[127] O Messias foi previsto no Éden?
Muitas pessoas acreditam que a narrativa do Jardim do Éden (que tenho esmiuçado nos posts anteriores) contém uma previsão a respeito do Messias, ou de um Salvador. O objetivo desse post é examinar se realmente existe uma profecia desse tipo nos primeiros capítulos do Gênesis.
Segundo essa interpretação que irei examinar aqui, tal profecia messiânica (ou promessa messiânica) estaria contida na maldição que Deus lança à serpente:
“E porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua semente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.” (Gênesis 3:15)
Para essa interpretação, a descendência da serpente e a descendência da mulher travariam guerra, mas um dia um Descendente da mulher venceria tal batalha (mesmo que tivesse de ser ferido no processo). Tal Descendente seria o Messias, um Salvador, que salvaria a humanidade da serpente, que, nessa interpretação, é entendida como sendo Satanás. Como a alusão à ideia cristã de Satanás (que NÃO existe na Bíblia Hebraica) revela, essa interpretação é estabelecida em termos cristãos: o pretenso Messias predito nesse versículo seria Jesus.
Em primeiro lugar, é importante destacar que tal interpretação como colocada acima não se baseia no texto bíblico em si, mas numa busca por encontrar Jesus dentro da Bíblia Hebraica (vulgarmente conhecida como “Velho Testamento”). No caso católico em específico, dada a sua mariologia, também envolveu a busca por encontrar Maria, a mãe de Jesus (reinterpretando “Eva” como sendo “Maria”). Portanto, essa interpretação já erra ao tentar ler o livro de Gênesis encaixando-o na narrativa dos Evangelhos do Novo Testamento cristão, dissociando-se do contexto ‘natural’ do Gênesis dentro da cultura judaica. Os Evangelhos são lidos retroativamente para dentro daquele versículo do Gênesis, alterando seu significado.
Contudo, ainda poderíamos nos perguntar, independente de Jesus ser ou não o Messias, se haveria alguma base para entender que aquele versículo contém uma predição a respeito de um Messias ou de um Salvador.
São questões independentes: uma pessoa poderia achar que Jesus é o Messias, e não achar que aquele versículo diga nada a respeito do Messias (que ela pensa ser Jesus). Da mesma forma, uma pessoa pode achar que esse versículo diz algo a respeito do Messias, mas não achar que o Messias seja Jesus.
Qual o significado desse versículo? Pensando em termos de narrativa judaica, existem diferentes camadas nas quais se pode ler esse texto e conectá-lo a outras partes da Torá, e mesmo do restante da Bíblia Hebraica.
Em uma primeira camada, o significado do versículo é simplesmente o significado textual direto que está ali bem claro: serpentes e seres humanos não vivem “em paz”. Os descendentes da serpente e os descendentes da mulher (Eva) são literalmente todas as serpentes e todos os humanos que existiram sobre a face da terra e que coexistiram nos mesmos ambientes, mas não de forma pacífica.
Essa também foi a conclusão dos comentaristas clássicos judaicos buscando o significado peshat (direto, contextual) do texto (Rashi; Ibn Ezra; Kimhi/Radak; Ramban).
Inclusive se formos pensar em termos biológicos-darwinianos, o medo de serpentes pode ser visto como uma tendência inata à cognição humana, justamente porque no histórico de seleção natural das linhagens hominíneas, evitar serpentes contribuía à maximização do sucesso reprodutivo. Trata-se de uma área de pesquisa ainda bastante investigada. Veja discussões instrutivas em Kawai & Koda (2016) e em Coelho et al (2019).
E dentro do próprio texto, não há nada de estranho em dizer que o ser humano pisa a cabeça da serpente e a serpente morde o calcanhar. O versículo anterior apresenta Deus dizendo à serpente:
“Porquanto fizeste isto, maldita serás mais que toda a fera, e mais que todos os animais do campo; sobre o teu ventre andarás, e pó comerás todos os dias da tua vida.” (Gênesis 3:14)
Então, a sequência é produto da mesma lógica: como agora a serpente irá rastejar pelo chão (ao invés de ter asas ou patas), a tendência é que o ser humano pise nelas (nem precisa ser de propósito, pense bem…). Mas se o ser humano agora poderia pisá-las, em compensação a serpente pode morder o pé do ser humano (o seu calcanhar).
