[154] Os Escritos falam dos Messias? Quadro Geral
Dando continuidade ao propósito de fornecer aos leitores do blog o panorama geral de se e como a esperança messiânica emerge em diferentes partes da Bíblia Hebraica, analisarei aqui o quadro geral da terceira e última parte da Bíblia Hebraica, os Ketuvim/Escritos.
Anteriormente, analisei a Torá ([150]), a primeira parte dos Neviim, com os livros históricos dos Profetas Anteriores ([151]), o caso samaritano que aceita apenas Torá sem Neviim nem Ketuvim ([152]), e a segunda parte dos Neviim, com os livros proféticos dos Profetas Literários ([153]).
Antes de adentrar no tópico, é preciso observar que a Ordem Judaica dos livros da Bíblia Hebraica é diferente daquela que se encontra no “Velho” Testamento de uma Bíblia Cristã. Mesmo que no caso cristão protestante, os livros do “Velho” Testamento sejam exatamente os mesmos da Bíblia Judaica, a ordem dos livros é diferente. Isso pode parecer um detalhe menor, mas na verdade essa alteração tem um impacto significativo no entendimento. Por conta disso, aqui será usada a divisão original, i. e. judaica, dos livros da Bíblia Hebraica em 3 coletâneas: 1) Torá; 2) Neviim/Profetas; 3) Ketuvim/Escritos. Revise o post [112] se preciso.
Outro ponto preliminar é que a Bíblia Hebraica NÃO se preocupa com salvação espiritual da alma, e em verdade a própria questão da vida após a morte praticamente NÃO ocorre nela (com a grande exceção do livro mais tardio, o de Daniel, que se refere a uma ressurreição de ‘alguns’ num futuro indeterminado, sem, porém, fornecer nenhuma doutrina sistemática a respeito; o livro de Daniel faz parte dos Ketuvim, e será analisado em post separado, por conta dessa singularidade). Revise os posts [27]-[28] se preciso. Tudo o que esses livros se preocupam é com esta vida aqui e agora. Geralmente essa concepção existencial está no background. O destino de alguém após a morte sequer é cogitado. Nós simplesmente vemos uma sucessão de vidas e gerações. Pessoas indo e vindo numa história comunitária. A grande questão é a persistência da comunidade. O indivíduo morre, mas a comunidade permanece — e assim permanece também o seu legado para a continuação dessa história. Isso é relevante para entender porque a ideia de Messias se desenvolverá.
Adentrando nos Ketuvim, essa é a terceira e última parte da Bíblia Hebraica, e é composta por livros de vários estilos. Não possui um fio condutor tão fechado quanto o da Torá (os fundamentos da Aliança) ou dos Neviim (as aplicações da Aliança na 1ª História de Israel na terra prometida e suas elaborações proféticas), mas podemos dizer de uma maneira mais geral que os Ketuvim se preocupam com os frutos da Aliança, de diferentes tipos: poesia, sabedoria, liturgia, novas formas de narrar e viver sua história.
Os Escritos são divididos em 3 categorias dentro da divisão judaica:
a) Livros da Verdade (Sifrei Emet): Salmos, Provérbios, Jó;
b) as 5 Meguillot: Cântico dos Cânticos, Rute, Lamentações, Eclesiastes, Ester;
c) Daniel; Esdras-Neemias (num único livro); [1–2]Crônicas.
Esses livros falam dos Messias? A resposta geral aqui é que a maioria não aborda esse tópico, e alguns mesmo parecem sequer conhecer ou acreditar em tal esperança. As duas exceções são o livro de Salmos e o livro de Daniel, que analisarei em tópicos próprios. O livro do Cântico dos Cânticos, apesar de não abordar o tema, também receberá um post próprio por conta da maneira que tal livro forneceu elementos para a tradição judaica rabínica após o exílio romano.
