[137] O anjo Gabriel DESOBEDECEU a Deus para salvar o povo judeu
Neste blog já falei algumas vezes sobre como os grandes nomes da Bíblia Hebraica eram conhecidos por questionar Deus em favor de outros seres humanos, especialmente o próprio povo judeu. (Por exemplo, nos posts [6]-[128])
A tradição judaica encontra essa virtude não somente em seres humanos, mas em seres místicos/mitológicos que realizariam a função de anjo para Deus (para esclarecimentos sobre a categoria de anjo, veja posts [130]-[131]).
Em Yoma 77b no Talmude, encontramos o anjo Gabriel diretamente desobedecendo a Deus para salvar o povo judeu da destruição. Vamos analisar esse trecho. Desde já alerto ao leitor que tal trecho a respeito do anjo Gabriel é todo cheio de metáfora e alusão, como nos alerta o rabino Adin Steinsaltz em nota à edição Koren do Talmude Babilônico do tratado de Yoma. Os sábios aqui discutem um entrecruzamento entre os livros de Ezequiel e de Daniel, que são os livros mais místicos da Bíblia Hebraica.
No livro de Daniel, seu protagonista Daniel estava exilado na Babilônia (viveu na época da destruição do Primeiro Templo e do exílio babilônico, sendo que no trecho que iremos examinar a Pérsia já dominara Babilônia). Ele estava muito angustiado para entender qual seria o destino do povo judeu, o qual estaria velado numa mensagem a ele dita pelo anjo Gabriel (Daniel 9), e por isso passou 3 semanas de intensa meditação, com jejum e reza. Com isso o anjo Gabriel retornou até ele:
“E no dia vinte e quatro do primeiro mês eu estava à borda do grande rio Hidequel;
E levantei os meus olhos, e olhei, e eis um homem vestido de linho, e os seus lombos cingidos com ouro fino de Ufaz;
E o seu corpo era como berilo, e o seu rosto parecia um relâmpago, e os seus olhos como tochas de fogo, e os seus braços e os seus pés brilhavam como bronze polido; e a voz das suas palavras era como a voz de uma multidão.” (Daniel 10:4–6)
Os rabinos ficaram intrigados com o seguinte versículo, representando uma fala do anjo Gabriel:
“Então me disse: Não temas, Daniel, porque desde o primeiro dia em que aplicaste o teu coração a compreender e a humilhar-te perante o teu Deus, são ouvidas as tuas palavras; e eu vim por causa das tuas palavras.” (Daniel 10:12)
A dúvida é: por que o anjo Gabriel dá a entender que ele só pôde vir por conta de Daniel?
Para tentar explicar isso, os rabinos recorrem ao livro de Ezequiel. Em Ezequiel 8, que cronologicamente ocorre antes da destruição do Templo, o profeta Ezequiel (o qual também fora exilado para Babilônia) é levado em visão para um passeio ao Templo em Jerusalém. Nessa visão ele se depara com cenas chocantes de profanação e idolatria, tanto escondida quanto pública, numa progressão crescente, ocorrendo dentro do próprio Templo Sagrado, onde a Santíssima Presença Divina habitara até então!
A última das profanações mostrada por Ezequiel é a que está no trecho abaixo:
“E disse-me: Vês isto, filho do homem? Ainda tornarás a ver abominações maiores do que estas.
E levou-me para o átrio interior da casa do Senhor, e eis que estavam à entrada do templo do Senhor, entre o pórtico e o altar, cerca de vinte e cinco homens, de costas para o templo do Senhor, e com os rostos para o oriente; e eles, virados para o oriente adoravam o sol.” (Ezequiel 8:15,16)
Aqui os rabinos entendem que havia uma camada a mais de profanação. Dado o posicionamento geográfico do Templo, afirmar que os rostos desses homens estavam voltados para o “leste” já implicava estarem de costas para o Templo, então afirmar também que “eles estavam de costas para o Templo” seria redundante. Por conta disso, os rabinos entendem que aqui há um eufemismo para algo muito pior: esses homens estavam defecando no Templo, na direção da Presença Divina.
Com isso, continuam os sábios, houve uma conversa entre Deus e o anjo Miguel (anjo protetor do povo judeu). Deus afirmou para Miguel: sua nação pecou. Miguel respondeu: salve as pessoas boas entre eles da destruição. Mas Deus retorquiu: eu os destruirei a todos.
Aparentemente, como as pessoas boas não impediram nem repreenderam as más, de maneira que as coisas chegaram a esse ponto gravíssimo, todos seriam responsabilizados.
Voltando então ao relato em Ezequiel, Deus avisa Ezequiel da destruição que virá:
“Então me disse: Vês isto, filho do homem? Há porventura coisa mais leviana para a casa de Judá, do que tais abominações, que fazem aqui? Havendo enchido a terra de violência, tornam a irritar-me; e ei-los a chegar o ramo ao seu nariz.