Note também o paralelismo poético entre “pisar a cabeça da serpente” e “morder o calcanhar (pé) do humano”: a cabeça da serpente e o pé do ser humano tornam-se alvo um dos outros, e, se a serpente não morre ao ser pisada na cabeça, ela está perto o suficiente para já morder o pé humano em um contra-ataque.
(Compare com Gênesis 49:16–18, onde Jacó torna a serpente o símbolo de uma das tribos de Israel, a tribo de Dã, remetendo à furtividade das serpentes em morder o calcanhar dos cavalos, fazendo assim cair o cavaleiro…)
Ou seja, o significado original imediato dessa passagem diz respeito simplesmente ao relacionamento entre 2 animais diferentes: os humanos e as serpentes. Nada mais e nada menos que isso, tendo nenhuma relação com algum tipo de criatura mística como o Satanás cristão que precisaria ser vencida por algum ser humano especial (o Messias).
Contudo, como abordei no post [117], em um entendimento mais metafórico a respeito da narrativa do Éden, é possível entender a serpente como sendo o “mau impulso” do ser humano, que, também metaforicamente, é chamado de “Satan”. Ao contrário da figura cristã de Satanás como um anjo rebelde inimigo de Deus, o Satan na tradição judaica é um ALIADO de Deus, que faz “um trabalho sujo, mas que alguém tem de fazer”: o de acusar os outros de terem feito algo errado.
Nesse sentido, o próprio “mau impulso” não deve ser confundido com a ideia de uma pecaminosidade inata da qual precisaríamos ser resgatados por um Salvador, como encontrada em fontes cristãs (muito menos com a ideia de depravação total de parte dos cristãos protestantes).
O “yetzer hara” (“mau impulso”) nada mais é do que nossos desejos e impulsos normais só que indisciplinados. (Algo similar ao “id” da psicanálise freudiana) Para discipliná-los temos a Torá do Eterno (em sentido estrito para o povo judeu e em sentido amplo para toda a humanidade).
Então, quando lemos a narrativa metaforicamente, podemos entender a serpente como o “yetzer hara” que pode ser entendido também metaforicamente como “Satan”, mas isso é justamente uma leitura não-literal do texto.
Outro exemplo dessa possibilidade é quando alguns rabinos no Misdrash do Livro de Gênesis (Bereshit Rabbah 17:6) se perguntaram quando foi pela primeira vez que uma letra hebraica com som de “s” como o “shin” (ש) aparece no texto da Torá. Essa letra é a inicial de “satan” (שָׂטָן).
Uma primeira opinião seria vinculada ao satan: no relato da criação de Eva é informado que “Então o Senhor Deus fez cair um sono pesado sobre Adão, e este adormeceu; e tomou uma das suas costelas, e cerrou [וַיִּסְגֹּ֥ר (va-yisgor)]a carne em seu lugar. E da costela que o Senhor Deus tomou do homem, formou uma mulher” (Gênesis 2:21–22). Note que a letra “סְ” (samekh) também corresponde a um “s”. E aqui veríamos uma associação sendo feita por esses rabinos entre Eva e o Satan: com a origem de Eva também veio a origem da tentação, pois Eva que deu ouvidos ao mau impulso (metaforicamente, Satan).