Então, tirando Salmos e Daniel, podemos dizer que de modo geral os Ketuvim não falam da esperança messiânica. Isso não impede que, sob níveis interpretativos menos diretos, possamos conectar pontos dos Ketuvim com a esperança messiânica. Mas a esperança ela mesma não aparece originalmente ali exceto por Salmos e Daniel.
Fora esses dois, o caso que chega mais perto de abordar tal esperança é o livro de [1–2]Crônicas, porque, como veremos, ele revisa em grande parte o conteúdo de [1–2]Samuel e [1–2]Reis numa versão mais sucinta, contudo, aqui ele não acrescenta algo a mais do que a própria História Deuteronomista já fizera (e, como vimos no post respectivo, o que a História Deuteronomista faz é fornecer elementos para o imaginário messiânico, mas não se engaja diretamente nisso).
Contudo, apesar da maioria dos livros dos Ketuvim não abordarem a esperança messiânica, vale a pena falar um pouco sobre tais livros “não-messiânicos”. Mesmo que não abordem a esperança messiânica, ainda é possível tirar algumas conclusões interessantes exatamente dessa ausência. Então, no que segue falarei dos Ketuvim, com exceção de Salmos e Daniel.
Podemos dividir os Ketuvim ‘não-messiânicos’, quando ao tom geral desses livros, em 2 grandes blocos: 1) os otimistas; 2) os pessimistas.
Entre os otimistas, ficam: Provérbios, Cântico dos Cânticos, Rute, Ester.
Entre os pessimistas, ficam: Jó, Lamentações, Eclesiastes.
De maneira intermediária, fica a obra do Cronista: [1–2]Crônicas e Esdras-Neemias.
Os otimistas são os livros que olham a vida de uma forma no geral mais positiva, enquanto os pessimistas são os que olham a vida de uma forma no geral mais negativa. Os intermediários refletem uma avaliação mista da história israelita que abordam. Vamos entender em detalhes a seguir.
O livro de Provérbios é um livro de sabedoria, composto por inúmeros provérbios e ditos, com vários diferentes autores, mas compilados juntos, desde a época em que a dinastia de Davi se firmou, a partir de Salomão.
No livro de Provérbios, a própria questão de uma Redenção Messiânica seria deslocada. O foco de Provérbios é muito mais prático e imediato do que o imaginário profético. Se estamos vivendo numa sociedade organizada, as virtudes tendem a ser recompensadas e os vícios tendem a ser punidos. Então, a instrução dada pelos Provérbios é a de uma sabedoria prática de vida que, em condições normais “de temperatura e pressão”, funciona para que se viva mais e melhor, tanto ao nível individual e familiar, quanto ao nível comunitário. A prática da justiça contribui para uma vida melhor.
“O que trabalha com mão displicente empobrece, mas a mão dos diligentes enriquece.
O que ajunta no verão é filho ajuizado, mas o que dorme na sega é filho que envergonha.” (Provérbios 10:4,5)
Por conta disso os Proverbistas não param para sonhar com uma era de paz e amor universais como fazem os Profetas. Independente do que acontecerá no futuro ou do que já aconteceu no passado em termos de libertações e redenções, é possível se encaminhar bem por seguir certos conselhos práticos, ao menos em condições normais.
“A resposta branda desvia o furor, mas a palavra dura suscita a ira.” (Provérbios 15:1)
“O homem iracundo suscita contendas, mas o longânimo apaziguará a luta.” (Provérbios 15:18)
“Melhor é o pouco com o temor do Senhor, do que um grande tesouro onde há inquietação.
Melhor é a comida de hortaliça, onde há amor, do que o boi cevado, e com ele o ódio.” (Provérbios 15:16,17)
Então o alento dos Proverbistas é que Deus traz um juízo sutil de forma constante sobre as ações humanas, não precisando esperar grandes acontecimentos envolvendo povos inteiros (como é o foco dos Profetas ou mesmo da própria Torá). Ser justo compensa, “o crime não compensa” (mas eles reconhecem que existem males acontecem aos inocentes quando se desvia da regra da justiça).
