[134] Quando não dá pra elogiar Deus sinceramente

A Estrela da Redenção
10 min readJun 25, 2021

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Muitas pessoas foram ensinadas que Deus não aceita críticas ou questionamentos. Como corolário disso, nós deveríamos sempre elogiar Deus — até mesmo quando Ele aparentemente faria ou permitiria algo que, sinceramente, não conseguimos apoiá-lo nisso.

Mas será que Deus realmente precisa de bajuladores e puxa-sacos? Porque, no fundo, se vamos fazer um elogio a Deus sem sermos sinceros a respeito dos nossos sentimentos em relação a isso, parece que não seríamos melhores que um bajulador ou puxa-saco que fica elogiando outrem sem nenhuma sinceridade — apenas para obter alguma vantagem.

Hoje quero trazer pro blog uma discussão do Talmude, no tratado Yoma, que nos ajuda a entender que, sim, podemos ser honestos com Deus! Nada na Torá e na Bíblia Hebraica nos obriga a ficar elogiando ou justificando Deus mesmo quando não podemos sinceramente fazê-lo.

A discussão em Yoma 69b começa a partir de uma aparente divergência de entendimento entre 3 grandes personagens bíblicos: Moisés, o profeta Jeremias e o sábio Daniel.

  1. Moisés disse: “Pois o SENHOR vosso Deus é o Deus dos deuses, e o Senhor dos senhores, o Deus grande, poderoso e temível, que não faz acepção de pessoas, nem aceita recompensas” (Deuteronômio 10:17)
  2. Jeremias disse: “Tu que usas de benignidade com milhares, e retribuis a maldade dos pais ao seio dos filhos depois deles; o grande, o poderoso Deus cujo nome é o Senhor dos Exércitos” (Jeremias 32:18)
  3. Daniel disse: “E orei ao Senhor meu Deus, e confessei, e disse: Ah! Senhor! Deus grande e temível que guardas a aliança e a misericórdia para com os que te amam e guardam os teus mandamentos” (Daniel 9:4)

Moisés afirmou “haEl [הָאֵ֨ל] (o Deus) hagaddol [הַגָּדֹ֤ל](o grande) hagibor [הַגִּבֹּר֙] (o poderoso) vehanora [וְהַנּוֹרָ֔א] (e o temível)”.

Essa sequência tripla é bem importante para a liturgia da Sinagoga. A 1ª benção da Amidá, a benção Avot (dos patriarcas [e matriarcas, Imahot, na liturgia reformista e conservadora]), contém o “haEl hagadol hagibor havenora” dito por Moisés.

Baruch ata Adonai, Elohênu velohê avotênu, Elohê Avraham, Elohê Yitschac, velohê Iaacov, [Elohei Sarah, Elohei Rivka, Elohei Rachel, v’Elohei Leah*] hael hagadol haguibor vehanora, El elion, gomel chassadím tovím, veconê hacól, vezochêr chasdê avot [veimahot*], umeví goel livnê venehêm lemaan shemó beahavá. Melech ozer umoshiya umagen Baruch ata adonai, magen Avraham [vez’rat Sarah*].

Bendito és tu, ó Eterno, nosso e de nossos pais, Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacó, [Deus de Sara, Deus de Rebeca, Deus de Raquel, e Deus de Léia*] o Deus grande e poderoso e temível, o Altíssimo Deus, que concede bondade, e que cria tudo e que recorda o mérito dos patriarcas [e matriarcas*], e que com grande amor fará vir um redentor aos descendentes desses patriarcas, por amor do Seu nome. Soberano, Libertador, Ajuda e Escudo. Bendito és tu, Adonai, Escudo de Abraão [e Ajuda de Sara*]

Contudo, ao contrário do que vemos em Moisés (e na Amidá), Jeremias fala apenas “haEl hagadol hagibor” e Daniel fala apenas “haEl hagadol vehanora”! Eles usam as mesmíssimas palavras na mesmíssima flexão na mesmíssima ordem que Moisés, com a exceção de uma das palavras em elogio a Deus.

Fazendo o paralelo com a liturgia, é como se, durante a reza da Amidá na Sinagoga, Jeremias e Daniel pulassem uma das palavras da Benção Avot enquanto a pronunciam e nela meditam.

