[110] Como ler a Torá corretamente? (5 primeiros livros da Bíblia)
À essa altura do blog percebi que não tenho ainda um texto explicando o básico de como se deve fazer para ler a Torá adequadamente, nesse caso entendendo a Torá como os 5 primeiros livros da Bíblia (Hebraica), também conhecido como Pentateuco. Chegou a hora de preencher essa lacuna!
Primeiro, você precisa saber do que estamos falando. A Torá nesse sentido estrito da palavra se refere aos 5 primeiros livros da Bíblia Hebraica, vulgarmente conhecida pelo nome de “Velho” Testamento (como é chamada pelos cristãos). Por conta disso, toda Bíblia (seja editada por judeus ou cristãos) contém a Torá (no original ou traduzida).
A Torá também é conhecida como os 5 livros (da Lei) de Moisés, uma vez que, tradicionalmente, acreditava-se que Moisés fosse o autor desses livros. Esses 5 livros são mais conhecidos pelos nomes em grego dados a eles: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Os nomes em hebraico (isto é, os nomes corretos) são: Bereshit, Shemot, Vayicrá, Babidmar e Devarim, respectivamente. O idioma da Torá é o hebraico e por isso quanto mais você souber de hebraico melhor será a compreensão.
A divisão da Torá em capítulos e versículos tal como temos hoje em dia é de obra cristã. Essa forma de dividir não foi pensada de acordo com o ritmo do original hebraico, mas é conveniente para fins de referência.
A forma judaica de dividir a Torá, forma esta que obedece o ritmo do texto original em hebraico, recorta a Torá em porções semanais de leitura, as chamadas parashiot (singular: parashá). Assim, a Torá inteira está dividida em 54 porções, ou parashiot.
A divisão em parashiot segue um ritmo bem literário, cada parashá geralmente deixando para o leitor alguma inconclusão a ser respondida pela próxima parashá.
Por exemplo, a primeira parashá da Torá, a parashá Bereshit (no livro de Bereshit/Gênesis), começa com a criação do mundo e termina com a decadência da humanidade na época de Noé.
Nos versículos finais dessa Parashá, o cenário descrito é sombrio e aparentemente sem esperança:
“E viu o Senhor que a maldade do homem se multiplicara sobre a terra e que toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era só má continuamente.
Então arrependeu-se o Senhor de haver feito o homem sobre a terra e pesou-lhe em seu coração.
E disse o Senhor: Destruirei o homem que criei de sobre a face da terra, desde o homem até ao animal, até ao réptil, e até à ave dos céus; porque me arrependo de os haver feito.” (Gênesis 6:5–7)
Mas a Parashá conclui com o seguinte verso, que deixa em aberto o desfecho dessa situação:
“Noé, porém, achou graça aos olhos do Senhor.” (Gênesis 6:8)
A Parashá Bereshit conclui com esse pequeno raio de esperança. Será que haverá uma salvação para os humanos e os animais depois de tudo? Qual será o significado de Deus ter olhado com graça para Noé? E também perguntas mais técnicas surgem à mente: como Deus pretende destruir a vida sobre a terra? Isso certamente vai influir em como algum remanescente de vida poderia ser salvo!
Como essa história é muito famosa, o leitor talvez já tenha lido aquele “destruirei o homem que criei de sobre a face da terra…” como “mandarei um dilúvio”, mas quando lemos usando as parashiot, fica bem claro que até esse momento não nos é dito como será essa destruição. É apenas na próxima parashá, a Parashá Noach (Noé), que tal questão será respondida.
Existe um calendário litúrgico pelo qual a cada semana é atribuída pelo menos uma parashá, completando um ciclo anual que acompanha o ano judaico. O ciclo anual de leitura da Torá sempre conclui e imediatamente reinicia no primeiro mês do ano judaico (Tishrei), logo após a festa das Cabanas (Sucot), no dia da festa de Simchat Torá, ocasião na qual se comemora dançando com os (rolos de) Sifrei Torá na Sinagoga! Assim, todo ano a Torá é lida em ordem como parte da liturgia judaica.
Eu recomendo que o leitor preferencialmente siga essa ordem litúrgica, ou, pelo menos, tenha em mente onde começa e termina cada parashá em qualquer ordem que deseje ler. Numa Bíblia Cristã, não existe marcação das parashiot, o que prejudica a leitura. Portanto, preferencialmente opte por uma Bíblia Judaica, as quais marcam cada parashá.
O ideal é ler cada parashá com comentários judaicos, seja peshat (significado direto/contextual) seja derash/midrash (significado expandido/derivativo). O comentário peshat mais usado é o de Rashi (várias edições judaicas em português contém alguns ou todos de Rashi), mas é possível ler comentários peshat de vários outros comentaristas, tais como Ibn Ezra, Rashbam, Ramban, etc. (por exemplo, na coleção da The Commentators’ Bible). No meio virtual, você encontra (quase) tudo no site da Sefaria, em hebraico e (pelo menos boa parte) em inglês.