“Os tesouros da impiedade de nada aproveitam; mas a justiça livra da morte.” (Provérbios 10:2)
“O Senhor desarraiga a casa dos soberbos, mas estabelece o termo da viúva.” (Provérbios 15:25)
“Todos os dias do oprimido são maus, mas o coração alegre é um banquete contínuo.” (Provérbios 15:15)
O fato de que parte dos provérbios tem sua autoria atribuída a Rei Salomão e sua compilação feita por funcionários do Rei Ezequias também é relevadora de um ponto bem importante. O modo de vida concebido pelos Provérbios pressupõe uma comunidade bem ordenada com base na justiça e/ou Torá. Não é correto ler os Provérbios como significando uma doutrina automática de recompensa do bem e punição do mal fora de certo contexto social. Contudo, os Provérbios não têm um caráter muito ‘monárquico’: seja qual for a forma de governança social (republicana, monárquica, tribal, etc.), o ponto é que, numa comunidade onde a justiça de modo geral e a Torá em particular estão à frente, o bem é recompensado e o mal é punido. Podemos entender que os Provérbios nos incentivam a construir essa estrutura social na qual, de fato, seus ditos aplicam-se da forma mais célere e exata possível.
O contraponto pessimista a isso é dado pelo livro de Jó. Esse livro apresenta uma poesia intrincada (cercada por duas seções de prosa, ao início e ao final) na qual discutem Jó e 4 amigos a respeito de se é possível sofrer aflições mesmo sendo uma pessoa justa e/ou inocente, e mais para o fim o próprio Deus se junta à conversa, também falando em poesia.
Ao contrário do foco de Provérbios, Jó lança luz no fato de que o justo pode sim sofrer aflições, inclusive de uma maneira bem desproporcional, como seria o caso do próprio Jó. E mesmo que isso fosse a trágica exceção à regra, ainda é muito significativo em si mesmo, motivando Jó a convocar Deus em julgamento (diante do próprio Deus!).
“Sabei agora que Deus é o que me transtornou, e com a sua rede me cercou.
Eis que clamo: Violência! Porém não sou ouvido. Grito: Socorro! Porém não há justiça.” (Jó 19:6,7)
Por conta disso, não faria muito sentido para esse livro esperar algo como a redenção messiânica, de caráter mais geral e histórico, contudo, Jó aborda o tópico da redenção aqui e ali, com ênfase no paradoxo:
“Ainda que ele me mate, nele esperarei; contudo os meus caminhos defenderei diante dele.
Também ele será a minha salvação; porém o hipócrita não virá perante ele.” (Jó 13:15,16)
“Porque eu sei que o meu Redentor vive, e que por fim se levantará sobre a terra.
E depois de consumida a minha pele, contudo ainda em minha carne verei a Deus,
Vê-lo-ei, por mim mesmo, e os meus olhos, e não outros o contemplarão; e por isso os meus rins se consomem no meu interior.” (Jó 19:25–27)
Outro contraponto pessimista ao livro de Provérbios é o o livro do Eclesiastes. Também uma obra de sabedoria, mas com um tom muito mais negativo em relação à existência humana. O Eclesiastes reflete muito no vazio existencial e na vacuidade e transitoriedade mesmo dos nossos melhores esforços. Além disso, não parece que Deus exerça juízo de forma muito regular, uma vez que os injustos muitas vezes conseguem oprimir os outros e nada acontece a eles.
“Depois voltei-me, e atentei para todas as opressões que se fazem debaixo do sol; e eis que vi as lágrimas dos que foram oprimidos e dos que não têm consolador, e a força estava do lado dos seus opressores; mas eles não tinham consolador.
Por isso eu louvei os que já morreram, mais do que os que vivem ainda.
