[126] O Jardim do Éden bíblico NÃO é cópia de contos sumérios

A Estrela da Redenção
10 min readJun 7, 2021

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Algumas pessoas por aí insistem em dizer que a narrativa de Adão, Eva e o Jardim do Éden seria uma simples cópia de contos sumérios e/ou mesopotâmicos. Geralmente encontramos tal afirmação na boca de alguns neo-ateus e esoteristas. O objetivo do presente post é para mostrar porque essa narrativa inicial do Gênesis NÃO É UMA CÓPIA de contos sumérios.

O que leva as pessoas a fazerem esse tipo de afirmação descuidada é que existem certas similaridades entre alguns contos sumérios e akkadianos com os elementos narrativos da história do Jardim do Éden (Adão, Eva e a serpente) e também do Dilúvio (Noé).

Por exemplo, no Épico de Gilgamesh, um homem chamado Enkidu é formado do barro e vive entre os animais do campo. Apenas depois de conhecer (sexualmente) uma mulher, ele se torna civilizado. Gilgamesh em certa altura busca uma planta que conferiria imortalidade em um “jardim dos deuses” e a encontra, mas por descuido uma serpente acaba roubando a tal planta. Como bônus, temos a figura de Utnapishtim, o sobrevivente de um grande dilúvio.

Gilgamesh e a serpente do Épico de Gilgamesh.

Como o Épico de Gilgamesh seria muito antigo (por volta de 2.000 AEC — enquanto veremos que a coisa é mais complexa logo mais), bem anterior à Torá (que começou a ser escrita por volta de 900 AEC), então o Épico de Gilgamesh não teria copiado a Torá.

Com base nesses elementos, algumas pessoas chegam na conclusão (altamente precipitada, como veremos) de entender que as histórias sobre Adão, Eva, a serpente, o Jardim do Éden e a Árvore da Vida (e a história de Noé e o dilúvio) teriam sido copiadas do Épico de Gilgamesh ou de outros contos sumérios a respeito de Gilgamesh ou Enkidu. O Gênesis seria por isso uma cópia do Épico de Gilgamesh.

Para entender o motivo para tal afirmação ser totalmente equivocada e aloprada, temos duas linhas de raciocínio independentes, ambas mostrando cabalmente o erro dessa afirmação.

Em primeiro lugar, a única história suméria ou akkadiana que de fato tem uma similaridade narrativa bem próxima à bíblica se refere especificamente à questão do dilúvio, com o sumério Utnapishtim estando em par com o bíblico Noé. E isso não impede de que haja diferentes significativas na maneira como as histórias de Utnapishtim e Noé são pensadas (por exemplo, Utnapishtim é salvo por um dos deuses, a contragosto de outro deus que gostaria que todos os mortais fossem exterminados; e esse outro deus, descontente com a sobrevivência de Utnapishtim, concedeu imortalidade a ele, para conseguir tecnicamente o objetivo de que todos os mortais tivessem morrido no dilúvio).

Já os paralelos feitos com as narrativas do Éden são apenas de alguns poucos tropos narrativos comuns. Enkidu não é o primeiro homem, a mulher com quem ele tem relações sexuais não é a primeira mulher (e de fato, trata-se de uma prostituta consagrada enviada por Gilgamesh), Gilgamesh não é um humano comum (ele é parte divino e parte humano), a serpente bíblica e a planta da imortalidade não estão conectadas a nenhuma noção de Aliança e Mistvá (como no caso da Árvore da Vida e a serpente bíblica), o jardim dos deuses é um jardim para os deuses e não feito para os humanos como o Jardim do Éden. Note que Gilgamesh descende de Utnapishtim, então obviamente nem ele nem Enkidu podem ser os primeiros humanos. E o objetivo de Enkidu ter sido criado do barro (sem ancestrais) não era que ele fosse o primeiro ser humano, mas que ele foi a criação de alguns deuses para contrapor a tirania de Gilgamesh contra o povo de sua cidade (mas depois Gilgamesh e Enkidu tornam-se heróis aliados).