Um leitor mais ambicioso poderia ler junto da Parashá um comentário sod (significado secreto/místico) entrando em Kaballah, por exemplo, pegando o Zohar, que esmiúça cada parashá da Torá nesse nível místico de sentido. Mas esse é um nível mais avançado de leitura, pois textos de Kaballah pressupõem que o leitor esteja familiarizado com a Bíblia Hebraica, os Midrashim e o Talmude, sem contar o idioma hebraico e certos métodos de decodificar esse idioma, por exemplo, a Gematria (atribuindo um significado numérico às letras hebraicas), que pertence ao significado remez (significado alusivo).
Uma outra ideia poderia ser a de ler Códigos de Lei Judaica de forma pareada aos textos normativos da Torá. Contudo, deve-se ter em mente que a discussão de Halacha (Jurisprudência Judaica/Lei Judaica), como encontrada no Talmude e sumarizada em Códigos como Mishnê Torá de Rambam/Maimônides ou Shulchan Aruch de Yosef Karo, é muito diferente em seus objetivos de uma interpretação do texto bíblico (mesmo que seja o texto da própria Torá).
Como você pode observar no post anterior sobre uma das mitzvot (preceitos) cumpridas no Templo Sagrado, a busca pela decisão halachica mais adequada vai muito além de uma inspeção do texto bíblico. Isso requer raciocínio prático e dialética argumentativa para muito além do texto, focando em casos concretos e precedentes estabelecidos. Ou seja, aplicação prática REAL em situações particulares (enquanto algumas vezes a possibilidade seja apenas hipotética).
Os comentários judaicos já indicados (como o de Rashi) comentam a norma de Halacha quando pertinente, mas de uma maneira suficiente para o entendimento do texto (ou seja, mesmo que não suficiente ainda para decisões práticas, já basta para capturar o significado textual). Os Códigos de Lei Judaica podem ser úteis numa investigação de cunho mais interpretativo (por exemplo, num intuito comparativo contrastando opiniões halachicas de Rambam com comentários peshat envolvendo halacha de Rashi), mas é preciso estar ciente que tais codificações introduzem o leitor primordialmente à Lei Judaica, não ao texto bíblico em si.
Se o leitor iniciante quiser muito ir por esse caminho, recomendaria os sumários das 613 Mitzvot da Torá como uma forma mais acessível para correlacionar Lei Judaica e texto bíblico. Exemplos disso são o Sefer Hamitsvót (Rambam) e o Sefer Hachinuch (anônimo).
Voltando à ordem litúrgica de leitura, a cada parashá é atribuída uma haftará, que são porções selecionadas dos livros dos Neviim (Profetas), os quais na divisão judaica da Bíblia Hebraica são compostos por 4 livros históricos, 3 livros dos Profetas (Literários) Maiores e 12 livros dos Profetas (Literários) Menores (compilados como 1 livro dos 12 Profetas).
Também diria ser recomendável ler a parashá junto à haftará, uma vez que foi feito um pareamento de cada porção da Torá com um trecho dos Neviim que tenha um forte nexo àquela porção da Torá.
Ao contrário das parashiot, as haftarot não dividem inteiramente os livros dos Neviim. Nesse sentido, a seleção de haftarot é uma função da divisão em parashiot: foram selecionados dos Neviim os textos que melhor refletiam o ensinamento de cada parashá da Torá.
Assim, o leitor terá um pequeno “aperitivo” dos Neviim, sentindo um pouco de seu gosto, lendo alguns textos que ajudam a entender ou contextualizar melhor a própria Torá. Pois nos livros dos Neviim vemos a aplicação da Aliança da Torá na “primeira história da aliança”: a primeira chegada à terra prometida, o primeiro exílio para longe da terra prometida e o primeiro retorno à terra prometida, fornecendo um protótipo para tudo o que viria depois na história judaica!
Comentários acadêmicos são bem-vindos também. Mas eu insisto que os comentários tradicionais judaicos devem tomar precedência. A razão é que os comentários tradicionais judaicos são também acadêmicos, mas num estilo “acadêmico-tradicional”. Os rabinos de diversos períodos históricos analisaram a Torá em cada uma de suas letras e vírgulas atrás de significados, conexões, etc. num processo cumulativo e de uma forma “viva”, isto é, em uma continuidade cultural orgânica com os próprios escritores bíblicos.