E melhor que uns e outros é aquele que ainda não é; que não viu as más obras que se fazem debaixo do sol.” (Eclesiastes 4:1–3)
“Deveras todas estas coisas considerei no meu coração, para declarar tudo isto: que os justos, e os sábios, e as suas obras, estão nas mãos de Deus, e também o homem não conhece nem o amor nem o ódio; tudo passa perante ele.
Tudo sucede igualmente a todos; o mesmo sucede ao justo e ao ímpio, ao bom e ao puro, como ao impuro; assim ao que sacrifica como ao que não sacrifica; assim ao bom como ao pecador; ao que jura como ao que teme o juramento.” (Eclesiastes 9:1,2)
De fato, o livro do Eclesiastes é o livro mais cético de todas as Escrituras, fazendo um questionamento radical às bases nas quais se fundam a sabedoria israelita tradicional (seja dos Provérbios seja da própria Torá). Contudo, esse livro advoga uma sóbria apreciação da nossa própria finitude, e a alegria diante da bênção divina que for nossa porção aqui e agora, devendo por isso vivermos bem uns com os outros.
“Vai, pois, come com alegria o teu pão e bebe com coração contente o teu vinho, pois já Deus se agrada das tuas obras.
Em todo o tempo sejam alvas as tuas roupas, e nunca falte o óleo sobre a tua cabeça.
Goza a vida com a mulher que amas, todos os dias da tua vida vã, os quais Deus te deu debaixo do sol, todos os dias da tua vaidade; porque esta é a tua porção nesta vida, e no teu trabalho, que tu fizeste debaixo do sol.
Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças, porque na sepultura, para onde tu vais, não há obra nem projeto, nem conhecimento, nem sabedoria alguma.” (Eclesiastes 9:7–10)
Voltando ao otimismo, temos o livro de Cânticos, lido em seu sentido direto e plano. Trata-se de um exemplar da antiga poesia erótica/romântica israelita, retratando dois apaixonados ansiando por estarem juntos e se deleitarem fisicamente. Esse livro não cita Deus, enquanto cita a dinastia davídica (pois menciona Salomão). Mas seu foco não é a história de Israel, e sim os amores desse casal de apaixonados, citando o Rei Salomão para fazer uma alusão poética.
Então, o livro tem um caráter bem ‘profano’ e cotidiano. Contudo, exatamente por ser assim que ele consegue exprimir o sentido da sacralidade do profano, vendo o amor erótico como uma das maiores dádivas e bênçãos que a vida proporciona.
“Põe-me como selo sobre o teu coração, como selo sobre o teu braço, porque o amor é forte como a morte, e duro como a sepultura o ciúme; as suas brasas são brasas de fogo, com veementes labaredas.
As muitas águas não podem apagar este amor, nem os rios afogá-lo; ainda que alguém desse todos os bens de sua casa pelo amor, certamente o desprezariam.” (Cânticos 8:6,7)
Em um tom similar, temos o livro de Rute. Esse curioso livro, bem pequeno e até mesmo discreto, na verdade é bem complexo, pois aborda 4 coisas:
- a grande dádiva que é o amor e a amizade, primeiro a de Rute (viúva) e Noemi (sua ex-sogra) e depois de Rute e Boaz (que se torna seu 2º esposo)
- como estrangeiros tornam-se judeus (integrando-se à comunidade judaica e sua Aliança);
- a ancestralidade da dinastia davídica a partir de fora do povo de Israel, pois Rute, bisavó de Davi, era moabita;
- a maneira como a legislação social de Israel era aplicada, com regras agrícolas para proteger os necessitados e instituições como a do “redentor” da terra.
“Por isso disse Noemi: Eis que voltou tua cunhada ao seu povo e aos seus deuses; volta tu também após tua cunhada.
