[155] Os Escritos falam dos Messias? (Salmos)
Dando continuidade ao propósito de fornecer aos leitores do blog o panorama geral de se e como a esperança messiânica emerge em diferentes partes da Bíblia Hebraica, analisarei aqui o livro de Salmos, como parte da terceira e última parte da Bíblia Hebraica, os Ketuvim/Escritos.
Anteriormente, analisei a Torá ([150]), a primeira parte dos Neviim, com os livros históricos dos Profetas Anteriores ([151]), o caso samaritano que aceita apenas Torá sem Neviim nem Ketuvim ([152]), a segunda parte dos Neviim, com os livros proféticos dos Profetas Literários ([153]) e o quadro geral dos Ketuvim/Escritos, excetuado Salmos e Daniel ([154]).
Antes de adentrar no tópico, é preciso observar que a Ordem Judaica dos livros da Bíblia Hebraica é diferente daquela que se encontra no “Velho” Testamento de uma Bíblia Cristã. Mesmo que no caso cristão protestante, os livros do “Velho” Testamento sejam exatamente os mesmos da Bíblia Judaica, a ordem dos livros é diferente. Isso pode parecer um detalhe menor, mas na verdade essa alteração tem um impacto significativo no entendimento. Por conta disso, aqui será usada a divisão original, i. e. judaica, dos livros da Bíblia Hebraica em 3 coletâneas: 1) Torá; 2) Neviim/Profetas; 3) Ketuvim/Escritos. Revise o post [112] se preciso.
Outro ponto preliminar é que a Bíblia Hebraica NÃO se preocupa com salvação espiritual da alma, e em verdade a própria questão da vida após a morte praticamente NÃO ocorre nela (com a grande exceção do livro mais tardio, o de Daniel, que se refere a uma ressurreição de ‘alguns’ num futuro indeterminado, sem, porém, fornecer nenhuma doutrina sistemática a respeito). Revise os posts [27]-[28] se preciso. Tudo o que esses livros se preocupam é com esta vida aqui e agora. Geralmente essa concepção existencial está no background. O destino de alguém após a morte sequer é cogitado. Nós simplesmente vemos uma sucessão de vidas e gerações. Pessoas indo e vindo numa história comunitária. A grande questão é a persistência da comunidade. O indivíduo morre, mas a comunidade permanece — e assim permanece também o seu legado para a continuação dessa história. Isso é relevante para entender porque a ideia de Messias se desenvolverá.
Indo agora para o livro dos Salmos, trata-se de um livro composto de 150 cânticos (salmos) usados na liturgia do Templo em Jerusalém, do 1º e do 2º. Parte dos Salmos foi escrita no período do 1º Templo, outra parte foi no período do 2º Templo. Não entrarei no mérito se sua estrutura redacional (em 5 livros distintos juntados em um) já fosse pré-exílica (i. e. 1º Templo) tendo acréscimos de salmos individuais pós-exilicamente (i. e. 2º Templo) ou se essa estrutura ela mesma é pós-exílica.
Dessa forma, o livro de Salmos é o HINÁRIO do Templo de Jerusalém. Dada essa identificação tão firme com o Templo em Sião, não é à toa que estamos do livro mais davídico de todas as Escrituras.
Entre todos os livros da Bíblia Hebraica, o livro de Salmos é o que de longe aceita de forma mais incondicional e enfática as tradições relativas à aliança de Deus com Davi e a eleição de Sião para ser a localização do Templo Sagrado. Muitos dos salmos são inclusive atribuídos ao Rei Davi, conectando tal livro ainda mais firmemente à dinastia davídica e ao patrocínio dessa em favor do Templo em Jerusalém.
Por conta disso, sim, esse livro de fato têm elementos no mínimo protomessiânicos, pois vários salmos destacam a atuação divina em favor de seu Ungido, seu Messias, como uma figura dinástica descendente de Davi, de uma maneira que irá alimentar a imaginação messiânica tanto quanto parte dos livros dos Profetas Literários o fizeram.
Contudo, é importante ressaltar que 1) nem todos os salmos falam de uma figura dinástica, muitos deles refletem sobre situações muito mais cotidianas envolvendo qualquer judeu ou mesmo um não-judeu justo entre as nações; 2) quando os salmos que falam de “Ungido” ou “Messias” usam tais termos, eles estão usando os termos como basicamente toda a Bíblia Hebraica o faz, isto é, como designando alguém que foi ungido com óleo para um cargo dinástico ou sacerdotal e mais raramente profético (no caso dos salmos, dinástico principalmente).