Por isso também eu os tratarei com furor; o meu olho não poupará, nem terei piedade; ainda que me gritem aos ouvidos com grande voz, contudo não os ouvirei.” (Ezequiel 8:17,18)
Após isso Ezequiel presencia a conversa entre Deus e um “homem vestido de linho” (o qual no livro de Daniel é chamado de Gabriel, como já vimos acima):
“Depois olhei, e eis que no firmamento, que estava por cima da cabeça dos querubins, apareceu sobre eles uma como pedra de safira, semelhante a forma de um trono.
E falou ao homem vestido de linho, dizendo: Vai por entre as rodas, até debaixo do querubim, e enche as tuas mãos de brasas acesas dentre os querubins e espalha-as sobre a cidade.” (Ezequiel 10:1,2)
Ao que Gabriel rapidamente obedece:
“Sucedeu, pois, que, dando ele ordem ao homem vestido de linho, dizendo: Toma fogo dentre as rodas, dentre os querubins, entrou ele, e parou junto às rodas.
Então estendeu um querubim a sua mão dentre os querubins para o fogo que estava entre os querubins; e tomou dele, e o pôs nas mãos do que estava vestido de linho; o qual o tomou, e saiu.
E apareceu nos querubins uma semelhança de mão de homem debaixo das suas asas.” (Ezequiel 10:6–8)
Ou não obedeceu?
Quando lemos essa passagem, parece mais do que claro que o anjo Gabriel obedeceu a ordem divina, pegando o fogo do Querubim (sobre querubins, veja post [121]).
Contudo, os olhos treinados dos sábios talmúdicos perceberam uma discrepância: Deus comanda a Gabriel que ele mesmo pegue as brasas que estavam por debaixo dos querubins. Contudo, na hora da execução, Gabriel esperou que o querubim pegasse o fogo e o repassasse, de tal maneira que o fogo passou por duas mãos (a do Querubim e a do anjo Gabriel).
Assim, Rav Hana bar Bizna disse que Rabbi Shimon Hasida disse, o fogo “esfriou” por ter passado por duas mãos. Se o anjo Gabriel tivesse segurado o fogo sozinho, nem um remanescente nem refugiado do povo judeu teria sobrevivido. Então, o ‘esfriamento’ foi estratégico: com isso o povo judeu foi poupado de uma destruição total. O anjo Gabriel DESOBEDECEU a Deus para salvar o povo judeu.
Aqui o rabino Adin Steinsaltz em nota à edição Koren do Talmude Babilônico do tratado de Yoma comenta que Gabriel é o anjo encarregado da força e da justiça, sendo referido como o anjo do fogo em Pesachim 118a. Contudo, a justiça por ele dispensada não é simplesmente voltada a punir o povo, sendo uma justiça antes de tudo equilibrada. Por isso, o anjo Gabriel faz de tudo para que os judeus sejam julgados favoravelmente, mesmo em face de acusações válidas.
A discussão no Talmude prossegue, analisando agora esse trecho:
“Eis que o homem que estava vestido de linho, a cuja cintura estava o tinteiro, tornou com a resposta, dizendo: Fiz como me mandaste.” (Ezequiel 9:11)
Ora, temos um problema aqui. Se os rabinos estão certos em dizer que o anjo Gabriel desobedeceu a Deus, como pode agora ele afirmar que fez exatamente como Deus mandara?
Nesse momento, segundo rabbi Yohanan, o anjo Gabriel foi expulso do local elevado onde residia, levando sessenta socos de fogo de outros anjos no processo de sua remoção. Esses anjos lhe disseram: se você não fez isso, você não fez; e se você fez, por que não o fez como foi determinado? E se você fez, por acaso esqueceu que não se dá notícia de destruição?
Vamos examinar com calma a agadá da punição de Gabriel trazida aqui no Talmude. Por que Gabriel foi punido? Me parece que o motivo não foi por ele ter desobedecido a ordem em si, com isso salvando o povo judeu. O motivo foi ele ter falado que de fato realizou a destruição, quando 1) ele não o fez (ou seja, mentiu); 2) mesmo se tivesse feito, não deve se dar notícia de destruição, mas apenas sugerir que ela aconteceu (por se tratar de uma coisa ruim).
Em todo caso, poderíamos dizer que o anjo Gabriel ficou satisfeito mesmo tendo de arcar com consequências negativas. Um preço pago solitariamente em prol da salvação do inteiro povo escolhido.
Referida punição, na forma de uma suspensão temporária, estaria aludida naquela fala do anjo Gabriel a Daniel, prosseguindo depois de dizer que tinha podido vir graças à Daniel:
“Mas o príncipe do reino da Pérsia me resistiu vinte e um dias, e eis que Miguel, um dos primeiros príncipes, veio para ajudar-me, e eu fiquei ali com os reis da Pérsia.” (Daniel 10:13)
O Talmude interpreta isso no sentido de que, com a falta cometida por Gabriel, o anjo Dubiel, que era o anjo ministrador da Pérsia, ocupou o lugar de Gabriel por 21 dias (3 semanas, ou 3 x 7 dias). Os 21 dias em que Dubiel teve essa colocação lhe renderam 21 reis e um porto marítimo, o de Mashhig, provavelmente uma ilha no Golfo Pérsico. Isto é, a Pérsia conseguiu tais vantagens.
