[121] Querubins no Éden
No post anterior expliquei o significado da Árvore da Vida e de seu acesso ter sido barrado ao ser humano. Contudo, não abordei sobre como esse acesso foi barrado em termos da narrativa do Jardim do Éden. O trecho em questão afirma:
“Depois de expulsar o homem, colocou a leste do jardim do Éden querubins e uma espada flamejante que se movia, guardando o caminho para a árvore da vida.” (Gênesis 3:24)
Deus colocou “querubins” na rota da Árvore da Vida para manter os humanos longe. Até esse momento na narrativa do Gênesis, nunca tínhamos visto nenhum ser “místico” ou “celestial”, pois em Gênesis 1 e 2 é relatada apenas a criação de seres terrestres, marítimos e “aéreos” (aves). No máximo algumas criaturas de cunho criptozoológico (talvez o Leviatã implicitamente na categoria de “grande animal marítimo” de Gênesis 1:21, veja Rashi para esse verso), mas nada transcendental!
Agora repentinamente a narrativa nos informa da existência de “querubins”, o mesmo tipo de ser que mais tarde estarão representados na Arca da Aliança, como se curvando perante um “espaço vazio”, espaço vazio este que alude ao Criador de tudo (completamente irrepresentável). Assim, os querubins estariam representados nessa representação do Trono Divino, a arca dentro da câmera mais secreta do Santuário (na qual apenas o Sumo-Sacerdote poderia entrar 1 vez por ano, no Yom Kipur — o Dia da Expiação).
Em toda a Torá (5 primeiros livros bíblicos) a única referência direta aos querubins estão nessa narrativa do Jardim do Éden. As outras referências são essas indiretas de que haviam querubins representados em cima do tampo da Arca da Aliança. O máximo que poderíamos concluir dessas referências esparsas é que 1) os querubins seriam figuras passíveis de causar medo no ser humano; 2) os querubins estão ligados ao símbolo de um “Trono Divino”.
Mas o que seriam os querubins? Como bem destacam Bekhor Hor e Ibn Ezra ao comentarem sobre os querubins da Árvore da Vida, a figura dos querubins é referida e mesmo descrita pelo Profeta Ezequiel, numa imageria absolutamente psicodélica e surrealista:
“Olhei, e eis que um vento tempestuoso vinha do norte, uma grande nuvem, com um fogo revolvendo-se nela, e um resplendor ao redor, e no meio dela havia uma coisa, como de cor de âmbar, que saía do meio do fogo.
E do meio dela saía a semelhança de quatro seres viventes. E esta era a sua aparência: tinham a semelhança de homem.
E cada um tinha quatro rostos, como também cada um deles quatro asas.
E os seus pés eram pés direitos; e as plantas dos seus pés como a planta do pé de uma bezerra, e luziam como a cor de cobre polido.
E tinham mãos de homem debaixo das suas asas, aos quatro lados; e assim todos quatro tinham seus rostos e suas asas.
Uniam-se as suas asas uma à outra; não se viravam quando andavam, e cada qual andava continuamente em frente.
E a semelhança dos seus rostos era como o rosto de homem; e do lado direito todos os quatro tinham rosto de leão, e do lado esquerdo todos os quatro tinham rosto de boi; e também tinham rosto de águia todos os quatro.
Assim eram os seus rostos. As suas asas estavam estendidas por cima; cada qual tinha duas asas juntas uma a outra, e duas cobriam os corpos deles.
E cada qual andava para adiante de si; para onde o espírito havia de ir, iam; não se viravam quando andavam.
E, quanto à semelhança dos seres viventes, o seu aspecto era como ardentes brasas de fogo, com uma aparência de lâmpadas; o fogo subia e descia por entre os seres viventes, e o fogo resplandecia, e do fogo saíam relâmpagos;
E os seres viventes corriam, e voltavam, à semelhança de um clarão de relâmpago.” (Ezequiel 1:4–14)
É algo como você ver isso se mexendo como vivo na sua frente:
Mas acrescentando ainda toques ao mesmo tempo bovinos, humanos, felinos e de aves de rapina, e ainda incandescentes e eletrificados!