Disse, porém, Rute: Não me instes para que te abandone, e deixe de seguir-te; porque aonde quer que tu fores irei eu, e onde quer que pousares, ali pousarei eu; o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus;
Onde quer que morreres morrerei eu, e ali serei sepultada. Faça-me assim o Senhor, e outro tanto, se outra coisa que não seja a morte me separar de ti.” (Rute 1:15–17)
“Assim tomou Boaz a Rute, e ela lhe foi por mulher; e ele a possuiu, e o Senhor lhe fez conceber, e deu à luz um filho.
Então as mulheres disseram a Noemi: Bendito seja o Senhor, que não deixou hoje de te dar remidor, e seja o seu nome afamado em Israel.
Ele te será por restaurador da alma, e nutrirá a tua velhice, pois tua nora, que te ama, o deu à luz, e ela te é melhor do que sete filhos.” (Rute 4:13–15)
Dessa forma, a redenção discutida por Rute é aquela trazida no cotidiano, por um ser humano em favor de outro, especialmente quando unidos por um vínculo de amor e amizade. Além disso, também vemos a redenção por meio das regras da Torá, que fomentam uma sociedade mais justa. Disso acaba resultando, nesse caso concreto, a descendência que levará até Davi, que será um grande redentor para o povo de Israel por inteiro.
Voltando para um livro de tom pessimista, temos o livro de Lamentações. Esse livro é aquele que mais reflete o sentimento de ter sido abandonado por Deus, de não ver mais nenhum sentido na existência. Seu contexto é a destruição de Jerusalém (e do Templo) e a ruína de Judá, com a invasão do Império Babilônico e toda a violência que este trouxe consigo. Deus está oculto e ausente.
“Com perigo de nossas vidas trazemos o nosso pão, por causa da espada do deserto.
Nossa pele se queimou como um forno, por causa do ardor da fome.
Forçaram as mulheres em Sião, as virgens nas cidades de Judá.
Os príncipes foram enforcados pelas mãos deles; as faces dos velhos não foram reverenciadas.
Aos jovens obrigaram a moer, e os meninos caíram debaixo das cargas de lenha.
Os velhos já não estão mais às portas, os jovens já deixaram a sua música.
Cessou o gozo de nosso coração; converteu-se em lamentação a nossa dança.” (Lamentações 5:9–15)
O autor de Lamentações curiosamente não apela para a ideia de alguma redenção futura (ou alguma figura messiânica) que venha remediar isso. Simplesmente sua poesia dá livre vazão e fluxo para toda a tristeza, desespero, terror e vazio da condição humana em um cenário sociopolítico altamente opressivo e devastador.
“Armou o seu arco, e me pôs como alvo à flecha.
Fez entrar nos meus rins as flechas da sua aljava.
Fui feito um objeto de escárnio para todo o meu povo, e a sua canção todo o dia.
Fartou-me de amarguras, embriagou-me de absinto.
Quebrou com cascalho os meus dentes, abaixou-me na cinza.
E afastaste da paz a minha alma; esqueci-me do bem.
Então disse eu: Já pereceu a minha força, como também a minha esperança no Senhor.” (Lamentações 3:12–18)
O máximo que Lamentações faz é encontrar esperança na desesperança, como que por paradoxo.
“Bom é ter esperança, e aguardar em silêncio a salvação do Senhor.
[…]
Ponha a sua boca no pó; talvez ainda haja esperança.
Dê a sua face ao que o fere; farte-se de afronta.
Pois o Senhor não rejeitará para sempre.” (Lamentações 3:26, 29–31)
Num contraponto a isso temos o livro de Ester, um dos livros mais profanos das Escrituras. Aqui Deus nunca é citado, e os protagonistas são judeus bastante assimilados vivendo na Pérsia (ou seja, descendentes dos antigos exilados trazidos à força para Babilônia, e que não retornaram para Judá depois que o Império Persa assim o permitiu).
Apesar de basicamente Deus nunca ser mencionado e da própria condição judaica de seus protagonistas não ser tão visível, tudo ocorre de forma bastante providencial de tal maneira que Ester consegue redimir os judeus persas de um feroz inimigo que desejava a aniquilação de todos os judeus.