Contudo, o próprio Midrash rebate essa opinião: a primeira vez que a letra “samekh” aparece é antes disso, em Gênesis 2:11 e 13, quando se relata a criação de Rios que saíam do Éden (veja minha discussão a respeito deles no post [122]):
“E saía um rio do Éden para regar o jardim; e dali se dividia e se tornava em quatro braços. O nome do primeiro é Pisom; este é o que rodeia [הַסֹּבֵ֗ב (hasovev)] toda a terra de Havilá, onde há ouro. E o ouro dessa terra é bom; ali há o bdélio, e a pedra sardônica. E o nome do segundo rio é Giom; este é o que rodeia [הַסּוֹבֵ֔ב] toda a terra de Cuxe.” (Gênesis 2:10–13)
E talvez você esteja se perguntando qual seria o caso da letra “shin”, que é a inicial de fato de Satan. Bem, o shin (que também é a inicial de shalom, shadai, shabat, entre outros termos positivos) aparece logo na primeira palavra da Torá inteira:
“No-princípio [בְּרֵאשִׁ֖ית (bereshit)] criou Deus o céu e a terra.” (Gênesis 1:1)
Agora veja que a primeira opinião desse Midrash tentava extrair uma referência sutil a Satan antes que a serpente aparecesse (enquanto, como vimos pela segunda opinião, com argumentos objetáveis nos próprios termos pensados pela primeira opinião), desse modo fazendo também uma associação entre Satan e a narrativa do Éden.
É bem claro pelo exemplo que fazer isso envolve uma leitura expansiva do texto (midrash) que, nesse caso, é também uma interpretação metafórica. Mas veja que, no Midrash, ainda se busca uma base textual, nesse caso específico, quando as letras com som de ‘s’ surgiam dentro do texto, buscando dar algum significado a isso. Já a interpretação cristã a respeito de Satanás não se qualifica como midrash, uma vez que simplesmente reinterpreta o texto com base em uma doutrina externa ao texto, a respeito de uma rebelião de anjos chefiada por Satanás.
Assim, é possível ler midrashicamente a maldição à serpente como fazendo referência metaforicamente à perpétua batalha no coração humano entre seguir ou não o mau impulso. Que a partir daquele momento o mau impulso sempre estaria pronto a “dar o bote”, mas o ser humano deveria se atentar em controlá-lo.
Em cima desse significado, podemos ainda alcançar outra camada intertextual. Por extensão, a serpente também remete ao Egito, cuja autoridade máxima nas mãos do Faraó era representada por uma serpente, como explicado no post [113] (e para essa elaboração em termos de Kaballah, veja o post [118]).
Aqui encontramos uma conexão entre o texto do Gênesis e os textos posteriores da própria Torá envolvendo a figura do Faraó, pela maneira como tal posto se arrogava uma autoridade divina, o que foi levado ao seu extremo pelo Faraó da época do Êxodo (que queria manter os israelitas escravos).
E assim podemos conectar as duas expansões metafóricas: uma serpente ser colocada nessa narrativa é uma referência à distorção de nossa capacidade imaginativa, para o que ocorre quando seguimos os impulsos de nossa imaginação e desejo sem limita-los. A expressão máxima desse impulso está naqueles que se arrogam autoridade sem limites sobre os outros, como o Faraó do período do êxodo, cuja símbolo de soberania era a figura de uma serpente.
Dentro dessa chave, poderíamos ler o versículo sobre a inimizade entre a descendência da mulher e a descendência da serpente como a briga que haveria entre o povo de Deus e seus inimigos históricos, estes últimos levados pelo mau impulso a praticar opressão ao invés de justiça.
Não se trata aqui de uma narrativa mitológica, mas acima de tudo histórico-social, como comenta Norman Gottwald em sua excelente obra-prima “As Tribos de Yahweh: uma sociologia da religião de Israel liberto, 1250–1050 AEC” (1979), fazendo referência ao Cântico do Mar (o mesmo usado na interpretação do Arizal que vimos no post [118]):
“Penso que se deveria ressaltar o fato de que, em grande parte, os ‘clichês, motivos e estilos literários’ do poema [Cântico do Mar] servem para apresentar o faraó como o opressor político prototípico, modelo de outros opressores políticos bem conhecidos de Israel na sua própria terra, opressores que podem esperar um destino semelhante ao do faraó. Assim, enquanto concordando com Cross e Freedman no sentido de que o faraó não é ‘o Inimigo, o símbolo do caos cósmico, da dissolução ou da morte’, sustento ser ele percebido como o Inimigo histórico-político, o epítome daqueles soberanos opressores que os sistemas imperial-feudais da sociedade estatista do Oriente Próximo necessariamente produzem e aos quais Israel e o seu Deus da mesma maneira necessariamente devem se opor e derrotar.” (GOTTWALD, p. 514)
Isso reforça o ponto que eu já havia comentado no post [113]: muito do que vemos na Bíblia Hebraica pode ser melhor entendido num contexto de resistência israelita/judaica contra opressão sociopolítica, de cunho hierárquico e/ou imperial, no entorno do Antigo Israel.