Os querubins reaparecem em Ezequiel 10. Tanto no capítulo 1 quanto no 10 de Ezequiel estamos diante da visão da própria Carruagem do Trono Divino. E o misticismo em torno dessa Carruagem (a Merkavah), que aparece aqui e ali no próprio Talmude, é o ancestral da Kaballah (a qual já constrói a partir de toda a Torá Escrita e Oral — Bíblia Hebraica, Talmude e Midrash).
A maneira como o profeta Ezequiel fala dos querubins “vistos” por ele em um estado alterado de consciência é num sentido capaz de causar medo em mentes menos preparadas — algo mesmo paralelo ao terror cósmico de Lovecraft.
Aqui a “visão” não é a visão “física”, isto é, a luz que reflete sobre um objeto físico e chega ao olho. Ao contrário, trata-se de uma imagem mental vista com os “olhos da mente”, tal como quando você fecha os olhos e tenta imaginar algo. No caso, uma imagem mental que beira as fronteiras da sanidade, como também ocorre com meditatores experientes e com quaisquer pessoas sob estados alterados de consciência. Aryek Kaplan aborda bem em seus livros como os profetas judaicos antigos usavam técnicas meditativas para alcançar tais visões transcendentais — um objetivo que a Kaballah Profética (por exemplo, de Abulafia) intenciona reproduzir.
Esse é um motivo para eu ilustrar muitos dos posts do blog com pinturas de arte moderna, seja abstrata, surrealista, geométrica, impressionista etc. impressionistas, expressionistas etc. A meu ver, se realmente víssemos algo transcendental, seria algo no sentido dessas pinturas o que veríamos, como expliquei no post [51]. Os querubins de Ezequiel estão ao nível do surreal!
Um ponto interessante é que os querubins são retratados como seres com elementos tanto humanos como animais. O que representa uma forma de ser muito diferente da humana, mas que dialoga com o fato da narrativa do Jardim do Éden retratar uma menor separação entre o humano e animal (como bem exemplificado pelos comentários de Rashi e de Ramban, que pressupõe que a separação entre humano e animal na narrativa do Éden foi alcançada apenas de forma gradativa, como abordei no post [119]). Em seguida à expulsão do Jardim no qual humanos e animais não eram claramente separados ainda, aparecem os querubins com seu misto animal e humano para impedir o acesso à Árvore da Vida…
Radak pensa que tais seres absolutamente místicos foram colocados na entrada do Jardim do Éden para inspirar o ser humano ao arrependimento. Uma vez que Adão se arrependeu, o querubim e a espada flamejante desapareceram, e ele pôde retornar ao Jardim de tempos em tempos. Como que para matar a saudade!
Então por essa posição de Radak nem mesmo a expulsão do Jardim foi algo absoluto. De fato outro comentarista pensa que a palavra “expulsão” seria inadequada aqui, sendo mais equiparável a um “envio” para fora do jardim (Abravanel). Mas cabe destacar que outros entenderam isso como uma expulsão e como permanente (Ibn Ezra; Sforno), o sentido mais comum.
Podemos fazer um paralelo entre a posição de Radak e a a visão de Ezequiel. O medo inicial despertado por uma visão à primeira vista aterrorizante dá lugar a uma ligação ainda mais forte entre o profeta e Deus, reinterpretando a visão como uma amorosa dádiva divina. Assim também quando Adão conheceu o perdão divino, o querubim não mais era a ameaça que antes parecia.
Essa dialética entre o medo/receio e o amor levada aos últimos limites ocorre em outros momentos da Torá, mesmo que não se mencionem diretamente os querubins.
Na narrativa em que Deus falou com o povo judeu no Monte Sinai, Ele proferiu os Dez Mandamentos em “viva voz” (segundo o Midrash, primeiro todos os mandamentos ao mesmo tempo e em seguida cada um em sequência), com o povo judeu inteiro “ouvindo” sob um estado alterado de consciência a Voz Divina! E tal voz foi muito difícil de suportar, ao ponto que o povo pede a Moisés que pare:
“E todo o povo viu os trovões e os relâmpagos, e o sonido da buzina, e o monte fumegando; e o povo, vendo isso retirou-se e pôs-se de longe.