A meu ver, forçar a barra para afirmar uma linha direta entre Gilgamesh e Ekidu no Épico de Gilgamesh e os primeiros 3 capítulos do Livro de Gênesis (a narrativa do Éden) é muito mais uma reminiscência de visões há muito desacreditadas em arqueologia como as pan-babilonistas (e a associada Escola Bíblia-Babel), para as quais todos os traços culturais das civilizações poderiam ser rastreados à civilização dos antigos babilônios/mesopotâmicos, a partir da qual se espalharam para as outras por meio de difusão cultural. Outro exemplo de hiperdisufisionismo similar era a ideia de que todos os traços culturais vieram dos antigos egípcios.

O hiperdifusionismo de todo tipo é entendido como uma abordagem pseudo-arqueológica para a arqueologia acadêmica atual. Obviamente existe difusão transcultural e esta é estudada pela arqueologia legítima, mas o pensamento hiperdifusionista (explícito ou implícito) adota uma explicação simplista pela qual todas as inovações culturais mais importantes derivam linearmente de uma antiga civilização (ou mesmo uma antiga civilização “perdida”, daí a atração de alguns esoteristas por esse tipo de pensamento). A difusão transcultural efetiva é muito mais complexa que isso.

Além disso, a própria ideia de que o Épico de Gilgamesh seja a produção literária mais antiga conhecida contribui para que se forme esse mito em torno dele. Um problema é que muitas vezes se afirma simplesmente que o Épico seja datado de 2.000 AEC, sem explicar que: 1) essa data é uma estimativa com margem de erro, significando algo em torno de 2.000–1.800 AEC; 2) essa data é o início do processo de redação desse Épico, não sendo a data de sua finalização; 3) o Épico de Gilgamesh tal como o conhecemos hoje é uma versão mais recente, escrita por volta de 1.200–1.100 AEC, isto é, no mesmo período em que o Antigo Israel já existia.

Esse 3º ponto é relevante também na medida em que algumas pessoas tentam usar como “prova da cópia” que o Épico é muito mais antigo que o Gênesis por atribuírem uma data bem tardia para a escrita do livro de Gênesis, em grande parte motivados pela conveniência à sua “teoria da cópia”. Você encontrará gente por aí dizendo que a narrativa do Gênesis era da época do reinado de Josias em Judá (640 a 610 AEC), confundindo provavelmente a hipótese que diz respeito ao livro do Deuteronômio ser dessa época. Por outro lado, alguns dirão que o Gênesis é do período do exílio babilônico (598 a 538 AEC), mas confundindo a finalização do Gênesis com seu período de escrita. Na verdade o livro de Gênesis como o conhecemos hoje é produto de um longo processo redacional que recorreu a fontes que foram escritas séculos antes disso (um processo provavelmente iniciado por volta de 900 AEC), sem contarmos as tradições orais prévias ao processo de escrita. Então, a questão da datação é bem mais complexa do que pode parecer.

Isso nos permite levar ao segundo ponto que, a meu ver, é o mais importante, dado que ele também se aplica mesmo para o caso de maior similaridade narrativa, qual seja, o paralelo entre o dilúvio de Noé e o dilúvio de Utnapishtim.

Sim, nós de fato encontramos paralelos entre a cultura judaica e culturas maiores da região, seja sumérios, egípcios, mesopotâmicos, babilônios, assírios, etc.

Mas isso NÃO significa que os antigos israelitas/judeus copiavam tais civilizações.

Na verdade isso deriva simplesmente do fato de que os antigos israelitas/judeus compartilhavam UM BACKGROUND CULTURAL COMUM a todas as civilizações do Crescente Fértil. Até porque a terra de Israel ficava LITERALMENTE NO MEIO do Crescente Fértil, entre o Rio Nilo (Egito) e os Rios Tigre e Eufrates (Mesopotâmia, Assíria, etc.).

Em verde, o Crescente Fértil. Veja a posição estratégica da terra de Israel/Canaã.

