quanto de não-israelitas para lá levados, em um processo de miscigenação entre essas populações, na qual culturalmente e religiosamente acabou preponderando a tradição israelita.

No caso dos judeus, o exílio sofrido pelo Reino de Judá e por israelitas do Sul pelas mãos dos babilônios levará a outra experiência de exílio, na qual houve a preservação continuada da identidade entre os exilados mesmo em terras alheias, bem como retorno de exilados. Além disso, nem todos os exilados retornaram, dando início a uma contínua existência judaica na Diáspora, fora da terra de Israel. Essa persistência pode ser explicada em grande parte pela influência do Profetismo Israelita Clássico em Judá, a qual examinaremos no próximo post (ao falar dos livros proféticos dos Neviim, ou Profetas Literários), de que os próprios Deuteronomista são testemunhas.

Geralmente quando lemos sobre a diferença entre Judeus e Samaritanos, sempre se destaca sua divergência a respeito do local onde o Templo deveria estar. Os judeus favorecem o Monte Sião, em Jerusalém, enquanto os samaritanos favorecem o Monte Guerizim (e o Templo Samaritano foi construído ali, após a reconstrução do Templo Judaico em Jerusalém após o retorno do exílio babilônico). Contudo, isso é bem mais um sintoma de uma divisão muito mais profunda entre os judeus e samaritanos.

Os samaritanos rejeitam todas as tradições ligadas à dinastia davídica e à Sião, bem como rejeitam que tenha havido uma contínua atividade profética legítima desde Moisés até o Profetismo Israelita Clássico. Os samaritanos têm um livro de Josué Samaritano bem diferente do livro de Josué Deuteronomista encontrado na Bíblia Hebraica (lembre que Josué era Efraimita), e não aceitam que houve sucessores proféticos para além de Josué. E tudo isso é possível de defender aceitando exclusivamente a Torá, mas não seria possível caso fossem aceitas a História Deuteronomista ou os Profetas Literários (Neviim). Os Ketuvim (Escritos) também não poderiam ser aceitos, pois esses demais livros já pressupõem as tradições constantes da Torá E dos Neviim (por exemplo, o livro de Salmos nos Ketuvim é o livro mais davídico de toda a Bíblia Hebraica).

Um aspecto curioso é que a Torá Samaritana, uma variante textual da Torá, aceita uma das obras do Deuteronomista, a saber, o livro de Deuteronômio. Mas aquilo que eu disse sobre esse livro nos últimos 2 posts é entendido de forma diferente nessa variante textual samaritana.

Afirmei que o livro de Deuteronômio não seleciona um lugar específico para o Templo, apenas prevendo que tal lugar será escolhido ainda, e que esse livro fala da sucessão profética como algo contínuo entre as gerações que sucederiam à de Moisés, mesmo que destaque alguns Grandes Profetas como Samuel e Elias/Elizeu como tendo estatura similar a Moisés.

Contudo, na Torá Samaritana, o lugar do Santuário no Monte Guerizim faz parte dos Dez Mandamentos e o trecho sobre “o Eterno levantará um profeta como eu [Moisés], a ele ouvireis” é entendido como uma promessa a respeito de um Profeta Vindouro — o Taheb — nos tempos do fim.

Dessa forma, enquanto os judeus tradicionalmente aceitaram uma pluralidade de figuras messiânicas, com o Messias dinástico filho de Davi, o Messias dinástico filho de José, o Messias Sacerdotal e o Profeta Elias, os samaritanos tradicionalmente rejeitaram a vinda desses Messias, aceitando apenas a vinda do Taheb, o Profeta dos tempos do fim.

O motivo para essa diferença é muito evidente textualmente: os samaritanos tinham apenas a Torá para se basear, e não aceitavam nenhum dos profetas israelitas pós-Moisés (e Josué), por isso tiveram de usar o trecho do Deuteronômio a respeito da atividade profética para embasar a vinda de um personagem exclusivamente profético em um futuro distante. Já os judeus, que para além da Torá podem se basear também nos Neviim — tanto a História Deuteronomista como o Profetismo Literário — , tiveram uma diversidade maior de elementos e personagens para formar seu imaginário do que o futuro aguardaria ao povo de Israel, assim resultando na esperança messiânica tradicional como a conhecemos pela tradição oral judaica.

Outro ponto também relevante para entender essa diferença reside na questão do exílio. Os israelitas do Norte passaram por um exílio, mas os exilados não retornaram, enquanto os israelitas do Sul passaram por um exílio e os exilados continuaram sendo israelitas no exílio, parte deles chegando a retornar para a terra de Israel.

Então, nesses momentos definidores da identidade samaritana e da identidade judaica, enquanto diferentes formas de expressão de uma identidade israelita comum entre essas comunidades, a tradição judaica refletiu muito a respeito da experiência exílica, enquanto a tradição samaritana se manteve mais ligada à experiência da terra de Israel. Isso vai permitir um espalhamento dos judeus pelo mundo em inúmeros processos diaspóricos, e nada dessa magnitude ocorreu entre os samaritanos.

Ou seja: por essas diferentes experiências envolvendo o exílio de seus ancestrais, o povo judeu há milênios se tornou uma comunidade global, espalhada em todos os continentes, composta por diferentes grupos étnicos e raciais, enquanto o povo samaritano continuou sendo majoritariamente uma comunidade siro-palestina do Levante.

Isso afeta também a questão a respeito do Templo: após a destruição do Segundo Templo, a tradição judaica rabínica se desenvolveu de maneira a não necessitar dos rituais sacerdotais. O povo continou a ser dividido entre israelim, leviim, e cohanim (isto é, israelitas, levitas e sacerdotes), mas ser um cohen acabou sendo mais uma questão de linhagem do que de ofício. Já entre os samaritanos, o ofício do Sumo-Sacerdote Samaritano continuou de forma ininterrupta, mesmo depois que o Templo Samaritano foi destruído, e até hoje são oferecidas oferendas animais (mais especificamente, a do Cordeiro Pascal por ocasião do Pessach/Páscoa).

Sumo-Sacerdote samaritano Jacob ben Aaron, que exerceu o Sumo-Sacerdócio de 1861 a 1916.

Essa diferença em exílio e sacerdócio, afetam a questão da esperança messiânica: os samaritanos, que não refletiram a experiência exílica judaica, continuaram apontando Sumo-Sacerdotes e vivendo próximo ao Monte Guerizim, então não há, para eles, a necessidade de um retorno messiânico dos exilados nem de um Sacerdote messiânico. Já os judeus, tendo enfrentando a experiência de uma contínua existência exílica e diaspórica ao redor do mundo e não tendo Sumo-Sacerdotes há quase 2.000 anos, tiveram muito mais motivo para imaginar um futuro retorno messiânico dos exilados e uma figura messiânica sacerdotal que terminasse essa interrupção do sacerdócio por ocasião do Segundo Templo e do exílio romano que lhe seguiu.

Dessa forma, vemos como a esperança messiânica tradicional entre os judeus depende fortemente dos Neviim da Bíblia Hebraica. A ausência da introdução de tradições como aquelas dos Neviim entre os samaritanos explica porque esses não aceitaram a esperança judaica na vinda dos Messias, geralmente 4 personagens com diferentes papéis (dinásticos, sacerdotais e proféticos), optando apenas pela esperança no surgimento de 1 profeta similar a Moisés (Taheb).

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Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

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