Os sábios em Yoma 69b se perguntam o porquê dessa omissão de Jeremias e Daniel. O motivo seria o contexto no qual esses personagens viveram, de grande dureza para o povo de Israel.

Jeremias testemunhou a destruição do Templo pelos gentios (babilônios). Então, como chamar Deus de “temível”?

Daniel viu como os gentios (babilônios) escravizaram os judeus. Então, como chamar Deus de “poderoso”?

Para entender melhor cada um desses casos, preciso dar ao leitor o background desses personagens.

Jeremias profetizou que Jerusalém seria destruída pelos babilônios, mas que a destruição total poderia ser evitada se os reis de Judá concordassem numa rendição incondicional frente ao Império Babilônico. Infelizmente, ele não foi ouvido, e isso levou à destruição do próprio Templo Sagrado, o local onde a santíssima presença divina habitava.

Jeremias é um profeta que viveu durante “tempos de Ira”, testemunhando a quase extinção do povo judeu, mas fazendo esforços hercúleos para impedir esse sombrio destino, por estimular entre os judeus exilados um pensamento de longuíssimo prazo: a sua geração está perdida, mas as próximas poderão voltar à Jerusalém e à Judá, então faça o que for preciso hoje para que no amanhã vossos netos possam viver melhor.

O próprio Jeremias não viveu para ver sua esperança ser satisfeita. Tudo que ele viu em seu tempo de vida indicaria o contrário de qualquer esperança. Jeremias é o profeta do “Deus que chora”, do “Deus que vai pro exílio com seu povo”, do “Deus sofredor”. E se você ler o Livro de Lamentações, verá que a destruição de Jerusalém foi algo extremamente violento. Uma pequena mostra:

“Os seus nobres eram mais puros do que a neve, mais brancos do que o leite, mais vermelhos de corpo do que os rubis, e mais polidos do que a safira.
Mas agora escureceu-se o seu aspecto mais do que o negrume; não são conhecidos nas ruas; a sua pele se lhes pegou aos ossos, secou-se, tornou-se como um pau.
Os mortos à espada foram mais ditosos do que os mortos à fome; porque estes morreram lentamente, por falta dos frutos dos campos.
As mãos das mulheres compassivas cozeram seus próprios filhos; serviram-lhes de alimento na destruição da filha do meu povo.” (Lamentações 4:7–10)

“Nossa pele está quente como um forno, febril de tanta fome.
As mulheres têm sido violentadas em Sião, e as virgens, nas cidades de Judá.
Os líderes foram pendurados pelas mãos; aos idosos não se mostra nenhum respeito.
Os jovens trabalham nos moinhos; os meninos cambaleiam sob o fardo de lenha.
Os líderes já não se reúnem junto às portas da cidade; os jovens cessaram a sua música.
Dos nossos corações fugiu a alegria; nossas danças se transformaram em lamentos.” (Lamentações 5:10–15)

Diante de um quadro tão desolador como esse, Jeremias não era capaz de dizer “vehanora”, “o temível”.

“An den Wassern Babylons” [Pelas Águas de Babilônia], Gebhard Fugel, ~1920. Pintura retratando o salmo 137:1–4: “Junto aos rios da Babilônia, ali nos assentamos e choramos, quando nos lembramos de Sião. Sobre os salgueiros que há no meio dela, penduramos as nossas harpas. Pois lá aqueles que nos levaram cativos nos pediam uma canção; e os que nos destruíram, que os alegrássemos, dizendo: ‘Cantai-nos uma das canções de Sião.’ Como cantaremos a canção do Senhor em terra estranha?”

Já o caso de Daniel é que este foi um dos próprios exilados, levado à força para Babilônia, castrado contra a própria vontade para servir de eunuco na Corte Real de Babilônia. Desde então passou a ser um ‘saris’ por ação humana, uma pessoa nascida masculina que foi feminilizada, como comentei melhor nos posts [104]- [105]. (Nos termos de hoje, provavelmente Daniel seria um pessoa bem queer, dada a alteração hormonal induzida pela castração quando ainda muito juvenil)

E ali estava ele tendo que servir e obedecer aos seus captores, junto com outros jovens de Judá. Além disso, nas visões que Daniel (sendo um sábio) interpreta nesse livro, tanto sonhos do rei Nabucodonosor da Babilônia, quanto estados alterados de consciência em transes do próprio Daniel, fica claro que o povo de Deus permaneceria durante milênios sendo dominado por grandes e monstruosos Impérios!