“Então respondeu a rainha Ester, e disse: Se, ó rei, achei graça aos teus olhos, e se bem parecer ao rei, dê-se-me a minha vida como minha petição, e o meu povo como meu desejo.
Porque fomos vendidos, eu e o meu povo, para nos destruírem, matarem, e aniquilarem de vez” (Ester 7:3,4)
A solidariedade comunitária entre esses judeus diaspóricos os tornam unidos, mesmo que não estejam seguindo à risca a Torá. E o povo inteiro é convidado a celebrar essa grande redenção (apesar disso, o nome divino não é citado como responsável por tal redenção).
“E Mardoqueu escreveu estas coisas, e enviou cartas a todos os judeus que se achavam em todas as províncias do rei Assuero, aos de perto, e aos de longe,
Ordenando-lhes que guardassem o dia catorze do mês de Adar, e o dia quinze do mesmo, todos os anos,
Como os dias em que os judeus tiveram repouso dos seus inimigos, e o mês que se lhes mudou de tristeza em alegria, e de luto em dia de festa, para que os fizessem dias de banquetes e de alegria, e de mandarem presentes uns aos outros, e dádivas aos pobres.” (Ester 9:20–22)
Um ponto interessante aqui é que Ester torna-se uma Rainha Persa, o que faz com que ela seja a mais próxima de uma Messias dinástica feminina nas Escrituras, considerando que, por seu posto numa Casa Real (mesmo que estrangeira), a judia Ester consegue trazer redenção ao seu povo, livrando-o da ameaça de extinção sob as mãos de seus opressores.
Para fechar essa análise, temos o caso da obra do Cronista: [1–2]Crônicas e Esdras-Neemias.
O livro de [1–2]Crônicas reconta a história bíblica desde Adão até o exílio babilônico. Na prática, a história contada de Gênesis a Juízes é resumida em genealogias, e a história efetivamente contada (i. e. por meio de acontecimentos) é a da Dinastia Davídica, de um lado, e das linhagens sacerdotais e de levitas, especialmente a linhagem sacerdotal de Sadoque, de outro lado. Nessa maneira de recontar a história israelita, Crônicas apela muito à genealogia minuciosa, tentando detalhar ao máximo os nomes de todos aqueles que ocuparam funções relevantes junto ao Templo.
A preocupação genealógica do Cronista reflete sua condição como judeus retornados do exílio. Seu esforço em recontar a história até o exílio tem por ímpeto dar bases firmes ao vínculo entre os judeus agora retornados do exílio e seus ancestrais judeus de antes do exílio. Isso é especialmente relevante para os cargos ocupados por linhagens familiares: o cargo de rei para a dinastia de Davi e os cargos referentes ao Templo (seja como sacerdote seja como levita) para as linhagens sacerdotais e de levitas.
Já Esdras-Neemias complementa isso dando as crônicas desse retorno dos exilados, para reconstruir Jerusalém e para reconstruir o Templo, e como a Aliança entre Deus e Israel foi renovada por intermédio de sábios estudiosos de Torá, como Esdras, com o objetivo de seguir aquilo que fora recomendado pelos Profetas de outrora e pelos Profetas daquela geração (como Ageu e Zacarias) que seriam os últimos do profetismo israelita clássico. Sutilmente vemos o bastão da liderança profética sendo passada dos profetas propriamente ditos para os escribas e sábios.
Esses casos são intermediários entre o otimismo e pessimismo, porque eles refletem na história do povo até a reconstrução de Jerusalém e do Templo, e veem que, apesar das grandes esperanças, não chegou a extraordinária redenção que se esperava. De fato, o povo foi redimido do exílio babilônio, podendo retornar para sua terra e reconstruir o Templo como fora tão sonhado, contudo, ainda era subordinado a um Império estrangeiro, sendo uma província persa:
“Agora, pois, nosso Deus, o grande, poderoso e terrível Deus, que guardas a aliança e a beneficência, não tenhas em pouca conta toda a aflição que nos alcançou a nós, aos nossos reis, aos nossos príncipes, aos nossos sacerdotes, aos nossos profetas, aos nossos pais e a todo o teu povo, desde os dias dos reis da Assíria até ao dia de hoje.