Assim, para construir um significado místico em torno disso, é preciso começar de algo não mitológico-cósmico, mas sim firmemente histórico-social. Só sob uma firme base histórico-social como presente no texto da Torá é que, depois, se pode construir um significado místico, de caráter cósmico, como feito pela Kaballah judaica ao ligar o exílio histórico do povo judeu a um exílio cósmico envolvendo as centelhas divinas e o próprio Deus.
Por isso não é à toa que a Kaballah do Arizal dê um significado cósmico ao afogamento do Faraó do êxodo, no qual se satisfaria o significado secreto do esmagamento da serpente relatado no versículo que estamos examinando, pois aquele Faraó representaria a serpente virando cabeça e tornando Adam ( = o ser humano ) em cauda sendo derrotada. (Veja o post [118] para os detalhes)
Da mesma forma, a poética neo-cabalística de Aaron Zeitlin entende a narrativa do Éden como dizendo respeito às conexões profundas entre o amor erótico, a morte e a civilização (histórico), que refletiriam a dicotomia entre o eterno-estático e o transitório-dinâmico (cósmico). (Veja o post [123] para os detalhes)
Agora note a base textual mesmo dessas interpretações mais expansivas: é apenas depois que o Faraó do Êxodo é afogado no Mar Vermelho que foi possível a Torá ter sido entregue à humanidade. Após a libertação da opressão sob Faraó (uma “grande serpente”), foi no Monte Sinai que uma Árvore da Vida (a Torá) foi entregue novamente à humanidade mesmo fora do Éden, desfazendo a obra da “serpente” que tinha levado a humanidade a perder o acesso à Árvore da Vida dentro do Éden (veja post [120]).
E o aspecto cósmico disso é também evidente: apenas com a entrega da Torá que Deus novamente veio habitar entre os homens, mas dessa vez dentro de um santuário santificado de maneira a poder conter a presença santíssima divina nele. Daí a relevância do funcionamento do Santuário (posteriormente, Templo) que a Torá passa a descrever em detalhes depois disso, especialmente no livro de Levítico, e que os rabinos na Mishná e no Talmude fazem esforços heróicos para preservar tal memória no detalhe do detalhe.
Assim, o santuário também desfaz a obra da “serpente” que tinha levado a humanidade a perder o acesso à presença santíssima divina como havia no Éden.
Portanto, a redenção que esse versículo promete sob uma interpretação expansiva nada tem a ver com ser salvo do pecado ou do Diabo. Trata-se apenas da restauração da presença santíssima de Deus no mundo com a criação do povo judeu com o êxodo do Egito, derrotando o maior tirano da época.
E é apenas quando isso tudo é entendido dessa forma que realmente podemos começar a discutir a figura messiânica presente na tradição judaica. Na visão tradicional judaica, o Messias filho de Davi trará uma redenção sociopolítica definitiva ao povo judeu e ao mundo inteiro, acabando com toda opressão e reconstruindo o Templo. Ou seja, fazendo justiça social em escala mundial e restaurando a presença santíssima divina no mundo em seu grau mais elevado. Mas note: essa redenção messiânica não é diferente qualitativamente do que foi feito por Moisés antes, e de outros eventos similares de libertação sociopolítica e renovação da aliança entre Deus e seu povo.
É apenas que, na Era Messiânica, se concluirá aquilo que a libertação de Israel do Egito começou: o fim de toda opressão e a restauração da santíssima presença divina ao mundo, trazendo perpétua paz.
“A criancinha brincará perto do esconderijo da cobra, a criança colocará a mão no ninho da víbora.” (Isaías 11:8; verso citado por Kimhi/Radak para comentar Gênesis 3:15 e seu desfecho)
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