Portanto, quando encontramos nos Salmos falando de Deus e seu Ungido, o Ungido em questão pode potencialmente ser QUALQUER Rei descendente de Davi descrito nos livros de Samuel, Reis ou Crônicas. Pode também ser um descendente de Davi que veio depois ou que ainda não veio? Sim, mas a questão é que não podemos presumir que todas as referências ao Ungido digam respeito a uma só pessoa. No mínimo, temos referências a Davi, Salomão, e provavelmente Josias ou um de seus sucessores.
Mas é bem plausível que essa terminologia genérica de Ungido servisse justamente para não exigir a identificação com um Rei em específico. Assim, seria possível utilizar os mesmos cânticos reais independente de quem estivesse assentado no trono em Jerusalém naquela ocasião específica.
Também existe a possibilidade que originalmente alguns Salmos (antes de serem inseridos na estrutura redacional completa) nem sequer concebessem o Ungido como sendo descendente de Davi do Reino de Judá ao Sul, mas admitindo Ungidos do Reino de Israel ao Norte (veja post [151]), contudo, isso é mais controverso.
Um exemplo bom de Salmo dessa natureza é o Salmo 2:
“Por que se amotinam os gentios, e os povos imaginam coisas vãs?
Os reis da terra se levantam e os governos consultam juntamente contra o Senhor e contra o seu ungido, dizendo:
Rompamos as suas ataduras, e sacudamos de nós as suas cordas.
Aquele que habita nos céus se rirá; o Senhor zombará deles.
Então lhes falará na sua ira, e no seu furor os turbará.
Eu, porém, ungi o meu Rei sobre o meu santo monte de Sião.
Proclamarei o decreto: o Senhor me disse: meu filho, hoje te gerei.
Pede-me, e eu te darei os gentios por herança, e os fins da terra por tua possessão.
Tu os esmigalharás com uma vara de ferro; tu os despedaçarás como a um vaso de oleiro.” (Salmos 2:1-9)
Uma rebelião de nações (provavelmente aqui se referindo às vizinhas Edom, Moab e Amon, que teriam se tornado tributárias de Israel sob Davi e Salomão, depois de tanto tempo oprimindo Israel quando não havia monarquia israelita) está para acontecer, mas Deus, que HABITA no Monte Sião (i. e. no Templo), já capacitou o Rei judeu a vencer qualquer rebelião.
A intimidade entre Deus e o Rei judeu é tão grande assim justamente porque ambos moram na mesma cidade, Jerusalém. Essa cidade tem dois Palácios: o de Deus (o Templo) e o da dinastia davídica (o Palácio Real propriamente dito). Sendo que Davi muitas vezes canta sobre “morar” na Casa de Deus, firmando o modelo que todos os seus descendentes deveriam seguir.
Um salmo real mais singular é o 45, uma antiga canção em homenagem ao casamento entre um Rei e sua Consorte Real (Rainha).
“Amas a justiça e odeias a iniqüidade; por isso Deus, o teu Deus, escolheu-te dentre os teus companheiros ungindo-te com óleo de alegria.
Todas as tuas vestes exalam aroma de mirra, aloés e cássia; nos palácios adornados de marfim ressoam os instrumentos de corda que te alegram.
Filhas de reis estão entre as mulheres da tua corte; à tua direita está a noiva real enfeitada de ouro puro de Ofir.
Ouça, ó filha, considere e incline os seus ouvidos: Esqueça o seu povo e a casa paterna.
O rei foi cativado pela sua beleza; honre-o, pois ele é o seu senhor.
A cidade de Tiro trará seus presentes; seus moradores mais ricos buscarão o seu favor.
Cheia de esplendor está a princesa em seus aposentos, com vestes enfeitadas de ouro.
Em roupas bordadas é conduzida ao rei, acompanhada de um cortejo de virgens; são levadas à tua presença.
Com alegria e exultação são conduzidas ao palácio do rei.
Os teus filhos ocuparão o trono dos teus pais; por toda a terra os farás príncipes.
Perpetuarei a tua lembrança por todas as gerações; por isso as nações te louvarão para todo o sempre.” (Salmos 45:7–17)
Outro salmo também muito único é o 89, que fala de um Ungido derrotado:
“Uma vez jurei pela minha santidade que não mentirei a Davi.