Eu diria que a melhor forma de ler a Torá, no sentido de um “estilo de leitura”, é fazê-lo de uma forma “literária”, tentando entender o encadeamento da narrativa e a construção dos personagens, que é como você faria lendo literatura “normal”. Os comentários judaicos ajudam muito nisso, pois foi assim que os judeus leram esses textos ao longo dos milênios, e o fizeram de um modo ajustado ao idioma e cultura originais, organicamente dando continuidade ao estilo de raciocínio em hebraico desses textos.
Não leia de forma apologética, seja num sentido “crente” ou “cético”. Mais provável que isso estrague completamente a experiência de leitura! Esse é mais um motivo da vantagem da leitura judaica desse texto judaico. Dentro do judaísmo não havia uma pressão para ler esses textos apressadamente seja no sentido de “comprová-los” ou de “refutá-los” (como ocorre hoje em dia no debate entre fundamentalistas cristãos e neo-ateus/fundamentalistas ateus). Por isso a metodologia judaica para estudo da Torá é muito mais ajustada ao estilo e propósito desses textos do que essas leituras fundamentalistas (seja crentes ou céticas) mais comuns que vemos por aí.
E como o leitor provavelmente é mais familiarizado com as leituras fundamentalistas seja crentes ou céticas da Torá, o melhor a fazer se quer realmente entender a Torá é simplesmente esquecer tudo o que ouviu anteriormente, e ir de mente aberta para o texto e seus comentários judaicos. Ler este blog também pode te ajudar nisso!
Recomendações de edições em língua portuguesa que podem ser úteis para o leitor nesse caminho de ler a Torá com comentários judaicos:
- para um bê a bá da leitura judaica da Torá, EXTREMAMENTE ACESSÍVEL: coleção O Pequeno Midrash Diz. Cobre todas as parashiot de todos os livros da Torá, recontando o conteúdo dela de uma forma muito didática com base nos textos em si e nos midrashim a respeito deles. (E tem como sequência a coleção O Midrash Diz, atualmente indo de Josué até 1Reis, entrando assim nos livros dos Neviim)
- para uma edição com todos os comentários de Rashi: a Torá Rashi, cada volume sendo um dos livros da Torá com os comentários de Rashi.
- para uma edição contendo comentários básicos do editor, baseados em comentaristas diversos, num único volume: Torá da Editora Sêfer, contendo todas as parashiot, haftarot e as cinco meguilot (5 livros dos Ketuvim — Escritos — lidos por inteiro em datas especiais do calendário judaico).
- para uma edição que comenta e elabora de forma mais profunda discutindo alguns comentários selecionados de Rashi e outros comentaristas clássicos: coleção Chumash-Gutnick, cada volume sendo um dos livros da Torá com comentários aprofundados.
- para uma edição que comenta e elabora de forma mais profunda grande parte dos trechos da Torá, inclusive fazendo remissão às opiniões dos sábios talmúdicos, mas já no contexto da modernidade: Torá Interpretada, do Rabino Hirsch, cada volume sendo um dos livros da Torá com comentários aprofundados e extensos.
- para uma tradução judaica da Bíblia Hebraica inteira, diretamente do hebraico e à luz do Talmud e das fontes judaicas, mostrando a forma como os judeus leem e entendem o texto bíblico há milhares de anos (mas sem comentários): o Tanah Completo — Hebraico e Português, da Editora Sêfer.
A editora Maayanot tem também livros dos Ketuvim — Escritos — com comentários judaicos tradicionais diversos: para o livro de Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Ester e Rute. E tem também duas ótimas edições dos Salmos, uma bilíngue (hebraico — português) e transliterada linearmente (mas sem comentários, exceto por um brevíssimo resumo introduzindo cada salmo lido na sequência), e outra bilíngue, contendo breve comentário do editor introduzindo o salmo lido (mas sem transliteração). Enquanto eu não tenha discutido aqui a leitura desses textos da Bíblia Hebraica, achei que valia a pena pelo menos mencionar essas edições — que obviamente também contribuem à leitura da Torá.
Em inglês, enquanto dispendioso, recomendo a The Commentators’ Bible: The Rubin JPS Miqra’ot Gedolot (uma versão de Miqra’ot Gedolot traduzida), que compila a maioria dos comentários de Rashi, Rashbam, Ibz Ezra e Ramban/Nachmânides (e de bônus alguns de outros comentaristas, como Abrabanel e Hizkuni) para cada parashá de cada livro da Torá, contendo 2 traduções para o inglês e o texto original em hebraico, em 5 volumes (cada um sendo um dos livros da Torá).
Pela internet, recomendo em inglês o comentário completo de Rashi para a Bíblia Hebraica inteira (Torá, Neviim, Ketuvim) disponível online. Também recomendo olhar no site da Sefaria para comentários diversos traduzidos para a língua inglesa.
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