E disseram a Moisés: Fala tu conosco, e ouviremos: e não fale Deus conosco, para que não morramos.
E disse Moisés ao povo: Não temais, Deus veio para vos provar, e para que o seu temor esteja diante de vós, a fim de que não pequeis.” (Êxodo 20:18–20)
Aqui Moisés faz a mesma ligação de uma visão transcendental (nesse caso, principalmente uma audição transcendental) à primeira vista amedrontadora com um chamado ao arrependimento e ao retorno a Ele, de modo a levar o ser humano de volta ao Éden (nesse caso, a terra prometida com uma nova árvore da vida — a Torá).
Também segundo o Midrash o povo só conseguiu ouvir audivelmente os 2 primeiros mandamentos, não os 10 inteiros. A base para isso no texto é que apenas os 2 primeiros mandamentos estão no singular, onde Deus Ele mesmo se apresenta:
“Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão.
Não terás outros deuses diante de mim.
Não farás para ti imagem de escultura, nem alguma semelhança do que há em cima nos céus, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra.
Não te encurvarás a elas nem as servirás; porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniqüidade dos pais nos filhos, até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam.
E faço misericórdia a milhares dos que me amam e aos que guardam os meus mandamentos.” (Êxodo 20:2–6)
Se você ler o restante, verá que repentinamente muda-se da primeira pessoa do singular para a terceira pessoa do singular. Então isso levou aos sábios concluírem que, primeiro, Deus falou os 10 ao mesmo tempo, e depois ia falar cada um na sua vez, mas nesse caso só conseguiu proferir os 2 primeiros até que o povo não mais aguentasse.
E por que o povo não aguentou?
Para o Midrash (Shir Hashirim Rabbah 1:13), cada vez que o povo ouvia um dos preceitos da Torá na Voz do próprio Deus, era como se eles estivessem recebendo um Beijo Divino. Mas o Beijo Divino, desse AMOR infinito e incondicional, é uma experiência tão forte em termos físicos e mentais que é comparável a experimentar a morte ou mesmo provoca a morte. Por isso, também para o Midrash, os israelitas a cada Beijo Divino experimentavam a morte mas automaticamente eram ressuscitados. Entendo que não é coincidência que isso seja parecido com relatos sobre “morte do ego” por pessoas em estados alterados de consciência (enquanto aqui esteja sendo conceitualizada não sob uma concepção inspirada na budista, mas numa concepção judaica, muito mais corporal).
Não à toa é na boca de Davi que encontramos outra referência aos querubins na Bíblia Hebraica, em 2Samuel 22 e repetido em Salmos 18.
Davi é uma das figuras bíblicas que mais representa a Teshuvá (“arrependimento”, o retorno ao caminho da justiça após dele ter se desviado pelo egoísmo pessoal) e a persistência diante de várias ameaças à sua vida (por seus inimigos). Além disso, o arco narrativo da ascensão de Davi no livro de [1–2]Samuel está inserido num arco narrativo maior de como a Arca da Aliança finalmente encontrou um lugar para repousar (Jerusalém).
Assim, faz muito sentido que seja num cântico de Davi que os querubins dessa vez fossem mencionados simplesmente como um sinal da libertação divina, de sua atuação amorosa em favor de todos os oprimidos contra seus opressores:
“Estando em angústia, invoquei ao Senhor, e a meu Deus clamei; do seu templo ouviu ele a minha voz, e o meu clamor chegou aos seus ouvidos.
Então se abalou e tremeu a terra, os fundamentos dos céus se moveram e abalaram, porque ele se irou.
Subiu fumaça de suas narinas, e da sua boca um fogo devorador; carvões se incenderam dele.
E abaixou os céus, e desceu; e uma escuridão havia debaixo de seus pés.
E subiu sobre um querubim, e voou; e foi visto sobre as asas do vento. […] Desde o alto enviou, e me tomou; tirou-me das muitas águas.
Livrou-me do meu poderoso inimigo, e daqueles que me tinham ódio, porque eram mais fortes do que eu.
Encontraram-me no dia da minha calamidade; porém o Senhor se fez o meu amparo.” (2 Samuel 22:7–11, 17–19)
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