A sua semente durará para sempre, e o seu trono, como o sol diante de mim.
Será estabelecido para sempre como a lua e como uma testemunha fiel no céu. (Selá.)
Mas tu rejeitaste e aborreceste; tu te indignaste contra o teu ungido.
Abominaste a aliança do teu servo; profanaste a sua coroa, lançando-a por terra.
Derrubaste todos os seus muros; arruinaste as suas fortificações.
Todos os que passam pelo caminho o despojam; é um opróbrio para os seus vizinhos.
Exaltaste a destra dos seus adversários; fizeste com que todos os seus inimigos se regozijassem.
Também embotaste o fio da sua espada, e não o sustentaste na peleja.
Fizeste cessar a sua glória, e deitaste por terra o seu trono.
Abreviaste os dias da sua mocidade; cobriste-o de vergonha. (Selá.)
Até quando, Senhor? Acaso te esconderás para sempre? Arderá a tua ira como fogo?
Lembra-te de quão breves são os meus dias; por que criarias debalde todos os filhos dos homens?
Que homem há, que viva, e não veja a morte? Livrará ele a sua alma do poder da sepultura? (Selá.)
Senhor, onde estão as tuas antigas benignidades que juraste a Davi pela tua verdade?
Lembra-te, Senhor, do opróbrio dos teus servos; como eu trago no meu peito o opróbrio de todos os povos poderosos,
Com o qual, Senhor, os teus inimigos têm difamado, com o qual têm difamado as pisadas do teu ungido.” (Salmos 89:35–51)
Esse salmo é muito interessante por refletir na experiência de Israel quando a dinastia de Davi estava no fim de seu reinado sobre Jerusalém, pouco antes do exílio babilônico. É possível que aqui esse ‘Messias’ derrotado seja o Rei Josias ou um de seus filhos que lhe sucedeu (Rashi considera que se trata do Rei Zedequias, o último a governar em Jerusalém).
Lembre do post [151]: se há um ‘Rei Prometido’ no livro dos [1–2]Reis, tal rei é Josias e o escritor Deuteronomista (o redator do livro dos Reis) elogia fortemente Josias como o Rei que mais inteiramente converteu seu coração a Deus e à Aliança da Torá. Contudo, já era tarde demais para Judá e Sião (e para o Templo!), e o próprio Josias acaba morto em batalha nas mãos do Faraó Neco. O Ungido, o Messias, foi morto pelos opressores de Israel!
Pouco tempo depois Babilônia domina Jerusalém e mais alguns anos após destrói Jerusalém. O Rei Zedequias, o último que subiu ao trono, teve um terrível destino:
“Então a cidade foi invadida, e todos os homens de guerra fugiram de noite pelo caminho da porta, entre os dois muros que estavam junto ao jardim do rei (porque os caldeus estavam contra a cidade em redor), e o rei se foi pelo caminho da campina.
Porém o exército dos caldeus perseguiu o rei, e o alcançou nas campinas de Jericó; e todo o seu exército se dispersou.
E tomaram o rei, e o fizeram subir ao rei de babilônia, a Ribla; e foi-lhe pronunciada a sentença.
E aos filhos de Zedequias mataram diante dos seus olhos; e vazaram os olhos de Zedequias, e o ataram com duas cadeias de bronze, e o levaram a babilônia.” (2 Reis 25:4–7)
E no ano seguinte o Templo é destruído e saqueado:
“E queimou a casa do Senhor e a casa do rei, como também todas as casas de Jerusalém, e todas as casas dos grandes queimou.
E todo o exército dos caldeus, que estava com o capitão da guarda, derrubou os muros em redor de Jerusalém.
E o mais do povo que deixaram ficar na cidade, os rebeldes que se renderam ao rei de babilônia e o mais da multidão, Nebuzaradã, o capitão da guarda, levou presos.
Porém dos mais pobres da terra deixou o capitão da guarda ficar alguns para vinheiros e para lavradores.
Quebraram mais, os caldeus, as colunas de cobre que estavam na casa do SENHOR, como também as bases e o mar de cobre que estavam na casa do SENHOR; e levaram o seu bronze para babilônia.
Também tomaram as caldeiras, as pás, os apagadores, as colheres e todos os vasos de cobre, com que se ministrava.
Também o capitão-da-guarda tomou os braseiros, e as bacias, o que era de ouro puro, em ouro e o que era de prata, em prata.