Tanto que Daniel se debate com a própria profecia de Jeremias. Jeremias havia profetizado que em 70 anos os exilados judeus poderiam retornar e reconstruir Jerusalém e o Templo (o que de fato ocorreu). Mas como sabemos historicamente, esse retorno e reconstrução não tirou Israel do jugo de grandes Impérios, permanecendo por estes dominado. Então, Daniel reinterpreta a profecia dos 70 anos em uma profecia de 70 semanas de anos (490 dias = 490 anos) e ainda acrescenta números bem maiores, como as 2.300 tardes e manhãs (2.300 anos?), em uma intrincada numerologia.

Ou seja, o que Daniel viu foi: na melhor das hipóteses, séculos. Mas provavelmente MILÊNIOS de subjugação.

Então, dado esse quadro todo, tanto o que ele vira em vida de judeus forçados a servir seus conquistadores longe de casa (incluindo ele próprio tendo sofrido isso!) quanto o que ele vira como a perspectiva para o futuro, de milênios de dominação do povo judeu por outras potências, Daniel não era capaz de dizer “hagibor”, “o poderoso”.

Sim, Daniel viu esperança também, tal como Jeremias. De novo exercendo o pensamento de longuíssimo prazo, Daniel sim tinha esperança de que, após milênios, o povo judeu iria ser totalmente reerguido, “os santos do Altíssimo receberão o reino, e o possuirão para todo o sempre, e de eternidade em eternidade” (Daniel 7:18) Mas obviamente ele morreu sem ver isso acontecer.

Agora, entre aqueles que retornaram a Jerusalém e viram o Templo ser reconstruído, parece que a coisa mudou. Então, os rabinos em Yoma 69a apontam que Esdras e os Homens da Grande Assembléia restauraram o dito completo de Moisés.

Após Esdras ler a Torá inteira ao povo, os levitas, Jesuá, Cadmiel, Bani, Hasabnéias, Serebias, Hodias, Sebanias e Petaías disseram um longo discurso, que incluia esse trecho:

“Agora, pois, nosso Deus, o grande, poderoso e temível Deus, que guardas a aliança e a beneficência, não tenhas em pouca conta toda a aflição que nos alcançou a nós, aos nossos reis, aos nossos príncipes, aos nossos sacerdotes, aos nossos profetas, aos nossos pais e a todo o teu povo, desde os dias dos reis da Assíria até ao dia de hoje.” (Neemias 9:32)

Os rabinos interpretam que os Homens da Grande Assembléia raciocinaram de forma diferente que Jeremias e Daniel.

Em relação a Daniel, é como se Esdras e seus companheiros dissessem: que o povo judeu esteja sendo dominado pelos gentios só demonstra o quão poderoso Deus é. Pois pense: Deus conquista completo auto-controle da sua própria inclinação ao exercer paciência em relação aos ímpios. Sim, Deus tem uma enorme raiva contra tudo isso que fizeram ao seu povo, mas Ele ainda consegue suprimir sua raiva e se abstém de punir imediatamente. Então, Ele é poderoso mesmo sob as circunstâncias percebidas por Daniel.

Já em relação a Jeremias, é como se Esdras e seus companheiros dissessem: se não fosse Deus temível, como poderia o povo judeu sobreviver entre as nações? A sobrevivência do povo judeu em circunstâncias tão difíceis, que facilmente teriam levado à sua extinção, certamente manifesta o quão impressionante e tremendo é o Deus de Israel. Assim, todo o terror presenciado por Jeremias torna mais incrível que o povo de Deus tenha persistido apesar de tudo isso.

Aqui isso me lembra de um episódio a respeito da Shoá, mais conhecido como Holocausto, o terrível evento ocorrido há menos de 1 século atrás onde novamente o povo judeu passou pela ameaça de extinção.

Uma das bênçãos da manhã constante de algumas liturgias tradicionais é um agradecimento por “não me fez escravo”. Assim, uma questão que se impôs durante o pesadelo da Segunda Guerra Mundial era a seguinte: ainda seria possível rezar essa benção estando num Gueto ou num Campo de Concentração sendo forçado a trabalhar? Afinal, estes judeus sofreram as agruras do trabalho forçado/escravo. Então, fazia todo sentido para eles omitir essa benção, seguindo nisso Jeremias e Daniel.