Porém tu és justo em tudo quanto tem vindo sobre nós; porque tu tens agido fielmente, e nós temos agido impiamente.
E os nossos reis, os nossos príncipes, os nossos sacerdotes, e os nossos pais não guardaram a tua lei, e não deram ouvidos aos teus mandamentos e aos teus testemunhos, que testificaste contra eles.
Porque eles nem no seu reino, nem na muita abundância de bens que lhes deste, nem na terra espaçosa e fértil que puseste diante deles, te serviram, nem se converteram de suas más obras.
Eis que hoje somos servos; e até na terra que deste a nossos pais, para comerem o seu fruto e o seu bem, eis que somos servos nela.
E ela multiplica os seus produtos para os reis, que puseste sobre nós, por causa dos nossos pecados; e conforme a sua vontade dominam sobre os nossos corpos e sobre o nosso gado; e estamos numa grande angústia.” (Neemias 9:32–37)
Nesse misto de otimismo e pessimismo, existe um motivo para que geralmente o livro de Crônicas seja colocado por último na Bíblia Hebraica, mesmo antes de Esdras-Neemias (que seria sua continuação). O motivo é que o livro de Crônicas termina com o retorno do exílio, ao invés de com o exílio (como fora o caso da História Deuteronomista). Assim, o livro de Crônicas deixa a história do que aconteceu depois em aberto:
“Para que se cumprisse a palavra do Senhor, pela boca de Jeremias, até que a terra se agradasse dos seus sábados; todos os dias da assolação repousou, até que os setenta anos se cumpriram.
Porém, no primeiro ano de Ciro, rei da Pérsia (para que se cumprisse a palavra do Senhor pela boca de Jeremias), despertou o Senhor o espírito de Ciro, rei da Pérsia, o qual fez passar pregão por todo o seu reino, como também por escrito, dizendo:
Assim diz Ciro, rei da Pérsia: O Senhor Deus dos céus me deu todos os reinos da terra, e me encarregou de lhe edificar uma casa em Jerusalém, que está em Judá. Quem há entre vós, de todo o seu povo, o Senhor seu Deus seja com ele, e suba.” (2 Crônicas 36:21–23)
O chamado para o retorno do exílio inspira esperança e abertura ao futuro. E a inconclusão desse texto convida a fazer do hoje a continuidade desse estandarte.
Dessa forma, podemos concluir o seguinte a respeito desse quadro geral dos livros ‘não-messiânicos’ dos Ketuvim:
Os otimistas não esperam uma redenção messiânica ou porque no seu contexto de análise isso não é estritamente necessário ou porque sua temática foge totalmente dessa preocupação. Os pessimistas não esperam uma redenção não esperam uma redenção messiânica porque de alguma forma já desesperaram com o exílio, com o sofrimento inocente ou com o vazio existencial e a constante opressão sociopolítica no mundo. Os intermediários parecem frustrados com a redenção não ter advido logo por ocasião do retorno do exílio babilônico e reconstrução do Segundo Templo em Jerusalém, mas deixam sua expectativa em aberto.
Nos próximos posts abordarei o livro de Salmos e o livro de Daniel, que não abordei no presente post (mesmo que façam parte dos Ketuvim). Após examiná-los, mais um post será dedicado aos Ketuvim, focando na releitura do Cântico dos Cânticos à luz do próximo exílio sofrido pelos judeus, nas mãos do Império Romano, que lançará luz sobre a ponte entre a Bíblia Hebraica e a tradição rabínica.
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