Aqui vemos a ideia dos rabinos de que acontecimentos na esfera celestial/transcendente repercutem ou espelham acontecimentos na esfera terrestre/imanente. Outro ponto interessante reside na maneira como o tempo é contado aqui: o acontecimento em Ezequiel 8–10 acontece em 587–586 AEC, enquanto a conquista da Babilônia pela Pérsia só ocorre em 539 AEC, quase 50 anos depois, depois do qual ocorre os encontros entre Daniel e o anjo Gabriel. Mas é dito que após a suspensão de Gabriel o anjo ministrador da Pérsia ocupou um lugar de destaque por 21 dias o que significou 21 reis persas. Os mesmos 21 dias que Daniel estava jejuando e rezando ardentemente, após 50 anos dos eventos de Ezequiel 8–10. Então o tempo de alguma forma transita diferente entre esses domínios.
Voltando ao anjo ministrador da Pérsia, este ainda quis acrescentar mais uma coisa às vantagens da Pérsia: pediu que os anjos escrevessem para ele que os judeus deveriam pagar impostos aos persas, incluindo os Sábios. Os anjos escreveram isso numa carta, mas antes que pudessem assiná-la Gabriel interferiu dizendo:
“Inútil vos será levantar de madrugada, repousar tarde, comer o pão de dores, pois assim dá ele aos seus amados o sono.” (Salmos 127:2)
Rav Yitzak via no trecho referente ao sono uma referência às esposas dos estudiosos da Torá, pois elas têm seu sono prejudicado (pelo zelo em aguardarem seus maridos) que levantam cedo para estudar e voltam muito tarde da casa de estudos) e com isso merecem o Mundo Vindouro.
O anjo Gabriel estava tentando chamar aqueles anjos à razão, em como seria injusta referida tributação com pessoas que deveriam, ao invés, serem recompensadas. O anjo Dubiel (da Pérsia) certamente estava exagerando! Mas os anjos não o ouviram.
Com isso Gabriel apelou ao próprio Deus, mencionando o nome de Daniel, por fazer uma pergunta no sentido de que, se todos os sábios das outras nações fossem colocados de um lado, e Daniel o amado (referência ao Salmo já citado) do outro, Daniel ainda assim os sobrepujaria (em sabedoria). Isso levou Deus a perguntar aos anjos quem ensina a virtude aos filhos de Deus, aos que os anjos tiveram de responder que tal pessoa era o anjo Gabriel. Com isso Deus permitiu que o anjo Gabriel novamente acessasse o lugar do qual fora removido.
Ficando face a face com o anjo Dubiel (da Pérsia), este segurando a carta autorizando os impostos, Gabriel tentou pegá-la, mas Dubiel a engoliu. Aqui as tradições orais a respeito disso divergem: alguns acham que a carta foi escrita, mas não assinada, enquanto outros acham que a carta foi assinada, mas a assinatura foi rasurada quando a carta foi engolida. Em todo caso, isso significa que, no Império Persa, alguns pagavam impostos, enquanto outros não o pagavam.
Então, seria esse o motivo para Gabriel ter levado 3 semanas de meditação intensa por parte de Daniel para visitar a este novamente: estava ocupado com o anjo da Pérsia, para reduzir a carga tributária que o povo judeu teria de carregar durante o domínio persa!
Contudo, como eu havia afirmado no post [134], o livro de Daniel é bem carregado da angústia de Daniel de que o povo judeu ainda sofreria séculos a milênios de dominação por grandes impérios estrangeiros. O Talmude finaliza essa discussão fazendo jus a esse sentimento. Na continuidade do discurso de Gabriel para Daniel, Gabriel alude a algo que aconteceu a seguir:
“E ele disse: Sabes por que eu vim a ti? Agora, pois, tornarei a pelejar contra o príncipe dos persas; e, saindo eu, eis que virá o príncipe da Grécia.” (Daniel 10:20)
O anjo da Grécia virá e a Grécia terá o destaque no palco mundial, dominando também os judeus. No domínio angelical, Gabriel berrou e berrou (que os reis da Grécia não deveriam governar sobre os judeus). Mas, finaliza aqui a discussão o Talmude, ninguém o ouviu.
Esse encerramento lúgubre faz jus à luz da história, uma vez que será sob o domínio grego-helenista (mais especificamente, síriaca, após a divisão do Império Grego) que Antíoco Epifânio introduzirá uma ‘abominação’ no (Segundo) Templo, a saber, uma estátua de Zeus, e sacrificará porcos no altar.
Então, a profanação do santuário — que fora a causa da peleja de Gabriel em prol do povo judeu, apesar deste ter realizado a profanação — iria se repetir, dessa vez pelas mãos de um arrogante reino estrangeiro oprimindo os judeus e tentando abolir a Torá… Mas Antíoco não obteve sucesso, e sua derrota é celebrada numa das festas judaicas, Chanuká, para alegria do anjo Gabriel.
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