Mas houve também o pensamento na direção de Esdras e dos Homens da Grande Assembleia, ressaltando a relevância de recitar tal benção mesmo nessas circunstâncias, visando encontrar, paradoxalmente, esperança mesmo na desesperança:

“Um judeu endereçou esta questão ao rabino Efraim Oshry: ‘Poderia um judeu, tendo que realizar um trabalho forçado para os nazistas, continuar a recitar a bênção nas orações da manhã: Bendito és tu Eterno, nosso Elohim, rei do Universo, que não me fizeste escravo?’ Rabi Oshry respondeu: ‘O Eterno nos livre de abandonarmos a reza desta bênção… Pelo contrário, agora e em todos os tempos, somos obrigados a dizer esta bênção para que os nossos adversários e algozes percebam que, apesar de estarmos em seu poder, para fazer conosco como conceber sua maldade, que, no entanto, não percebemos a nós mesmos como escravos, mas como pessoas livres, prisioneiros por um tempo, mas cuja libertação virá logo…” (Hagadah de Pessach, Brit Bracha Brasil, p. 24)

Agora, vem finalmente a questão que estávamos nos perguntando no início. Daniel seria criticável por omitir “hagibor”, assim não chamando Deus de “poderoso”? Jeremias seria criticável por omitir “vehanora”, assim não chamando Deus de “temível”? Judeus submetidos a trabalhos forçados pelos nazistas seriam criticáveis por omitir a benção da manhã agradecendo por não ser escravo?

A resposta dos Rabinos em Yoma 69b é um claro “não são criticáveis”. Nenhuma dessas pessoas deve ser criticada por conta disso.

Com a palavra Rabbi Elazar: Jeremias e Daniel sabiam que Deus é verdadeiro, é verdade, ou seja, Deus não apoia mentiras. Então, esses grandes personagens bíblicos não queriam falar falsamente a respeito de Deus.

Ou seja, como Jeremias e Daniel não poderiam perceber aqueles atributos específicos naquele contexto em que viveram, então eles não fazem referência a tais atributos. E não podem ser criticados por isso, pois do contrário estariam falando uma falsidade, já que não conseguiam dizer sinceramente que Deus fosse “poderoso” (Daniel) ou “temível” (Jeremias).

Portanto, sim, podemos ser honestos para com Deus!

Para finalizar, a expressão acima inclusive dá título ao excelente livro “Honest to God” pelo bispo anglicano John A. T. Robinson, o qual trata de um assunto próximo ao que tratei aqui: a honestidade de reconhecer que, se nosso entendimento do mundo mudou, nosso entendimento de Deus também precisa mudar para ainda ser sinceramente afirmado. No caso, Robinson defende uma teologia existencial como a maneira mais honesta que ele encontrou para falar de Deus mesmo sob uma visão de mundo moderna, uma perspectiva que eu endosso também (veja o post [108]; ainda pretendo no futuro discutir diretamente o livro de Robinson aqui no blog).

Então, seja honestidade emocional (como a que foquei ao longo do texto), seja honestidade intelectual (como a discutida no parágrafo acima), podemos sim exercê-las legitimamente — perante Deus Ele mesmo. Mesmo que isso nos leve a deixar de fazer certos elogios a Deus. A própria Bíblia requer isso de nós! Como nos ensinam sutilmente Jeremias e Daniel.

Observação = entendendo o ponto que fiz acima, só alerto o leitor para ter cuidado também com o extremo oposto: ter pensamentos frequentes se questionando se você está sendo ‘realmente’ sincero, ou que talvez no fundo você não esteja sendo, e outras coisas desse tipo. Nutrir esse tipo de ansiedade e/ou pensamento intrusivo também não é saudável psicologicamente. O melhor a fazer é ter uma relação psicologicamente mais tranquila com esses assuntos referentes (à sua conexão pessoal) ao sagrado, não caindo em nenhum extremo (seja o de se forçar a suprimir sentimentos dissonantes, seja o de se forçar a duvidar dos próprio sentimentos). Se preciso, não hesite em buscar ajuda profissional.

*Esses trechos são acrescentados à Benção Avot da Amidá em comunidades que incluem a recordação das Matriarcas junto à dos Patriarcas, comum na liturgia reformista e na liturgia conservadora.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.