As duas colunas, um mar, e as bases, que Salomão fizera para a casa do Senhor; o cobre de todos estes vasos não tinha peso.” (2 Reis 25:9–16)
Então, o Salmo 89 reflete nesse triste fim da dinastia de Davi em Jerusalém. Apesar disso, tem esperança de que a dinastia seja, por fim, restabelecida em seu Trono de Direito. Parece que Deus quebrou sua aliança com Davi, mas os descendentes de Davi continuaram existindo depois disso (já falamos p. ex. de Zorobabel quando do retorno do exílio babilônico; além disso, cabe destacar que até o século 8º da Era comum, ou seja, há 1.800 anos atrás, ainda existia a figura do Exilarca, uma dinastia davídica claramente identificável vivendo fora da terra de Israel). Daí a esperança que um dia um desses descendentes seja novamente líder do povo judeu em Sião.
Para finalizar, cabe destacar a hipótese da leitura escatológica dos Salmos. Essa proposta foi famosamente defendida por David Mitchell, em “The Message of the Psalter: An Eschatological Programme in the Book of Psalms” (1997) e desde então tornou-se mais popular entre parte dos acadêmicos, mas não se trata de um consenso.
Não poderei discutir em detalhes a proposta dele aqui (no futuro farei post a respeito), mas a ideia básica é que a estrutura redacional do livro dos Salmos (com seus 5 livros compilados em um) refletiria uma escatologia messiânica, com uma progressão narrativa subjacente, conforme vamos do salmo 1 ao 150: o Messias primeiro é ungido e parece bem estabelecido, contudo, acaba sendo morto (o que corresponderia ao Salmo 89 examinado acima), e um exílio se segue, o qual acaba com o retorno do Messias e uma era de paz e justiça se segue.
Ressalvando que Mitchell pelo menos discute a visão judaico-rabínica a respeito da diferença entre o Messias filho de José e o Messias filho de Davi (onde tradicionalmente entendeu-se que o Messias filho de José seria morto, enquanto o Messias filho de Davi não o seria), meu maior problema com essa interpretação é que se dê a entender que esse ‘Messias’ fosse uma única figura. Me parece que Mitchell nesse ponto é enviesado por uma visão cristã a respeito do Messias, a qual, como expliquei no post [149], tem a característica de centralizar todos os papéis messiânicos em uma só pessoa.
Contudo, o modelo judaico tradicional a respeito do Messias é plural, admitindo diferentes figuras messiânicas, e inclusive o fato de que existem aspirantes messiânicos de cada geração que às vezes são entendidos como Messias num sentido especial (como Isaías faz com Ezequias, Ageu e Zacarias fazem com Zorobabel e com o sumo-sacerdote Josué, o Deuteronomista faz com Josias).
Então, mesmo que haja mérito na progressão narrativa assim concebida para os Salmos (algo que podemos discutir), é muito duvidoso que se trate de uma figura única. Inclusive isso nos leva a pensar se tal proposta escatológica não acaba perdendo a mão ao tentar se impor sobre todos os salmos reais.
Poderíamos argumentar que a proposta de Mitchell faz sentido quando se fala dos salmos que sucedem aqueles com temas exílicos (depois do salmo 107), contudo, antes disso, o redator hipotético poderia ter em mente simplesmente o estabelecimento triunfante da dinastia davídica com Davi e Salomão cujo Reino, entretanto, foi destruído após a morte de Josias, com a derrocada de todos os sucessores de Josias. Aí vem o exílio e o retorno do exílio, quando o Templo é reconstruído e esse Livro de Salmos torna-se seu hinário. Nesse contexto faria muito sentido que a primeira metade dos Salmos fosse histórica, enquanto a segunda metade refletisse a esperança futura: já voltamos a morar na terra depois daquele exílio, já temos Templo de novo, só falta vir nosso Rei Davídico, dando início novamente à dinastia davídica para dessa vez nunca mais acabar (com herdeiros e sucessores em todas as gerações futuras).
Em todo caso, seja qual hipótese acadêmica adotarmos para a estrutura redacional subjacente do livro dos Salmos (muitos inclusive recusam que exista alguma progressão narrativa subjacente), o fato é que tal livro muniu o imaginário messiânico posterior, por conta dos salmos que refletem a experiência da dinastia davídica em Jerusalém, depositando esperança no seu triunfo sobre todos os seus inimigos.
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