Portanto, tratava-se de território marcado por intensos intercâmbios culturais e fluxos populacionais. E isso NUNCA FOI ESCONDIDO, na verdade está na PRÓPRIA BÍBLIA CLARAMENTE DESCRITO.

O problema portanto com essas alegações de “cópia” é que tais pessoas parecem ignorar que os judeus não eram um povo externo às civilizações do Crescente Fértil, mas sim se desenvolveram naquele meio. Então os aspectos culturais comuns são HERDADOS desse panorama cultural mais amplo, e não copiados a partir de fora.

Imagina que eu afirmasse que os brasileiros imitaram o Natal dos europeus… Os brasileiros HERDARAM o Natal a partir de tradições europeias, por conta do processo de colonização do Brasil. Não tem nada a ver com “cópia”.

E geralmente essa visão da cópia se baseia em um mal entendido muito basilar a respeito da Torá em particular e da Bíblia Hebraica em geral. Por algum motivo as pessoas tendem a achar que tais livros afirmam estar na posse de um conhecimento único, “revelado”, exclusivo. Daí encontrar paralelos em textos mais antigos indicaria a falsidade dessa premissa. Mas se você ler de forma mais natural, sem tal pressuposição, é bem claro que o texto bíblico jamais se comprometeu com tal premissa (como muito bem articulado em termos gerais por Yoram Hazony em seu livro “The Philosophy of Hebrew Scripture”).

O próprio livro de Gênesis mostra que os judeus entendiam que eles foram um povo que surgiu mais tardiamente, que seus antepassados moraram em diversos lugares (da Mesopotâmia ao Egito, e também em Canaã — a terra prometida), que não foram os judeus que inventaram a maioria das coisas, etc.

Como falei no post [122], Gênesis 10 tentará explicar como todos os povos conhecidos pelos israelitas antigos circundando a terra prometida se aparentavam uns com os outros. Por exemplo, Egito, Cush (Etiópia) e Canaã eram originalmente 3 filhos de Cam (um dos filhos de Noé), e que a Assíria era originalmente 1 dos filhos de Sem (também filho de Noé), então tecnicamente a Assíria era prima do Egito e da Etiópia. Babilônia foi construída por Nimrod, que era neto de Cam (por parte de Cush). Os hebreus vieram de Éber, cujo tio-avô fora Assíria. Os israelitas (filhos de Israel/Jacó) surgem em cena muito depois, uma vez que Jacó é entendido como da 12ª geração após Noé.

Ou seja, revisando: enquanto o Egito, a Etiópia, os cananeus em conjunto, a Assíria e a Babilônia (Babel) eram todos entendidos como já vindo à existência na 2ª ou 3ª geração após Noé, os hebreus genericamente falando eram da 4ª geração e os israelitas/judeus em si eram apenas da 12ª geração. Então o povo de Israel segundo a própria Bíblia entra tardiamente no cenário das civilizações do Crescente Fértil (o que é corroborado pela evidência arqueológica).

Além disso, na Torá e na Bíblia Hebraica não existe a ideia de que os outros povos são “perdidos” ou “malignos”. Ao contrário, vemos por exemplo na saga de Salomão no livro dos Reis como ser prestigiado por outros povos era visto como algo a princípio positivo (exceto na medida em que levasse os israelitas a se afastarem do pacto com seu Deus). Ali fica claro que a “sabedoria” não era uma prerrogativa dos judeus, tanto que existia um padrão comum para comparar a sabedoria de Salomão com a sabedoria existente entre as outras civilizações da região. A saga pressupõe que os egípcios e os mesopotâmicos tinham sabedoria, apenas tentando afirmar que Salomão conseguiu ainda mais da sabedoria cultivada por todos os povos da região:

“E deu Deus a Salomão sabedoria, e muitíssimo entendimento, e largueza de coração, como a areia que está na praia do mar.
E era a sabedoria de Salomão maior do que a sabedoria de todos os do oriente e do que toda a sabedoria dos egípcios.
E era ele ainda mais sábio do que todos os homens, e do que Etã, ezraíta, e Hemã, e Calcol, e Darda, filhos de Maol; e correu o seu nome por todas as nações em redor.
E disse três mil provérbios, e foram os seus cânticos mil e cinco.
Também falou das árvores, desde o cedro que está no Líbano até ao hissopo que nasce na parede; também falou dos animais e das aves, e dos répteis e dos peixes.
E vinham de todos os povos a ouvir a sabedoria de Salomão, e de todos os reis da terra que tinham ouvido da sua sabedoria.” (1 Reis 4:29–34)

A temática da sabedoria é particularmente interessante se examinamos obras desse estilo na Bíblia Hebraica como Provérbios e Jó.

Há toda uma seção do Livro de Provérbios (22:17 a 23:12) que parece fazer referência a um texto de sabedoria egípcia, as Instruções de Amen-em-Opet (Amenenope). Por outro lado, Provérbios 31 afirma compilar palavras do rei Lemuel, com base na profecia dita a ele por sua mãe. Contudo, tal nome não era de nenhum dos reis judeus que governaram seja Judá ao sul ou Efraim/Israel ao Norte.

É verdade que é possível interpretar Lemuel como um codinome para Salomão, como fez Rashi e o Talmude (Avot D’Rabbi Natan 39:4) com o interessante resultado de que estaríamos lendo a profecia da mãe dele, Batsebá! Mas isso não exclui que se possa ler aqui em termos histórico-críticos como referindo a um rei estrangeiro sábio e, assim, uma rainha-mãe estrangeira sábia, como destaca a Enciclopédia Judaica.

Já o livro de Jó é totalmente estrelado por sábios não-judeus que fazem uma sofisticada discussão com poesias intrincadas. O protagonista Jó explicitamente não é judeu, mas Ezequiel 14:14 o qualifica como um dos maiores justos que já existiram.

Assim, nem mesmo a própria Bíblia assume que ela estaria num monopólio exclusivo a respeito do conhecimento de Deus, da sabedoria da criação, dos personagens lendários ou históricos na região etc.

A raiz desse mal entendido parece residir no fato das pessoas acharem que a Bíblia Hebraica/Torá seria uma coletânea preocupada com “religião”, no sentido de uma “doutrina” ou “verdade”. Mas é fácil perceber que a Torá se ocupa basicamente com a vida normal de um povo entre outros (o que inclui aspectos religiosos, mas não se limita a eles).

O Antigo Israel não era um grupo religioso defendendo alguma doutrina, mas uma civilização pequena que comercializava, ia à guerra (quase sempre defensiva), praticava agricultura etc. tendo uma jurisprudência comunitária baseada numa aliança histórica entre esse povo e sua divindade específica (mas desenvolvida em/para casos particulares por meio de raciocínio humano).

Mesmo hoje o judaísmo é muito mais uma metodologia do que uma doutrina, como falei no post [107], e muito mais uma comunidade e uma cultura (com dimensões seculares e religiosas) ao invés de um grupo religioso. Ou seja, judaísmo é antes de tudo uma CIVILIZAÇÃO.

E como já afirmei acima, as similaridades e paralelos encontrados entre os traços culturais do Antigo Israel (preservados na Bíblia Hebraica) e os traços culturais dos egípcios, mesopotâmicos, sumérios, etc. refletem muito mais o fato de que a civilização menor do Antigo Israel existia em um panorama cultural comum com aquelas diferentes civilizações maiores que o circundavam e cujos fluxos (comerciais, populacionais etc.) eram uma constante dado que a terra de Israel estava localizada no meio do Crescente Fértil.

A Bíblia Hebraica é uma grande herdeira das antigas civilizações do Crescente Fértil, tanto considerando aquilo em que reteve um padrão comum quanto naquilo em que delas se diferenciou e se contrapôs (formando assim uma civilização própria, a judaica, que persiste até hoje). Afirmar que ela fez uma “cópia” dessas outras civilizações não passa de sensacionalismo barato!

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.